Introdução
Muito se discute se o Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais – TARF/DF pode rever suas decisões com base no princípio da autotutela da Administração. Isto porque há questionamentos sobre se o Tribunal, fazendo parte da Administração Tributária, deve ou não rever seus julgamentos de ofício, quando eivados de ilegalidade.
Antes, porém, de adentrarmos o tema propriamente dito, importante trazer à discussão alguns conceitos relevantes para o deslinde da questão. Senão vejamos:
Do error in procedendo e do error in judicando
Esses dois tipos de erros, que ocorrem no momento do julgamento, trazem diferentes consequências e merecem comentários.
O error in procedendo ocorre quando não se observa os requisitos formais exigidos em lei. É o erro de procedimento. O julgador equivoca-se ao proceder. Nestes casos, a consequência é a declaração de nulidade absoluta do julgamento.
Assim ensina Barbosa Moreira[1]:
O error in procedendo implica em vício de atividade (v.g., defeitos de estrutura formal da decisão, julgamento que se distancia do que foi pedido pela parte, impedimento do juiz, incompetência absoluta) e por isso se pleiteia neste caso a invalidação da decisão, averbada de ilegal, e o objeto do juízo de mérito no recurso é o próprio julgamento proferido no grau inferior.
Exemplo clássico é o caso do julgamento realizado por juiz incompetente. Suponhamos que um juiz do trabalho julgue uma causa penal e condene o réu. Sua sentença pode estar perfeita, com relatório, fundamentação e parte dispositiva detalhados, como exige a lei. Todavia, ela não surtirá efeitos no mundo jurídico, porquanto a sentença é eivada de nulidade absoluta por vício de incompetência.
Já o error in judicando se define como erro no julgamento. O julgador equivoca-se quanto à apreciação da demanda, seja porque erra na interpretação da lei, seja porque não adequa corretamente os fatos ao plano abstrato da norma.
Quanto ao tema, elucida Barbosa Moreira:
o error in iudicando é resultante da má apreciação da questão de direito (v.g., entendeu-se aplicável norma jurídica impertinente ao caso) ou de fato (v.g., passou despercebido um documento, interpretou-se mal o depoimento de uma testemunha), ou de ambas, pedindo-se em conseqüência a reforma da decisão, acoimada de injusta, de forma que o objeto do juízo de mérito no recurso identifica-se com o objeto da atividade cognitiva no grau inferior da jurisdição.
Em ambos os casos, as decisões estarão sujeitas ao recurso. Ocorre, todavia, que, no primeiro caso, a decisão é cassada, exigindo-se que nova seja proferida pelo julgador, e, no segundo, reformada, sendo que outra decisão é dada pelo colegiado.
Veja, abaixo, julgado do STJ que, didaticamente, demonstra a diferença dos dois erros.
RECURSO ESPECIAL. ARTIGO 512 DO CPC. ERROR IN JUDICANDO. PEDIDO DE REFORMA DA DECISÃO. EFEITO SUBSTITUTIVO DOS RECURSOS. APLICAÇÃO. ERROR IN PROCEDENDO. ANULAÇÃO DO JULGADO. INAPLICABILIDADE DO EFEITO SUBSTITUTIVO. NECESSIDADE DE PROLAÇÃO DE NOVA DECISÃO. 1. O efeito substitutivo previsto no artigo 512 do CPC implica a prevalência da decisão proferida pelo órgão superior ao julgar recurso interposto contra o decisório da instância inferior. Somente um julgamento pode prevalecer no processo, e, por isso, o proferido pelo órgão ad quem sobrepuja-se, substituindo a decisão recorrida nos limites da impugnação. 2. Para que haja a substituição, é necessário que o recurso esteja fundado em error in judicando e tenha sido conhecido e julgado no mérito. Caso a decisão recorrida tenha apreciado de forma equivocada os fatos ou tenha realizado interpretação jurídica errada sobre a questão discutida, é necessária a sua reforma, havendo a substituição do julgado recorrido pela decisão do recurso. 3. Não se aplica o efeito substitutivo quando o recurso funda-se em error in procedendo, com vício na atividade judicante e desrespeito às regras processuais, pois, nesse caso, o julgado recorrido é anulado para que outro seja proferido na instância de origem. Em casos assim, a instância recursal não substitui, mas desconstitui a decisão acoimada de vício. 4. Recurso especial conhecido em parte e desprovido. (REsp 963.220/BA, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 07/04/2011, DJe 15/04/2011) (destacado).
Mas, e quando a decisão, eivada por tais vícios, ocorre na última instância, no caso, da esfera administrativa? Como ficam as decisões proferidas pelo TARF/DF, última instância administrativa no julgamento de algumas questões tributárias, com erros de procedimento ou de julgamento?
Como verificar-se-á, as consequências são distintas.
Do princípio processual Kompetenz-Kompetenz
Para melhor compreensão do tema, necessário se faz uma rápida abordagem acerca do princípio kompetenz-kompetenz.
Este princípio, inspirado no Direito Alemão, é o “instituto pelo qual todo juiz tem competência para analisar sua própria competência, de forma que nenhum juiz é totalmente incompetente, pois ao verificar sua incompetência - absoluta - tem competência para reconhecê-la” (http://lfg.jusbrasil.com.br/ noticias/33652/o-que-se-entende-por-kompetenz-kompetenz).
Voltando, então, à discussão, como o TARF/DF deve proceder ao verificar que julgou matéria na qual não detinha competência (erro de procedimento), por exemplo? E quando aplicou equivocadamente alguma legislação (erro de julgamento)?
Deve o TARF/DF, com base no princípio da autotutela da Administração rever seus atos de ofício? Ou aplicar o princípio kompetenz-kompetenz?
Aparentemente, pode se entender que o resultado de ambos os questionamentos são idênticos. E realmente o são. Seria a nulidade do julgamento. Todavia, com fundamentos totalmente diferentes, que, se não forem bem compreendidos, podem gerar distorções.
Da autotutela da Administração
De acordo com este princípio, a Administração Pública exerce o controle sobre seus próprios atos, podendo anular os ilegais e revogar os inconvenientes. Isto porque a Administração está vinculada à lei e pode exercer o controle da legalidade de seus atos.
Com efeito, dispõe o Enunciado da Súmula 346, do Supremo Tribunal Federal: a administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos. Na mesma esteira é a Súmula 473, também da Suprema Corte: a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
Dito isso, questiona-se: o TARF/DF pode aplicar este princípio nas decisões viciadas com erro de procedimento e de julgamento?
Do sistema processual inquisitivo
O sistema processual inquisitivo, é verdade, foi utilizado na esfera do Direito Penal, em que o acusador também acumulava a função de julgador e, in casu, estamos a tratar de julgamento na esfera administrativa. Portanto, aparentemente, seriam assuntos totalmente distintos.
Todavia, mutatis mutandis, o tema parece-me pertinente à discussão.
Veja que a maior crítica ao sistema inquisitivo era justamente o questionamento acerca da imparcialidade do juiz. Naturalmente, o acusado, frente ao acusador, que se torna julgador, ficava em total desvantagem e feria, assim, frontalmente, a paridade de armas dentro do processo penal. Este era o sistema que reinou durante os séculos XVI, XVII e XVIII.
O sistema atual adotado pelo Brasil é o acusatório, em que o papel da acusação, exercida pelo Ministério Público, se separa do julgador, buscando, dessa maneira, a imparcialidade do juiz.
Em linhas bastante gerais e simples, faço estes comentários com a intenção apenas de trazer tais conceitos para o tema que se discute.
O fato é que, no processo administrativo fiscal, em que o TARF/DF atua como julgador, as partes são o contribuinte e a Administração Tributária.
Dessa maneira, se entendermos que o TARF/DF, além de julgador, é também a Administração, tenho que sua imparcialidade será colocada à prova. Será que não estaríamos adotando, nesse sentido, um sistema semelhante ao processual inquisitivo penal?
Do TARF/DF e da Administração
Finalmente, chegamos ao cerne da questão.
Como já demonstrado, a Administração pode, sim, rever seus atos a qualquer tempo quando eivados de vícios que os tornem ilegais.
Porém, devemos ponderar se o TARF/DF é a própria Administração ou não.
A meu ver, o Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais não age como se Administração fosse. O TARF/DF é um órgão de julgamento e deve observar os ditames processuais, tanto da Lei Distrital 4.567/11, que dispõe sobre o processo administrativo fiscal, como do Código de Processo Civil.
Apesar de seu nome, Tribunal Administrativo, entendo que não é a Administração em si. O termo administrativo constante no nome do Tribunal é apenas para enfatizar que não se trata do Poder Judiciário. Faz parte da Administração, sim, sem sombra de dúvidas. Porém, não revisa atos como a Administração pode e deve fazer.
Isto porque o princípio da segurança jurídica deve prevalecer no julgamento. Significa dizer que, caso ocorra error in judicando, e não caiba mais nenhum tipo de recurso, administrativamente, ocorre o trânsito em julgado (ou preclusão administrativa). Mesmo que o Tribunal dê uma decisão equivocada, deve-se respeitar a coisa julgada. Neste caso, não caberia a reforma da decisão com fulcro na autotutela administrativa. Somente caberia questionamentos perante o Judiciário, mas, administrativamente, a questão estaria sacramentada.
Diferentemente, nos casos de error in procedendo, o julgamento é nulo. Não surte efeitos no mundo jurídico. Portanto, no caso de erro de procedimento, porquanto não se observou as regras de competência, por exemplo, em observância ao já mencionado princípio kompetenz-kompetenz, o TARF/DF pode, sim, declarar a nulidade absoluta da decisão proferida e remeter os autos ao órgão competente.
E que não se diga que a Administração utilizou-se do seu poder de autotutela. A regra que deu ensejo à nulidade foi meramente processual e não do Direito Administrativo.
Caso entendêssemos que a nulidade decorreu do poder de autotutela da Administração, poderíamos chegar a conclusão de que outros julgados, já transitados na esfera administrativa, poderiam ser revistos a qualquer tempo na hipótese de o TARF/DF ter mudado o seu juízo sobre determinada matéria.
Isto pode ocorrer porque o TARF/DF muda sua composição a cada três anos, tempo do mandato de cada Conselheiro julgador. Ou seja, se, a cada mudança na composição do Tribunal, os Conselheiros pudessem rever julgados anteriores com base no poder da autotutela da Administração, alegando-se erro de julgamento, haveria total insegurança jurídica, o que não se permite no Estado democrático de direito.
Nessa toada, nos casos de error in judicando, transitado em julgado administrativamente, mesmo que o Tribunal mude seu entendimento sobre a matéria, não se modifica mais a decisão prolatada, ressalvada, conforme dito, a apreciação pelo Judiciário.
Já nos casos de error in procedendo, o Tribunal declarará a nulidade do julgamento em observância às regras processuais, como demonstrado, e não com amparo no Direito Administrativo.
Por derradeiro, como mencionado, se considerarmos que o TARF/DF é a Administração em si, a sua imparcialidade no julgamento será questionada, uma vez que aquele que realiza o lançamento tributário, por exemplo, é o mesmo que julgará se ele é válido ou não, e, certamente, por consequência, a própria existência do Tribunal será colocada em dúvida. Não haveria motivos para o contribuinte acreditar no êxito de sua impugnação ou de seus recursos interpostos quando se aplica o ultrapassado sistema processual inquisitivo.
Da Conclusão
Muito embora o TARF/DF faça parte da Administração Tributária, não pode rever seus julgados com fundamento no poder da autotutela que a Administração possui.
Deve observar, sim, como órgão julgador que é, os ditames do Processo Administrativo Fiscal e também das regras e princípios do Código de Processo Civil.
Nota
[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. V.5, 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 267.