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O processo de Kafka:

memória e fantasmagorias do Estado de Direito

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Ainda é viva a memória da justiça

No Estado Democrático de Direito, os direitos e as garantias individuais e sociais simbolizam, de um lado, a incessante luta pela justiça social (também conhecida como igualdade real ou material) e, de outro, indicam algumas conquistas da segurança jurídica (a igualdade formal ou jurídica: nossa busca pela isonomia). Dessa junção resultaria a possibilidade de uma vida mais digna.

No modelo do Estado Democrático de Direito Social, a vigência e a efetividade dos direitos sociais são a melhor demonstração dessa garantia do direito a uma vida digna. É, portanto, um Estado de Direito social, geral, global, interativo, intenso, não-excludente, inclusivo. Em suma, é um Estado que incorpora (continuamente) parcelas significativas da população e, portanto, não manda embora, excluindo, de forma sumária ou arbitrária, os adversários ou opositores desse mesmo poder. Com essa estrutura, o poder estaria melhor relacionado à teleologia que recobre a organização social. Portanto, como projeto social.

Nesta mesma ordem, a justiça social confere legitimidade ao poder, ao comando, ao Estado e ao direito decorrente desse mesmo Estado, bem como a segurança jurídica deveria propiciar uma base de legalidade em que se assentariam os atos do mesmo poder. Assim, a essência da legitimidade (consenso, aprovação, reconhecimento) deve impulsionar nossa memória do Estado de Direito (alimentá-la) e a legalidade deve dar conta da sua operacionalização, da parte prática e técnica. Trata-se, em síntese, da maneira como se vai alimentar tal memorização política junto ao povo.

Ressaltando-se, porém, que agora tal memória não será apenas jurídica, mas essencialmente cultural, política e popular – porque não se esgota mais na doutrina, no direito positivo ou na dogmática jurídica e, sim, revela-se como parte integrante, atuante, viva, epidérmica16, sensitiva e dinâmica da cultura popular. É como se reconhecêssemos/disséssemos que: o povo (re)quer justiça; de alguma forma, a luta pela justiça é um indicativo da manifestação íntegra e integral da cultura popular (sem dúvida algo raro, mas é) 17; já se vê a cultura popular (dos mais pobres, carentes ou alijados do poder) impregnada desse objetivo maior (momento em que há alguma teleologia e não só pura ideologia18); essa tarefa social e histórica não se limita aos atributos e instrumentos jurídicos (e mesmo que assim o fosse, não estaríamos autorizados a prescindir deles). Dessa forma, a garantia jurídica (a dogmática responsável pela garantia da própria justiça) vem travestida ou se transmuta em reivindicação popular, ou seja, aqui já não é mais memória metafísica.

A justiça, portanto, tenderia a se expressar mais como desafio cultural (ou de alcance e incidência cultural) do que se realizar como mero reflexo da atuação do Poder Judiciário: uma justiça legítima. Mas, infelizmente, ainda faltam os meios para se aprofundar (e não apenas garantir) essa mesma legitimidade, porque não bastam os aparatos legais, sendo essencial a vontade, a ânsia, o desejo de que seja assim. E hoje parece ainda mais claro: devemos ansiar, desejar a justiça. Aliás, de forma complementar, não há direito sem desejo19.

Por último (mas considerando que seja o mais importante), diríamos que a justiça deve ser desejada e não só cortejada, pois basta-nos lembrar que, se o poder é fálico20, a justiça deve ser conquistadora.

São muitas as teorias e as teses acerca do tema, mas ressalte-se o fato de que o poder é associado, rigorosamente, à masculinidade, à força, à luta, à manutenção do que já foi conquistado. Aliás, manifestando total ignorância, o machista diz que conquistou a mulher – mais ou menos como Júlio César com seu célebre vim, vi, venci. Um tipo que , gosta, toma e leva. Mas, quem disse que tinha de ser assim, que era para tomar e levar?

Dessa forma, parece-nos, a justiça deve conquistar o poder – e jamais o contrário, pois, conquistando o conquistador (ou usurpador), a justiça torna-se forte, presente e atuante: a justiça que provém da verdade real. Isto porque, de modo contrário, só nos restaria um poder injusto. Desse modo, este seria o caso em que (no poder injusto) a legitimidade seria usurpada e, muitas vezes, em nome, injustamente, de uma suposta legalidade.


Quem derrotou Kafka?

Partindo-se de algumas implicações dessa definição (inicial) de justiça, fica claro que nosso intuito não se limita a apresentar o direito à defesa ou ao princípio da legalidade, e ainda que possa incorporá-los. Nosso objetivo não se equipara a isso, porque podemos ter uma imposição deformada do Estado de Direito, como no exemplo do Estado Judicial, em que os chamados pressupostos do Direito são acionados toda vez que se quer ocasionar alguma forma de injustiça – nesse modelo, coloca-se a moral acima do Direito. Também bastaria perguntarmos a que se limita o direito de defesa nos regimes totalitários (uma fantasmagorização do Estado de Direito: legalização da injustiça; apropriação indébita e indevida dos poderes constituídos21).

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O Direito à Justiça, ao contrário, está mais para os princípios do direito, portanto, da justiça. Porque, é mais do que sabido, o direito positivo pode ele próprio ser a principal fonte de leis injustas, imorais e consagradoras de privilégios.

Supondo-se estabelecidos, enfim, alguns elos entre Direito e justiça, podemos passar ao julgamento de Joseph K. (Ou será o julgamento do próprio Kafka?).

Já vimos, mas Joseph K. é a personagem apresentada como réu sem indiciamento e direito de defesa, sendo acusado e julgado sem saber porquê e muito menos por quem - isto é, contrariando toda a lógica da segurança jurídica. De algum modo, Joseph K. simboliza e reflete o sentimento de Kafka diante do direito de sua época ? Em caso afirmativo, imaginemos, então, como poderia ser sua reação hoje, em face da negação neoliberal do Estado Democrático de Direito – diga-se, injustamente, em nome do Estado Mínimo.

Em outro exemplo, em uma espécie de resposta ao princípio de autoridade, passando na rua por um guarda, Joseph K. desafia ao Estado embaralhando o raciocínio desse mesmo guarda: "O senhor me oferece sua ajuda (..) O que aconteceria se eu deslocasse o processo para o âmbito das leis do Estado? Poderia chegar a um ponto em que eu precisasse defender estes senhores contra o Estado?" (1997, p. 314).

Por fim, nas notas que teriam sido suprimidas pelo autor, agora em relação ao indevido processo legal a que Joseph K. responde, procura-se o direito de se auto-representar já que não admite constituir um advogado em função de um processo que não existe: "... havia objeções que tinham sido esquecidas? Certamente sim. A lógica é, na verdade, inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver. Onde estava o juiz? Onde estava o Alto Tribunal? Tenho que falar. Levanto as mãos" (1997, p. 314).

Ao que se poderia indagar: o que significa a não-constituição dessas Altas Cortes, sobretudo se não há base firme em que se afirme o bom senso? Também é preocupante a constante ameaça (proto-fascismo) de se submeter a justiça e a liberdade à mera explicação de uma certa lógica jurídica. Pois, pode-se perfeitamente ter o seguinte: se há leis, então, que sejam objetivas e aplicadas. O sentido oculto esconde o mais importante, pois, deveríamos desvelar o fato de que precisamos ver/analisar exatamente a exposição de motivos22.

Para Joseph K., resumidamente, interessam o direito à livre defesa, o direito de defender a liberdade (sua e de todos) ou simplesmente o direito de defender, livremente, a liberdade. (Vide a Declaração de 1789: todos os homens nascem livres e iguais em direitos).

Para Kafka, não há prisão pior do que a da consciência; no seu Processo, aprisiona-se a alma, o querer. Em todo e qualquer cárcere, pode-se dizer, só há desalmados; pois aí a tutela do Estado está desmoralizada. Vê-se que o pior é ter o controle e a repressão dentro da mente, onde a esperança não alcança. É como ser escravo das próprias circunstâncias, de si mesmo, sem sonho e sem nenhuma luz de verdade23, ao alcance unicamente da morte da alma: decreta-se a morte do próprio desejo à justiça, do desejo de viver. A personagem está entregue, não se debate mais contra a total incoerência que a cerca, não resiste e nem insiste mais; não busca mais, pois encontra-se atônita e prostrada.

Que outras imbricações ainda podemos extrair do texto? Vejamos: de que forma pode-se relacionar algumas condições, formações e estruturas psíquicas, individuais ou sociais, indicadas no Processo de Kafka, com a liberdade, o direito, o Estado ou a democracia? É possível relacionar alguns incisos do artigo 5º da Constituição Federal com algumas subtrações legais perpetradas no Processo de Kafka, como: coerção e imposição ou aceitação e internalização acrítica, além de apatia, indiferença, passividade, resignação, alienação, perda da consciência, prostração, frustração, depressão, inculcação, coisificação, massificação, petrificação, submissão, subsunção, automação? O Processo de Kafka analisa a catalepsia (letargia, alienação, hipertrofia do sujeito de direitos, seu encolhimento, hipossuficiência e retração política) ou é só uma mera depressão do autor?

Da leitura podemos perfeitamente ficar com a imagem do Estado que apenas controla, sem distribuir justiça; mas tê-lo dentro de si, da (in)consciência, é brutal demais, é subsumir ao real. Para Joseph K. importaria "saber-se ser um ser livre", e sem o que, acrescentaríamos, está decretada a morte do espírito humano.

Em síntese, não há pena pior: a restrição à liberdade submete e restringe a esperança. Por isso, é cada vez mais urgente repensar a afirmativa de que "a prisão ainda é necessária". É questão de lógica supor que a sociabilidade provém da liberdade, vive-se com a esperança de ser livre para ser sociável24.


Passo a passo: a negativa do direito

Não iremos concluir o texto, mesmo porque, para que conclusão se, não havendo crime, não haveria acusação, processo, alegações, argumentações finais e julgado?

Em suma, direito à justiça é o que Joseph K. não teve, assim como nós ainda não temos25: como vimos, muito mais do que o direito a um julgamento justo, é o caso de se indagar pela(o):

- Liberdade de participar livremente da definição (socialmente válida) do significado e do alcance da justiça pessoal e social.

- Direito de ser consultado, ainda que sob a forma depreciada da opinião pública, sobre os destinos – ou reformulação – dessa mesma definição do direito à justiça.

O que se quer, então? Quer-se:

1.Mais do que o direito à segurança jurídica.

2.Mais do que o direito a conhecer o direito.

3.Mais do que o direito à alegação da própria inocência.

4.Mais do que o direito à liberdade e à igualdade.

5.Mais do que o direito a um julgamento imparcial.

6.Mais do que o direito a um processo formal ou devido processo legal.

7.Mais do que o direito à ampla defesa.

8.Mais do que o direito a ser considerado inocente.

9.Mais do que o direito de se provar o contrário – de contradizer o poder.

Em síntese, requer-se a garantia de que o Estado de Direito assegurará os instrumentos, as técnicas e os procedimentos jurídicos, sociais, culturais, econômicos e políticos necessários à consecução, reconhecimento, defesa e promoção dos meios e recursos inerentes à não-interrupção dos (re)cursos naturais e universais da vida livre, saudável e feliz.

Trata-se muito mais do que o direito de não ter a vida destruída, trata-se de ter a garantia real de ter a vida assegurada.

Por tudo isso, a justiça tem que ser reproduzida nessa cultura viva que somos todos nós, ou seja, nesta fase ou estágio, tratar-se-ia de uma memória coletiva da justiça (uma epiderme social) e, portanto, muito além de qualquer reminiscência saudosista acerca das promessas não-cumpridas pelo próprio Estado de Direito.

Enfim, vale citar que muito além das calendas do direito e do Estado, a justiça só é se for vida vivida – é contra-senso, portanto, supor uma justiça lendária; ela só é, ou sempre é, a história: a justiça é memória viva e não a-histórica. A justiça só é, sendo; mas partindo-se daquele querer ardoroso, desejando-se muitíssimo que assim o seja. Com isso, a justiça pós-metafísica torna-se histórica. Por fim, requer-se que a justiça seja nossa segunda pele: o que nos recobre e define, e sem o que sucumbimos. Isto é antromorfização: a cultura reinventando o universal na singularidade de cada um. Vê-se claramente que não há justiça sem desejo, e esta é a força da história na vida do homem comum – esta é a justiça pós-iluminista.


NOTAS

4 Mesmo que a máquina produza cálculos que o ser humano não seja capaz de realizar, a interpretação/utilização ainda é orientada de acordo com fins humanos.

5 Neste caso, a ficção jurídica do próprio Estado de Direito.

6Tome-se a proporção existente entre Beccaria e Pietro Verri, como exemplo prático dessa desigual publicização dos autores e de suas obras.

7 No fundo, todos precisam interpretar sob pena de se tornarem objetos da interpretação dos poderes e dos discursos deterministas.

8 A segurança jurídica não convive bem com o fim das certezas. Nesse influxo pós-moderno, o direito líquido e certo cede lugar e vez aos fragmentos do direito positivo – a própria fase histórica da negação da verdade atribuída ao direito como ciência acima das ideologias.

9 As principais características do referido Estado de Direito são: a) garantia e fruição dos direitos individuais; b) separação dos poderes; c) império da lei.

10 Aqui, entendida como de baixa entropia cultural e histórica.

11 É evidente a esta altura, mas cabe ressaltar que Verdade, Justiça e Direito (para alguns a Lei), são os nossos mais notórios preceitos metafísicos e que sua negação (pós-metafísica) é a essência que transborda d’O Processo.

12 Basta verificar a insegurança jurídica e política a que a maioria está sujeita.

13 Um Estado de Direito sem protagonistas legítimos é só um Estado Sem Direitos, um estado de coisas petrificado, coisificado. Também pode resvalar no típico Estado Judicial, mumificado, legalista e ilegítimo que usa as leis em proveito de interesses próprios e abstratos.

14Pode-se ver aí a pose do Deus da Arrogância, à beira do Alto Tribunal?

15 Seria uma demonstração de que "o direito não socorre a quem dorme", tanto quanto é fato que esta regra se aplica a Joseph K.

16 Saliente-se que epidérmico aqui se refere aos sentidos e não à superfície ou superficialidade.

17 No Brasil, a memória coletiva, viva, da justiça tem só um esboço ou contorno de consciência jurídica inicial, mas já contém os indícios preliminares e necessários para que se possa afirmar como momento de superação das condições objetivas/negativas: ignorância e desprezo pela lei e pelo direito; desleixo ou opressão do Estado; elitização na prestação jurisdicional, completo desnível na aferição dos resultados de ordem prática do Poder Judiciário (sabe-se, perdendo a ingenuidade, que nem todos são iguais perante a lei). Portanto, a memória viva precisa ser construída, caso contrário, aí sim, viver-se-ia sob o seu fantasma.

18 O que também indica que não se trata, pejorativamente falando, de nenhum folclore, pensamento mágico ou de alguma alucinação. Pois, não vemos o homem comum rejeitar a justiça e sim a justiça sendo-lhe negada.

19 Essa compreensão nos levaria a pensar no poder como a capacidade de transformar o desejo do direito em ação global e integral: no indivíduo, equivaleria aos resultados práticos da autonomia e no Estado soma-se à soberania.

20 Os símbolos fortes do poder sempre foram masculinizados, a exemplo das armas de fogo.

21No Estado Patrimonial e oligárquico brasileiro, infelizmente e injustamente, o gestor e o governante agem rotineiramente como depositários infiéis da coisa pública.

22 É por isso que toda lei (ou projeto de lei) deve trazer a exposição de motivos.

23 Hoje, uma Verdade claramente fugaz.

24Sabe-se, há muito, que o homem é tão gregário que mesmo o crime tende a ser organizado; também não é à toa que a Máfia se intitula como Família – ou como famílias mafiosas.

25Diz-se, popularmente que a lei só investiga o CPF e nunca o RG.


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Sobre os autores
Heloisa Helena Siqueira Correia

Licenciada em filosofia pela UNESP, Campus de Marília, Mestre em Letras pela UNESP, campus de Assis,Doutoranda pela UNICAMP. Professora de Filosofia do Curso de Direito da Fundação-UNIVEM

Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREIA, Heloisa Helena Siqueira; MARTINEZ, Vinício Carrilho. O processo de Kafka:: memória e fantasmagorias do Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 293, 26 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5130. Acesso em: 19 dez. 2024.

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