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A deslegitimação do aumento de pena pelo instituto da reincidência:

uma análise social

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O agravamento de pena pelo instituto da reincidência é ilegítimo, diante da realidade carcerária brasileira, mostrando-se ineficaz ao que se propõe.

RESUMO:Os criminosos não são descobertas do direito penal. Segundo a teoria do labeling approach, os delinquentes são resultados das interpretações que as pessoas fazem de um do fato social. Assim, a circunstância agravante da reincidência no processo de aplicação da pena a ser imposta não se mostra legítima quando confrontada com a realidade social brasileira do cumprimento da pena carcerária brasileira. Destarte, o presente artigo tem o objetivo de realizar uma análise social do instituto da reincidência dentro do contexto das funções reais e simbólicas da pena, bem como da teoria do labeling approach e do princípio do non bis in idem. Logo, a metodologia do estudo se baseou em pesquisa qualitativa, por meio de revisão bibliográfica.  Por fim, constatou-se que a debilidade do sistema carcerário não possibilita a que haja uma real reeducação e a posterior ressocialização do apenado, mas, pelo contrário, o cumprimento da pena acaba induzindo a reincidência, como se percebe pelos dados coletados, criando um ciclo eterno.

Palavras-chave: Reincidência. Labeling approach. Bis in idem. Funções da pena. Deslegitimação.


1.INTRODUÇÃO

No transcorrer do curso histórico, surgiram teorias que procuraram explicar a necessidade de aplicação da pena, levando em consideração os comportamentos sociais de cada sociedade e de cada época, bem assim, as funções que o Estado adquiriu durante sua evolução. Como principal preocupação do Estado-Juiz sempre esteve a figura do delinquente, que como sujeito passivo dessa relação (vítima-Estado-criminoso) recebia a sanção como forma de redimir o mal infringido à sociedade.

Inicialmente, a pena tinha o fim de retribuir ao condenado o desequilíbrio causado por ele, em virtude da transgressão cometida. Mais adiante, o aspecto preventivo da sanção penal foi enfatizado, buscando ter um olhar mais próximo ao condenado e obter resultados mais individualizados. Contudo, ambas as teorias caíram por terra diante da insuficiência de seus instrumentos na conjuntura em que se encontram.

Ocorre que os criminosos não são descobertas do direito penal. Segundo a teoria do labeling approach, os delinquentes são resultados das interpretações que as pessoas fazem de um fato social. Então, um criminoso é reconhecido como criminoso antes de sê-lo; na prisão é reconstruído como um desviante nato; quando sai, não sendo bem visto pelo seu grupo, acaba por praticar o que aprendeu em seu tempo recluso, qual seja, difundir a criminalidade, pois esta é a verdadeira função da pena, desacreditando o que os diplomas legais passam como sendo o correto: as declaradas funções da pena.

Nesse cenário, a circunstância agravante da reincidência no processo de determinação da pena a ser imposta não se mostra legítima quando confrontada com a realidade social brasileira do cumprimento da pena. Deve-se pensar no quadro social que reflete a criminalidade. O Estado não deve agravar a pena de um indivíduo não tendo promovido meios que permitissem um cumprimento de pena decente para o crime anterior; se a pena não tem cumprido as funções de prevenir, reeducar e ressocializar, mas tão somente a da retribuição, não é legítimo ao poder estatal dispor da vida e da liberdade de seus cidadãos de forma a puni-los pelos erros do próprio Estado.

Nesse prisma, o presente artigo tem o objetivo de realizar uma análise social do instituto da reincidência dentro do contexto das funções reais e simbólicas da pena, bem como da teoria do labeling approach e do princípio do non bis in idem. Para tanto, a configuração do estudo se baseou em pesquisa qualitativa, por meio de revisão bibliográfica.

Afinal, constata-se que as realidades social e carcerária brasileira não permitem a efetivação da transformação do criminoso, pois a falta de cumprimento de uma pena decente não possibilita a reeducação e posterior inclusão pacífica do apenado no seio social. Pelo contrário, a reincidência é induzida, alimentando um ciclo eterno de erros.

O artigo foi divido em seis partes: as funções simbólicas da pena; as funções reais da pena; a reincidência e o bis in idem; labeling approach e a reincidência; dados sobre a realidade carcerária e a reincidência; e, agravante da reincidência, o STF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.


2. AS FUNÇÕES SIMBÓLICAS DA PENA

Nem todas as condutas antijurídicas são delitos, mas todos os crimes são condutas antijurídicas. Os delitos em si possuem diversas consequências no mundo jurídico, contudo, no direito penal há apenas um resultado: a pena.

O sistema penal se satisfaz com a imposição de uma coerção ao indivíduo, transmudada em uma pena que, pelo menos teoricamente, se amolda perfeitamente às necessidades de reconstrução de sua identidade para uma melhor vivência na comunidade em que vive habita.

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No curso da história, diversas teorias buscaram explicar a utilidade da pena, o porquê de se ter um direito penal, um o chamado “mal necessário”.. A partir da Idade Média, a pena passou a ser vista como uma retribuição negativa pelo desvio de comportamento do indivíduo no seio da sociedade, interrompendo uma ordem jurídica pacífica, sendo estabelecido um castigo caso fosse descumprida qualquer obrigação à que o indivíduo se impôs, isto é, o crime era retribuído com uma sanção (MORAES, 2013, p. internet doc online).

Em outro extremo, surgem as teorias preventivas, que fundamentavam a pena na prevenção de futuras ocorrências delitivas, bifurcando-se na prevenção especial e na prevenção geral. A teoria da prevenção geral negativa afirma que pelo exemplo, intimida-se a sociedade e, ao mesmo tempo, vinga-se o mal cometido. De forma sutil, manipula o inconsciente do “homem de bem”, alimentando dentro de si a busca da vingança pela prática de ato que lhe foi proibido (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2002, p.104.).

Já a teoria da prevenção geral positiva busca o controle coletivo através da reafirmação da confiança no sistema de poder, tendo em vista que, com a demonstração da salvaguarda de determinados bens jurídicos considerados relevantes por meio da criação de tipos penais e da cominação de penas para a punição pela violação desses bens, os cidadãos não criminalizados sentem que o Estado está no controle e que é possível confiar na manutenção de uma convivência tranquila. Nesse sentido, Zaffaroni e Nilo Batista (2003, p. 122 apud citado por MORAES, 2013, p. internet) afirmam:

A partir da realidade social, essa teoria se sustenta em mais dados reais que a anterior. Segundo ela, uma pessoa seria criminalizada porque com isso a opinião pública é normal ou renormalizada, dado ser importante o consenso que sustenta o sistema social. Como os crimes de “Colarinho Branco” não alteram o consenso enquanto não forem percebidos como conflitos delituosos, sua criminalização não teria sentido. Na prática, tratar-se-ia de uma ilusão que se mantém porque a opinião pública a sustenta, e convém continuar sustentando-a e reforçando-a porque com ela o sistema penal se mantém: ou seja, o poder a alimenta para ser por ela alimentado.

Por outro lado, a teoria da prevenção especial, ao contrário da teoria prevenção geral, é voltada para o criminoso particularmente, buscando conscientizar o infrator, ressocializando-o e reeducando-o para uma nova inserção no seio da comunidade de onde foi segregado. A prevenção especial positiva, desse modo, pretende melhorar o agente, tratando a pena como uma benesse ofertada pelo Estado; já a prevenção especial negativa, pelo contrário, pretende neutralizar o indivíduo, como parte da vingança pessoal do Estado e da sociedade, baseada na defesa social (MORAES, 2013, p. internet doc online.).

Portanto, não se deixando enganar pela intenção educativa, as teorias da pena tentaram, na verdade, justificar a necessidade humana de poder, sangue e segregação. Em todo o decorrer das renovações e inovações do sistema penal, o Estado estabeleceu estereótipos de ameaças ao equilíbrio que ele, como poder soberano, impôs, convencendo os “cidadãos de bem” que a presença de um sistema operado com base na opressão e na seleção dos que deveriam ser neutralizados, resolveria o problema da origem do “mal”, imputando a maldade como algo inerente a determinado grupo, como se este fosse um defeito genético ou uma doença local. Triste ilusão!


3. AS FUNÇÕES REAIS DA PENAS

O artigo 59 do Código Penal Brasileiro delimita as funções declaradas da pena, quais sejam, a reprovação e a prevenção, trazendo em seu bojo a ideologia da defesa social como orientadora das sanções penais, o que redunda em discursos distanciados da realidade social, firmando-se apenas no âmbito normativo e ideal.

Por isso, quando nos questionamos do porquê de punir, temos que ter consciência da realidade do sistema, pois, inobstante a existência de um discurso perfeito sobre as funções da pena, conforme pudemos analisar, ele não é posto em prática, tendo em vista que a pena é apenas uma forma de legitimação do poder, e como tal possui fins diversos (SILVA, 2013, p. 07.).

Os fins reais da pena acabam por se traduzirem na reprodução da delinquência criminalidade, devido à marginalização de parcela da sociedade, relegando a esta determinadas formas de transgressões criminalidade; e, na reprodução das relações sociais, posto que a repressão às formas de criminalidade significa a subordinação ao poder das classes dominantes.

Segundo Silva (2013, p. 13), a tática da prevenção especial se mostrou inapta em todas as suas formas, pois o isolamento do criminoso opera uma desculturação e uma aculturação: a primeira ocorre com a perda dos valores sociais, e, a segunda, com a apreensão dos valores do âmbito prisional, e com a consequente transformação do criminoso. Ademais, a realidade do poder de punir vem nos assombrar com a atribuição desigual da criminalização à parte da comunidade, em detrimento do devido processo legal.

No que tange a prevenção geral, tem-se que, além de demonstrar não ter o Estado interesse em soluções sociais verídicas, a prevenção geral negativa passa a ser flagrantemente inconstitucional, tendo em vista que a Constituição Cidadã instaurou em nosso ordenamento jurídico a premente necessidade de olhar o ser humano como um fim em si mesmo, valorando suas acepções físicas, psicológicas, sociais e culturais.

O simbólico, segundo Hassemer, é a contraposição entre o crescimento das normas e a desconfiança de seu cumprimento, momento no qual as funções simbólicas da pena padecem frente às funções reais. A contrapartida do Estado se torna irracional, utilizando-se a pena como uma represa de esperanças, alargando ainda mais a área de atuação do direito penal (NETTO, 2008, p.148).

Os “criminosos”, tolhidos pelas amarras sociais, não se permitem se desenvolverem intelectualmente, culturalmente e politicamente (SANTOS, 2013, p. internet). Portanto, um condenado está sentenciado ao julgo de seus superiores. A inatividade gerada pelo sistema prisional faz crescer em seu íntimo a necessidade gritante de alcançar o mais alto patamar no contexto social, sabendo que somente conseguirá se voltar a delinquir, pois será rejeitado pelos mesmos que lhe impuseram a pena com a justificativa da sua reintegração ao seio comunitário. Assim, um ciclo se forma, somente findando quando a morte, física e mental, daqueles escolhidos para delinquir, vira notícia no jornal.


4. A REINCIDÊNCIA E O BIS IN IDEM

Muito há que se falar a favor da deslegitimação da aplicação do instituto da reincidência sob a égide da realidade carcerária brasileira, ou seja, na observação sobre o que de fato acontece nos momentos da execução da sanção penal idealizada. Quando o Código Penal Brasileiro traz em seu art. 59, I, a reprovação e prevenção do crime como finalidades da pena, traz a perspectiva idealizada desse propósito. Não se pode, todavia, se esquecer das configurações reais do sistema para a aplicação de um instituto que não se esgota na teoria, mas tem consequências práticas quando interfere na dosimetria da pena e no status social do agente delituoso. Indubitavelmente, não se pode negar a deficiência atual (e porque não congênita) da (des) organização penitenciária vivida pelos “criminosos”.

A expressão bis in idem significa “repetição sobre o mesmo” e é utilizada no ordenamento jurídico brasileiro com o sentido de caracterizar um fenômeno que consiste na repetição de uma sanção sobre um mesmo fato. Nesse diapasão, o instituto da reincidência mostra um viés de dupla sanção quando tem em sua essência um aumento de pena motivado por um desvirtuamento delituoso pregresso já cumprido. O non bis in idem é, sim, um princípio básico do sistema jurídico-penal de um Estado Democrático de Direito, apesar de não estar expresso no texto constitucional. Sendo assim, porque não é respeitado? Talvez porque não seja interessante para a classe dominante.

O Estado tem o poder de punir, é detentor do ius puniendi, mas não pode se eximir de fornecer os meios adequados à execução da pena. Não se pode exigir a punição sem que haja o local para que o apenado cumpra seu “dever” para com o Estado. Quando esse local é hostil, insalubre, perverso, ameaçador ou, de forma ampla, inapropriado, a permanência nesse ambiente é, por si só, uma sanção penal. Celas superlotadas, um ambiente propício à proliferação de epidemias e ao contágio de doenças, péssima alimentação fornecida, falta de higiene básica, seguindo uma imensa lista de fatores que fazem perceber a dupla punição (aquela propalada pelo Estado-juiz e aquela cumprida na realidade dura do cárcere). Pune-se com a saúde e a liberdade. Pune-se com a integridade física/ e moral e a liberdade. Pune-se com a honra e a liberdade. Pune-se até mesmo com a vida, apesar da falta de previsão legal e do novo momento trazido pela a Constituição Cidadã, salvo casos excepcionais. Falar que não existe pena de morte na situação atual é, portanto, uma falácia.


5. LABELING APPROACH E A REINCIDÊNCIA

Os criminosos não são achados do direito penal. São apenas uma realidade distorcida pelo sistema de repressão. A dificuldade de criminalizar os ricos, a grande quantidade de pobres nas prisões, as conhecidas cifras negras, entre outros, são alguns dos elementos operacionalizadores da produção de criminosos (SELL, 2007, p. internet doc online).

 O labeling approach como uma das mais expressivas correntes da nova criminologia, surgiu na década de 60 nos EUA, sofrendo forte influência do chamado interacionismo simbólico, que pregava ser a realidade social um conjunto de interpretações dos indivíduos dos fatos que os circundam, ou seja, uma conduta só será criminalizada se o sistema de poder assim quiser. Dessa forma, segundo H. Becker, o delito não está na ação ou no indivíduo, mas em como a sociedade irá interpretar esse fato, o que varia são as suposições para cada caso (SELL, 2007, p. internet doc online).

Então, o criminoso será aquele o qual a sociedade imputou o rótulo de delinquente. Ele pode não se reconhecer como tal, mas, devido à sua marginalização, o é perante os membros do seu grupo. As instituições totais, ambientes que isolam um sem número de pessoas para compartilharem, na sua solidão, uma rotina mecânica e alienante que o Estado impõe como medida de reeducação, opera no criminoso um ritual de desconstrução e reconstrução simultânea, transformando sua própria identidade e a concepção moral que tinha de si (DIAS e ANDRADE, s. d., p. 351).

Destarte, a delinquência secundária ganha papel de destaque na teoria do etiquetamento, haja vista que os impasses criados pela reação social à delinquência primária necessitam fortemente de outra resposta, pois a segregação, estigmatização e punição (ferramentas da resocialização), ironicamente (ou não), são incapazes de mantê-los no seio social de acordo com as regras que o Estado estabelece.

Nesse cenário, a reincidência apresenta-se recorrentemente como elemento a serviço da teoria da prevenção especial negativa, uma vez que a pena está longe de ser a solução para a criminalidade.

Como uma das formas de estabelecer o etiquetamento a determinados indivíduos, a reincidência encontra fundamento em diversas teorias; a mais difundida é a que afirma que a reincidência demonstra o grau de periculosidade do indivíduo;  para a teoria psicológica da culpabilidade, a reincidência demonstra a sobreposição da decisão do autor quanto à decisão do Estado-juiz; a teoria normativa da culpabilidade, por sua vez, extrai que a condenação anterior não foi suficiente para a restauração do indivíduo, sendo necessária a “dupla punição”; por fim, tem-se a teoria que justifica a agravação da pena pela reincidência com base na necessidade de o Estado transparecer uma imagem pública íntegra, não sendo permitida demonstração de insegurança ao povo devido a afetação da imagem pública do Estado que não soube garantir a segurança de seu povo (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2002, p.838-840).

Todas essas teorias são igualmente inconvenientes e absurdas. Punir um homem indivíduo, agravando sua pena, por ele não ter se reeducado e resocializado, é resultado de um sistema falido, hipócrita e estigmatizante. Ora, se a pena se propõe a atingir as suas funções R’s (reeducar, ressocializar e reintegrar), como um criminoso deixa a prisão e comete outro crime?

Construir toda uma teoria que justifique a criação de mais um estereótipo, abafando a responsabilidade do Estado na atual conjuntura em que se encontra o sistema prisional, não pode ser a solução para a criminalidade!

O cidadão classificado como delinquente é produto dessa mesma sociedade que diz que ele não é capaz de se adequar aos seus padrões. A insuficiência das funções da pena, a crise do sistema punitivo, a não adequação à realidade social que bate à porta, é geradora de institutos penais como esse que servem apenas para degradar aos poucos a concepção de que essas pessoas têm de si.

Sobre as autoras
Ingrid de Lima Barbosa

Acadêmica do 6º período de Direito/UFRN

Rute de Figueiredo Lopes

Acadêmica do 6º período de Direito/UFRN

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Ingrid Lima; LOPES, Rute Figueiredo Lopes. A deslegitimação do aumento de pena pelo instituto da reincidência:: uma análise social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4843, 4 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51383. Acesso em: 22 dez. 2024.

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