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A deslegitimação do aumento de pena pelo instituto da reincidência:

uma análise social

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6. DADOS SOBRE A REALIDADE CARCERÁRIA E A REINCIDÊNCIA

Nesse prisma, é importante trazer alguns números que elucidam os reflexos da pena sobre o indivíduo e sobre a sociedade de um modo geral. Assim, de acordo com o Informe Regional de Desenvolvimento Humano (2013-2014) do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)[1], o percentual de reincidência no Brasil é um dos mais altos, chegando a até 70% (GOMES, 2014, p. internet doc online) [2].

Segundo a mesma fonte, de cada 10 presos pelo delito de roubo, 7 reincidiram no Estado de São Paulo (dados de janeiro de 2001 a julho de 2013) e 41% são menores. O levantamento mostra que, dentre os reincidentes, 20,5% cometeram o primeiro roubo antes dos 18 anos e 20,6% com menos de 17[3].

O método usado foi conservador, e o número dos que voltaram a roubar no período citado pode ser mais alto. Roubos cometidos na mesma área em curto intervalo de tempo não foram computados, por serem provavelmente arrastões, que entram na categoria de crime continuado. Pessoas diferentes com o mesmo nome – ou homônimos – foram excluídas, verificando-se o número do documento ou o nome da mãe (SANTANA, 2014, p. internet doc online) [4].

Foram examinados 14.699 autores de roubos, dos quais 10.200, ou 69%, cometeram roubos mais de uma vez, o que os técnicos chamam de “reiteração”. A amostra é bastante pequena, para o período:, pois, no ano passado (2013), a média mensal de BOs de roubos no Estado de São Paulo foi de 29.320 e, no período 2011-2013, de 27.440 (SANTANA, 2014, p. internet doc online)[5].

Com dados desse tipo não se pode afirmar que a pena cumpre seu papel de prevenção e reprovação previsto no art. 59, I do CPB, muito menos de ressocializar, reeducar e todas as outras ditas funções da pena R’s. Dessa forma, não seria admissível aplicar a agravante da reincidência, tendo em vista que nem a própria pena é legítima.


7.  AGRAVANTE DA REINCIDÊNCIA, O STF E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Sobre o assunto em tela, decidiu o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, em 04 de abril de 2013, no Recurso Extraordinário nº 453.000, pela constitucionalidade da aplicação do instituto da reincidência como agravante da pena em processos criminais, ignorando a jurisprudência da Corte Interamericana de Direito Humanos, no caso Fermin Ramirez contra a Guatemala, julgado pela Corte em 2005[6].

Em seu voto, o ministro Marco Aurélio sustentou que “o instituto constitucional da individualização da pena respalda a consideração da reincidência, evitando a colocação de situações desiguais na mesma vala”[7], negando provimento ao recurso. Conforme asseverou o ministro, o instituto da reincidência está em harmonia com a lei básica da República – a Constituição Cidadã – e “a regência da matéria circunscreve-se com a oportuna, sadia e razoável política criminal, além de envolver mais de 20 institutos penais”[8]

“Descabe dizer que há regência a contrariar a individualização da pena. Ao reverso, leva-se em conta, justamente, o perfil do condenado, o fato de haver claudicado novamente, distinguindo-o daqueles que cometem a primeira infração penal”, afirmou o ministro. Seu voto foi acompanhado por todos os demais ministros que participaram do julgamento – Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e o presidente, Joaquim Barbosa.[9]

Essa decisão, como dito anteriormente, não foi harmônica com a apresentada pela Corte Interamericana de Direitos Humano, onde em que o ministro E. Raúl Zaffaroni declarou inconstitucional todos os dispositivos legais que preveem agravamento de pena em relação ao reincidente e, em belas palavras, disse (GOMES, 2013, p. internet doc online)[10]:

Fica claro que a pena aplicada não guarda relação com a culpabilidade pelo fato, sim, reprova-se o autor pela sua qualidade de reincidente, premissa que denota a aplicação de pautas vinculadas ao direito penal de autor e da periculosidade. Cabe destacar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que a invocação da periculosidade ‘constitui claramente uma expressão do exercício do ius puniendi estatal sobre a base de características pessoais do agente e não do fato cometido, isto é, substitui o direito penal do fato, típico do sistema penal da sociedade democrática, pelo direito penal de autor, que abre as portas para o autoritarismo, precisamente em uma matéria na qual se acham em jogo bens jurídicos de grande hierarquia (...)   Em consequência, a introdução no texto legal da periculosidade do agente como critério para a qualificação típica dos fatos e para a aplicação de certas sanções, é incompatível com o princípio da legalidade criminal e, por conseguinte, contrário à Convenção Americana de Direitos Humanos (CIDH, Serie C. n° 126, caso Fermín Ramírez contra Guatemala, sentença de 20 de junho de 2005).

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Percebe-se, portanto, que o julgador brasileiro, nesse caso, está mais preocupado com o estrito legalismo do que com as garantias à dignidade da pessoa humana e aos princípios que regem o direito penal, tais como a individualização da pena e a punição pelo crime cometido, e não pela pessoa do delinquente.


8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O agravamento de pena pelo instituto da reincidência se mostra ilegítimo em face da realidade carcerária brasileira, mostrando-se ineficaz ao que se propõe. Nesse sentido, fica claro que o instituto não se justifica, uma vez que é aplicado especialmente sob o argumento de que seu uso desencorajaria a prática reiterada de delitos, no entanto, a falta de cumprimento de uma pena decente não possibilita que haja uma real reeducação e posterior ressocialização do apenado, mas, pelo contrário, o cumprimento da pena acaba induzindo a reincidência, como se percebe pelos dados coletados, criando um ciclo eterno.

Nesse prisma, a teoria do labeling approach deixa claro que é mais fácil ser visto como um criminoso pelo que é do que pelo que faz. Dessa forma, as funções declaradas da pena não possuem nenhuma efetividade, tendo em vista que não importa encontrar uma pena eficaz que se encaixe no delito, o que importa é saber como superar anos de segregação, humilhação, derrotas e estereotipatização. E, conforme demonstrado, nosso atual sistema penal não está preparado para isso.

Faz-se premente uma maior atenção no que diz respeito ao verdadeiro motivo que leva a delinquir. Entender o ser humano e suas relações sociais é imprescindível para a aplicação de medidas eficazes ao controle da criminalidade. Não é solução a aplicação de um instituto falido, que não se justifica e só se mostra ineficaz.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Ceila Sales de Almeida Ceila Sales de. O agravamento da pena por reincidência na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Jusnavigandi, S. l., ago. 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/43053/o-agravamento-da-pena-por-reincidencia-na-jurisprudencia-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos-e-do-supremo-tribunal-federal-brasileiro>. Acesso em: 10 nov. 2015.

DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. A sociedade criminôgena. In: DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminôgena. Coimbra: Coimbra Editora, s.d., p. 244-361.

GOMES, Luiz Flávio. Brasil: reincidência de até 70%. 2014. Disponível em: <http://institutoavantebrasil.com.br/brasil-reincidencia-de-ate-70/>. Acesso em: 10 nov. 2015.

GOMES, Luiz Flávio. Reincidência: novo conflito entre o STF e a Corte Interamericana. 2013. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/reincidencia-novo--conflito-entre-o-stf-e--a-corte-interamericana/11076>. Acesso em: 10 nov. 2015.

MORAES, Henrique Viana Bandeira. Das funções da pena. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 108, jan 2013. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12620>. Acesso em: 07 nov 2015.

NETTO, Alamiro Velludo Salvador. Criminalidade Moderna versus Criminalidade de Massa (I). In: SÁ, Alvino Augusto de.; SHECARIA, Sérgio Salomão (Org.). Criminologia e os problemas da atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.

SÁ, Alvino Augusto de.; SHECARIA, Sérgio Salomão (Org.). Criminologia e os problemas da atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.

SANTANA, Lourival. De cada 10 assaltantes, 7 voltam a roubar no Estado e 41% são menores. 2014. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,de-cada-10-assaltantes-7-voltam-a-roubar-no-estado-e-41-sao-menores,1123132>. Acesso em: 10 nov. 2015.

SANTOS, Bianca Mary Nobre. Paradoxo entre as funções reais e as funções declaradas da pena restritiva de liberdade no direito penal brasileiro. Webartigos, 2013. Disponível em: <http://www.webartigos.com/artigos/paradoxo-entre-as-funcoes-reais-e-as-funcoes-declaradas-da-pena-restritiva-de-liberdade-no-direito-penal-brasileiro/116453/>. Acesso em: 07 nov. 2015.

SELL, Sandro César. A etiqueta do crime: Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1507, 17 ago. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10290>. Acesso em: 7 nov. 2015.

SILVA, Adrian Barbosa e. Teoria agnóstica da pena e a crise das funções da pena na era do punitivismo. Revista de Criminologia e Ciências Penitenciárias, São Paulo, v. 03, n. 02, p.1-23, jun-ago 2013.

STF declara constitucionalidade da reincidência como agravante da pena. 2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=235084>. Acesso em: 10 nov. 2015.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.


notas

[1] PNUD.  Informe Regional de Desenvolvimento Humano. 2013-2014. Disponível em: <latinamerica.undp.org>. Acesso em: 10 nov. 2015. p. 129.

[2] GOMES, Luiz Flávio. Brasil: reincidência de até 70%. 2014. Disponível em: <http://institutoavantebrasil.com.br/brasil-reincidencia-de-ate-70/>. Acesso em: 10 nov. 2015.

[3] SANTANA, Lourival. De cada 10 assaltantes, 7 voltam a roubar no Estado e 41% são menores. 2014. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,de-cada-10-assaltantes-7-voltam-a-roubar-no-estado-e-41-sao-menores,1123132>. Acesso em: 10 nov. 2015.

[4] SANTANA, Lourival. De cada 10 assaltantes, 7 voltam a roubar no Estado e 41% são menores. 2014. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,de-cada-10-assaltantes-7-voltam-a-roubar-no-estado-e-41-sao-menores,1123132>. Acesso em: 10 nov. 2015.

[5] SANTANA, Lourival. De cada 10 assaltantes, 7 voltam a roubar no Estado e 41% são menores. 2014. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,de-cada-10-assaltantes-7-voltam-a-roubar-no-estado-e-41-sao-menores,1123132>. Acesso em: 10 nov. 2015.

[6] A avaliação da periculosidade do agente implica uma apreciação do juiz sobre a probabilidade de que os cometeram atos criminosos acusados ​​no futuro, ou seja, adicionado à denúncia apresentada pelos fatos, a previsão de eventos futuros que possam vir a ocorrer. Nesta base, o papel do Estado penal se desenrola. No final, ele iria sancionar o indivíduo - incluindo a pena de morte - não apoiar o que ele fez, mas o que é. Desnecessário ponderar as implicações são óbvias, esse retorno ao passado, absolutamente inaceitável do ponto de vista dos direitos humanos. A previsão será feita no melhor dos casos, a partir do diagnóstico oferecido por uma perícia psicológica ou psiquiátrica do acusado. Consequentemente, a introdução no texto penal da periculosidade do agente como critério para a caracterização típica dos fatos e da aplicação de certas penas é incompatível com o princípio do direito penal e, portanto, contrária à Convenção. (ALMEIDA, 2015, p. internet).

[7] STF declara constitucionalidade da reincidência como agravante da pena. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=235084>. Acesso em: 10 nov. 2015.

[8] STF declara constitucionalidade da reincidência como agravante da pena. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=235084>. Acesso em: 10 nov. 2015.

[9] STF declara constitucionalidade da reincidência como agravante da pena. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=235084>. Acesso em: 10 nov. 2015.

[10] GOMES, Luiz Flávio. Reincidência: novo conflito entre o STF e a Corte Interamericana. Carta Forense. São Paulo, 03 maio 2013. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/reincidencia-novo--conflito-entre-o-stf-e--a-corte-interamericana/11076>. Acesso em: 10 nov. 2015.

Sobre as autoras
Ingrid de Lima Barbosa

Acadêmica do 6º período de Direito/UFRN

Rute de Figueiredo Lopes

Acadêmica do 6º período de Direito/UFRN

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Ingrid Lima; LOPES, Rute Figueiredo Lopes. A deslegitimação do aumento de pena pelo instituto da reincidência:: uma análise social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4843, 4 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51383. Acesso em: 22 dez. 2024.

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