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O Ministério Público:

ônus da prova e a dignidade humana

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Agenda 15/05/2004 às 00:00

TÍTULO III

O QUE É VERDADE?

Na Idade Média, quando imperou por séculos a Inquisição (de triste memória para a humanidade, cujos reflexos maléficos ainda persistem na cultura da sociedade brasileira, como o apoio à tortura, a importância pela busca da confissão do investigado e as prisões provisórias), a verdade era metafísica, ou seja, o pensamento abstrato de sacerdotes, ligados ao pensamento divino que representavam, era a mais pura verdade.

Sabiam os representantes de Deus na Terra, o que era ou não uma heresia, ou quando uma influência maléfica ou demoníaca dominavam as ações de um ser humano e o que deveria ser feito para purificá-los. O sofrimento físico e moral purificaria a alma.

Assim, tais absurdos tomaram conta do pensamento obscuro da sociedade à época, com extrema insegurança às pessoas.

O sacerdote investigador instaurava um procedimento que, sem o devido contraditório, chegava a uma conclusão, através de indícios, muito embora não confiáveis empiricamente, qual seja, sem que houvesse um respaldo da materialidade ou do que se pudesse contraditar. Daí a verdade metafísica, metapsíquica, fenomênica, enfim, abstrata e obscurantista.

Com o fim da inquisição, a denominada ciência("a ciência", como gostam de denominar os cientistas), com seus traumas por tantos séculos de obscurantismo, separou-se totalmente do pensamento abstrato. Seria agora verdade, o que se pudesse comprovar empiricamente, materialmente, isto é, o que se mede, o que se pinça, o que se vê, o que se comprova através dos cinco sentidos.

No Direito Penal, o positivismo de Lombroso e Ferri trazem para o Direito Penal a física mecanicista de Newton, o naturalismo de Darwin, a sociologia criminal e a criminologia, além da psiquiatria e psicologia forense. São as correntes materialistas e socialistas que invadem a cultura jurídica, influenciando o fascismo, o nazismo e o marxismo e, evidentemente, os Estados Totalitários latino-americanos.

Basta ver o artigo 13 "caput" do Código Penal Brasileiro que temos nitidamente a lei da física mecanicista, tentando explicar a conduta humana, suas causas, concausas e efeitos.

A explicação científica para o mundo, ou cientificismo faz do homem um ser determinista e, em muitos casos, perigoso, a ser combatido preventivamente, antes mesmo que se inicie as práticas de novos crimes.

O neokantismo traz de volta o valor da confissão, impondo valores éticos e morais ao Direito Penal. É o criminoso que reconhece que os valores são consensuais e que errou e, por isso, arrepende-se e confessa, tendo então sua pena atenuada(art. 65, III, alínea "d", do Código Penal), em um claro reconhecimento do Estado à confissão espontânea e ao arrependimento(valor moral religioso).

Na aplicação da pena, conforme artigo 59 do Código Penal é de crucial importância a personalidade do agente e sua conduta social. Portanto, o modo de vida do agente delituoso, pesa na fixação da pena base, ou seja, não importa somente o que ele fez(o fato em si), mas igualmente o que ele é!

A periculosidade, aliada à moral e aos costumes, faz com o que o Estado Brasileiro veja agravante no fato do réu ser reincidente, conforme artigo 61, I, do Código Penal(culpabilidade do autor do fato e não culpabilidade do fato praticado pelo autor).

Dessa forma, se um fato empiricamente pode ser provado e a autoria é certa, mesmo porque o réu é confesso, a condenação será a conseqüência, sem maiores análises das presenças ou não dos fins da pena: prevenção geral e específica.

Países que puniram pessoas porque são perigosas causaram tragédias humanas, como a perseguição nazista a ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, testemunhas de Jeová(à época conhecidos na Alemanha como "leitores da bíblia"), judeus, eslavos, etc.

A busca da prova da autoria e da materialidade, não pode sobrepor-se à busca dos valores da dignidade humana. Se a presunção é de inocência pelo crime que se imputa a alguém, não se pode deduzir que essa pessoa irá voltar à delinqüir porque é pobre e por não possuir residência fixa ou porque não possui trabalho, mesmo porque vivemos em um país cuja maioria das pessoas são pobres e sem moradia, além de uma grande massa de desempregados. A prova da verdade que se busca, nada mais é do que a justificativa de exercermos o controle social dos excluídos, assim como, guardadas as devidas proporções, nazistas controlaram os seus "perigosos".

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Um fato não se encontra sobejamente provado porque há confissão e porque existe nos autos a materialidade. Resta-nos provar que o bem jurídico foi afetado de forma relevante pela conduta do autor e que estão presentes os fins da pena(geral e específico).

Como vimos, o pensamento abstrato obscuro da inquisição retornou com o valor probante da confissão, inundando o território brasileiro da odiosa prática de tortura, defendida e decantada por muitos cidadãos, notoriamente os de classe média, pois são as maiores vítimas dos crimes contra o patrimônio, como por exemplo, o furto e roubo(respectivamente, arts. 155 e 157 do Código Penal).

A visão inquisitorial ainda presente no inconsciente coletivo brasileiro, leva ao raciocínio de que a tortura é uma forma de correção do criminoso(purificação da alma), quando na realidade a tortura é a imposição da vontade do torturador sobre sua vítima, tratando-se da subjugação de um ser humano pelo outro, através da força bruta. A vontade do torturador para que o torturado confesse sobrelevará a verdade sobre o fato, pois o violado não suportará física e psiquicamente as formas de tortura a que estará sujeito, preferindo que o sofrimento cesse e, se para fazê-lo cessar a confissão é o único meio, confessará a prática do delito que se "investiga"( sobre a prática de tortura e a submissão do torturado, vide ELIO GASPARI, "Ditadura Envergonhada e Ditadura Escancarada", editora Companhia das Letras, ano 2002).

Incrível que muitas vezes, o crime mais grave(tortura) é praticado para descobrir-se o delito menos grave, como o furto, que é cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa.

A prova da existência do fato, de sua autoria e da materialidade acabam levando o réu a uma condenação, superlotando presídios, com muitas pessoas que sequer necessitavam cumprir uma pena criminal(por ausente o fim específico da pena), o que levou o sistema penitenciário a uma falência, somando-se evidentemente, à falta de investimentos no setor pelo poder público.

O próprio inquérito policial é resquício inquisitorial, sem contraditório e sem garantida à ampla defesa do indiciado, embora ser indiciado já seja um estigma na vida de um cidadão.

A final, o que é verdade? Trata-se de um conceito ôntico ontológico. A colocação de adjetivos sobre o que é verdade por si só, leva-nos a crer que o ser humano sequer possui um conceito pronto e acabado sobre a questão, pois se algo ocorreu e é verdadeiro, por que "verdade real"? Se não há como saber como tudo de fato ocorreu, como afirmar que o que se encontra nos autos reflete uma verdade? Daí afirmo, sem rodeios, que os juristas lidam tão somente com a verdade formal.

Para demonstrarmos que o dogma da verdade real é uma ficção neokantista, necessário façamos a diferenciação do que seja fato e releitura do fato. Por exemplo: "A" mata "B"(é o fato); a polícia inquire testemunhas, realiza perícias, colhe os depoimentos das pessoas supostamente envolvidas, etc. No caso, a polícia está realizando uma releitura do fato. Assim, o fato já ocorreu! Nenhuma autoridade estatal terá contato real com o fato, mas tão somente com a interpretação do que ocorreu. Basta esse raciocínio para ficar demonstrado a inexistência do ônus da prova de se buscar a verdade real, pois esta é uma ficção criada ideologicamente por países totalitários, com o evidente intuito de permitir-se ao juiz descer de sua inércia e imparcialidade, a fim de ajudar a "combater o crime", auxiliando, muitas vezes, a acusação, em detrimento ao direito do cidadão de ser julgado por um magistrado totalmente isento e sobretudo um garantidor de sua liberdade e não o seu algoz!

O Ministério Público ao receber o inquérito policial e ofertar a Denúncia estará realizando a segunda releitura do fato; já o Magistrado ao sentenciar estará operando a terceira releitura do fato.

Os operadores do Direito Penal possuem contato com as versões sobre o fato, mas jamais com o fato em si. A vítima dirá na polícia ou em juízo que provocou o réu? O acusado que confessa um delito, dirá igualmente que planejara o delito por vários meses anteriores? São circunstâncias que não aparecerão nos autos, pois sempre as pessoas têm motivos para escondê-las. Até mesmo testemunhas compromissadas, seja por medo, receios, vínculos afetivos, valores morais sobre o fato ocorrido, ou até mesmo o simples nervosismo durante o depoimento em juízo, faz com que se coloquem na defensiva. E, se pararmos para uma simples reflexão, iremos entendê-los, pois o ser humano é assim mesmo, coloca-se na defensiva quando se vê ameaçado, seja essa ameaça real ou imaginária em seu psiquismo.

Dissemos anteriormente que o autor delituoso, que é um cidadão com todo direito de não aceitar uma norma em vigor como válida, ao deliberar violá-la perante uma situação fática, está comunicando à sociedade e à vítima que não aceita a validade do imperativo normativo. Ocorrendo a violação da norma, temos algumas hipóteses:

1.havendo consenso entre autor e vítima não haverá crime, pois a vítima igualmente é um cidadão que possui o direito de contestar a norma e aderir à comunicação do autor. Aqui não há busca de provas sobre quaisquer verdades. Em uma sociedade conflitiva, não será papel do Direito Penal impor ao réu valores éticos e morais, que a própria vítima não contesta;

2.há o consenso social que a norma não é válida, embora a lei encontre-se formalmente em vigor. Não há crime, pois a função do Direito Penal é tutelar bens jurídicos quando outros ramos do Direito Penal não possam fazê-lo. Não haverá crime também porque o poder emana do povo(art. 1º, p.ún. da CF) e, se consensualmente o povo entende que a norma não mais protege um bem juridicamente relevante, o estigma de criminoso não haverá que recair sobre o autor do fato, tão somente para impor valores morais de uma classe dominante ou religião majoritária, pois violaria sua dignidade humana(art. 1º, inciso III, da CF);

3.Majoritariamente ou consensualmente, a sociedade entende que a norma é válida, estabelecendo-se um dissenso entre autor e vítima e entre autor e sociedade. Esta será representada pelo Estado-Acusação(art. 129, I, da CF). Com a persecução penal estabelece-se o litígio, pois o direito de punir irá contrapor-se ao direito de liberdade e, como não existe a busca da verdade real no Direito Processual Penal de um Estado Democrático de Direito, a lide estará estabelecida e incumbirá ao Ministério Público, titular da ação penal, perante a verdade formal a ser demonstrada para o julgador (mero receptor de argumentos da acusação e da defesa), todo ônus da prova.

Agora podemos definir o que é verdade em um processo penal garantista: verdade é tudo o que comprovou-se licitamente nos autos em um processo-crime, pelos sujeitos processuais, através dos meios legítimos, cuja parte adversa, mesmo obtendo a oportunidade ampla de contraditá-la, foi incapaz de desconstitui-la formalmente.

Assim, afastando-se o dogma ditatorial da "verdade real" e claramente adotando-se a "verdade formal", isto é, tudo o que é produzido perante o crivo do contraditório, podemos conceituar o que seja prova em um Estado Democrático de Direito, afastando-se, desde já, qualquer menção a "prova" ou "verdade" que não tenham sido produzidas na fase processual(no inquérito policial, portanto, há indícios, tão somente).


TÍTULO IV

CONCEITO DE PROVA NO PROCESSO PENAL DEMOCRÁTICO

Prova é tudo o que foi produzido através do devido processo legal, de forma lícita, sob o crivo do contraditório, na presença de um juiz imparcial, em obediência estrita às regras e normas materiais, processuais e constitucionais, cuja parte contrária, mesmo tendo a ciência e a oportunidade de contestá-la, não foi capaz de desconstitui-la, possuindo, cada uma das provas produzidas, valor relativo, sendo sempre analisada em conjunto com as demais provas existentes nos autos, sempre fundamentada pelo Estado-Juiz.

Diante dos conceitos de verdade e de prova no Estado Democrático de Direito, bem como, o disposto no artigo 129, I, da CF, resta evidenciado que o Inquérito Policial não faz prova, mas traz indícios, tratando-se de mera peça informativa e, sequer é essencial para oferta da Denúncia, nada impedindo ao Ministério Público de investigar uma notitia criminis ab initio, notoriamente nos delitos em que agentes do Estado estejam envolvidos ou naqueles em que a estrutura à disposição da Instituição é suficiente para iniciar e concluir investigações, tais como peritos, oficial de promotoria, etc.

Mesmo para os que dizem que a materialidade no inquérito é uma prova, como por exemplo, a afirmação de que o Laudo de Exame Cadavérico traz a certeza de que houve um homicídio, este mesmo laudo, por si só, não pode indicar a autoria.

Concluindo o presente título, entendemos que um Juiz verdadeiramente democrático sequer deverá ler o inquérito ao proferir a Sentença, salvo perícias e laudos que não foram refeitos sob o crivo do contraditório. Não deverá interessar-se se o réu confessou ou não o delito na fase inquisitorial. Não se interessará pelo que as testemunhas disseram na fase inquisitiva, etc., pois é evidente que, diante do disposto no artigo 129, I, da CF, o inquérito policial destina-se única e exclusivamente para formar a opinião do titular da ação penal sobre o delito que se apurou e se haverá ou não a oferta da Denúncia. É para isso que serve o inquérito e nada mais! A lei infraconstitucional é que ainda não adaptou-se à democracia, pois o atual Código de Processo Penal, remonta à ditadura do Estado Novo. Evidente que o Inquérito já pode ser remetido diretamente da Delegacia de Polícia para o Ministério Público, vez que o Juiz nada terá a fazer com os autos investigatórios, a não ser o clássico Despacho já timbrado pela escrivania ou nos carimbos já prontos: "Ouça-se o Ministério Público".

O Magistrado democrático entenderá que não faz parte do tão propalado "combate ao crime", pois se o fizer não julgará com imparcialidade o cidadão que está sendo acusado de uma prática delituosa. O juiz é sobretudo um garantidor do cidadão, não o seu algoz! Não tem que cobrir falhas da Polícia ou da atuação do Ministério Público, quando aplica, por exemplo, o artigo 384, em seu parágrafo único, do Código de Processo Penal. Tal artigo é inconstitucional, violando a exata separação dos papéis dos sujeitos processuais, notoriamente o disposto no artigo 129, I, da Constituição Federal, pois deixa sua imparcialidade, sua isenção e neutralidade, a fim de ajudar a acusação a denunciar corretamente, piorando a situação do réu, que após, será julgado pelo mesmo juiz que proferiu a decisão determinando a modificação do libelo. É inconstitucional, sobretudo, porque a pessoa humana possui o direito de ser julgada por um juiz totalmente isento da persecução penal e é essa a vontade do constituinte originário ao determinar exatamente quem é o titular da ação penal: a de conceder ao cidadão que deliberou violar a norma, um juiz que não toque na investigação e na persecução penal e que somente dirija o processo e o julgue, após ser o receptor dos argumentos formais das partes, pois onde há o dissenso, não há verdade, há versões! Portanto, a "verdade" é apenas formal. Já o direito de liberdade é indisponível(art. 5º, "caput" da CF) e não poderá ser violado por dogmas totalitários, como o da busca da verdade real.


Conclusão

Somente com a introjecção pelos operadores do Direito e pelos legisladores dos princípios democráticos e garantísticos, da dignidade da pessoa humana, forjando uma reforma global do processo penal, poder-se-á tornar o processo não um formalismo que toma tempo, dinheiro, lotam presídios e cadeias públicas desnecessariamente, mas sim um efetivo instrumento da vontade social de coibir fatos socialmente danosos, tornando efetiva a norma penal, com a proteção de bens jurídicos relevantes.

Abandonando-se dogmas superados como o da busca da verdade real, que não existe, bem como, deixar o entendimento de que basta provar a autoria e a materialidade de um fato típico, antijurídico e culpável para que seja imposta uma pena privativa de liberdade. Atentar para o fato de que, sempre que uma prova encontra-se nos autos, ali está presente a verdade formal e que somente os autores dos fatos típicos e antijurídicos relevantes, cujos fins da pena estejam presentes, tanto o geral, quanto o específico(culpabilidade como um juízo de imputação, que é subjetiva), deverão receber pena, criando-se uma consciência normativa na sociedade quanto aos bens jurídicos que encontram-se, de fato, protegidos pela norma.

Sobre o autor
Sérgio Abinagem Serrano

Promotor de Justiça- Titular da 13ª Promotorial de Justiça de Goiânia, Especialista em Direito Penal, Processual Penal e Criminologia, Membro da banca examinadora de concurso para ingresso na carreira do Ministério Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SERRANO, Sérgio Abinagem. O Ministério Público:: ônus da prova e a dignidade humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 312, 15 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5189. Acesso em: 23 dez. 2024.

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