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Prisão temporária:

uma interpretação conforme a Constituição da República

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Agenda 14/05/2004 às 00:00

5. DEVIDO PROCESSO LEGAL E PRISÃO TEMPORÁRIA.

O devido processo legal tem sua origem no direito anglo-saxônico do século XIII com a Magna carta do Rei João sem terra. Os direitos de liberdade, propriedade e à vida dos barões ingleses só poderiam sofrer limitações consoante a law of the land, de acordo com os costumes da terra e sedimentado nos precedentes jurisprudenciais. Mais tarde a locução law of the land foi substituída pelo due process of law. Assumindo uma face adjetiva, este devido processo legal encerra as garantias do réu com exigência de um procedimento regular, contraditório, ampla defesa, da representação por advogado, entre outros [12].

Neste ponto reside um dos pontos nevrálgicos do debate que ora travamos. Se, como diz a Carta Magna de 1988 no inciso LIV do art. 5º que: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal", a priori a prisão temporária de alguém se apresenta manifestamente inconstitucional. No inquérito policial, entendimento dominante da doutrina e jurisprudência, não há assento para o contraditório, porquanto se trata de procedimento administrativo destinado apurar autoria e materialidade de infração penal, não havendo acusação formal contra quem quer que seja. Se a prisão temporária só é cabível no curso de investigações policiais, o encarceramento sob este título afrontaria o disposto no art. 5º, inciso LIV da CF/88. Não houve atendimento ao devido processo legal para efetivação da privação da liberdade.

O entendimento não poderia ser tão simples quanto prima facie parece, pois a mesma lei magna excepciona o mandamento quando cuida dos casos de prisão em flagrante ou por ordem de autoridade judiciária competente (art. 5º, inciso LXI). A privação da liberdade de forma provisória ainda no curso da informatio delicti também pode se afigurar legítima e constitucional, desde que encontre amparo nos interesses superiores da higidez da coletividade. Desde que encontre amparo no bem comum a ser preservado. Faz parte das restrições a direitos individuais que ao Estado é lícito adotar, quando sua finalidade primária é a tutela do interesse público. Desta forma compreende-se que havendo periculum libertatis, com risco efetivo de frustração da aquisição de provas causada pelo suposto infrator, o direito de liberdade do cidadão deve ceder ao interesse punitivo do corpo social. Se este cidadão ameaçado em sua liberdade tem em seu desfavor elementos probatórios que o indique como provável autor ou partícipe daquelas infrações referidas no inciso III do art. 1º da lei 7960/89 (fumus comissi delicti), não havendo à disposição da autoridade outros meios de provas aptos a impulsionar as investigações, havendo recusa do imputado em fornecer elementos de sua identificação e residência, esta prisão, em tese, é constitucional. O pedido de prisão temporária deverá estar fundamentado e demonstrar da real necessidade da medida. Note-se que cogito da fundamentação do pedido e não exclusivamente do decreto prisional. Só o juiz criminal poderá decretar tal prisão. Não há afronta ao due process of law, em tese, por se tratar de exceção contemplada pela própria lei magna do país.


6. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E PRISÃO TEMPORÁRIA.

Cuidaremos doravante de outro aspecto sensível da prisão temporária quando cotejamos com o princípio da proporcionalidade (ou da razoabilidade). PAULO BONAVIDES ensina que este princípio deita raízes na doutrina administrativista, encontrando abrigo nas modernas constituições [13]. Para este douto professor a proporcionalidade está implícita no texto constitucional de 1988 [14]. A doutrina identifica no princípio da proporcionalidade três elementos, adiante resumidos: o da adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu. A adequação, tem conhecida como pertinência ou aptidão, nos deve dizer se determinada medida tomada pelo poder público representa o meio certo para concretização de um fim de interesse público, se existe adequação entre o meio e o fim colimado pelo Estado [15]. O segundo elemento é o da necessidade, pois por este subprincípio, "a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja" [16]. Se existem outros meios de alcançar o objetivo pretendido pelo poder público, devem ser utilizados os menos gravosos para os cidadãos, os que menos restringem a esfera dos direitos individuais. Por fim a proporcionalidade em sentido estrito no qual "a escolha recai sobre o meio ou conjunto de meios que, no caso específico, levarem mais em conta o conjunto dos interesses em jogo" [17].

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Se a prisão de alguém é um meio de que o Estado lança mão para investigação dos delitos, evidente que esta prisão deve atender ao princípio da proporcionalidade no caso concreto. Mister se faz aferir se esta prisão é o meio investigatório idôneo para instrução do inquérito (adequação), se é o meio menos gravoso de que dispõe autoridade para conduzir suas investigações (necessidade) e se no conjunto dos interesses em jogo esta prisão é a medida proporcional a atender fins de interesse público. Uma resposta negativa a esta indagações inquina de inconstitucionalidade a prisão temporária, por se afigurar medida excessiva, injustificável que "não cabe na moldura da proporcionalidade" [18].

Vale salientar com o magistério do ministro do STF GILMAR MENDES que "na prática, adequação e necessidade não tem o mesmo peso ou relevância no juízo de ponderação" Adiante, fulcrado em lições de Pieroth e Schlink arremata: "a prova da necessidade tem maior relevância do que o teste da adequação. Positivo o teste da necessidade, não há de ser negativo o teste da adequação. Por outro lado, se o teste quanto à necessidade revelar-se negativo, o resultado positivo do teste da adequação não mais poderá afetar o resultado definitivo ou final [19].

Se nos afigura inconstitucional, neste particular, por afrontar a razoabilidade, o art. 2º, &3º da lei 8072/90 que preconiza a duração de 30 dias para a prisão temporária naqueles delitos, prorrogáveis por mais trinta dias! Lembremos que a prisão temporária tem cunho investigatório e sessenta dias para alcançar tal intento é excessiva e gravosa demais. Imagine se o cidadão em nada contribuiu para aquele fato criminoso. Até o julgamento do hábeas corpus, o vexame e a humilhação já restaram consolidados.

HÉLIO TORNAGHI quando formula orientações em matéria de prisão provisória não poderia ser mais lúcido: "O Juiz deve ser prudente e mesmo avaro na decretação. Há alguns perigos contra os quais deveriam premunir-se todos o juízes, ao menos os de bem: o perigo do calo profissional, que insensibiliza. De tanto mandar prender, há juízes que terminam esquecendo os inconvenientes da prisão. Fazem aquilo como ato de rotina... o perigo da precipitação, do açodamento, que impede o exame maduro das circunstâncias e conduz a erros". A lei 7960/90 incentiva a precipitação, quando fixa o prazo de 24 horas para o juiz decidir do pedido, após oitiva do Ministério Público, se este não requereu a medida (art. 2º, & 2º). Continua o ilustre mestre TORNAGHI em suas lições advertindo de outro perigo: "o perigo do exagero, que conduz o juiz a ver fantasmas, a temer danos imaginários, a transformar suspeitas vagas em indícios veementes, a supor que é zelo o que na verdade é exarcebação do escrúpulo [20]"(destaques nossos). Vale dizer, quando se trata de julgar acerca da liberdade alheia a precipitação e o exagero devem ser cuidadosamente avaliados.


7. CONCLUSÕES.

Todo ato normativo que emana do estado tem o privilégio de presumir-se constitucional, até que os órgãos do Poder Judiciário se pronunciem no sentido diverso. Em inúmeras ocasiões os tribunais superiores pátrios foram chamados a decidir conflitos que envolviam aplicação da lei temporária. Até onde sabemos, em nenhuma destas ocasiões, cogitou-se do vício de inconstitucionalidade a macular a lei sob nossos comentários. Para se contornar vários dos percalços envolvidos na aplicação da lei 7960/90, há que se fazer uma interpretação conforme à constituição. Na doutrina autorizada de GOMES CANOTILHO este princípio de controle visa assegurar a constitucionalidade da interpretação de normas jurídicas que comportam vários significados, assegurando, destarte, o princípio da prevalência da constituição sobre demais normas que compõe o ordenamento jurídico [21].

Há que se aferir da aplicabilidade desta lei ponderando-a com o princípio da proporcionalidade (razoabilidade) implícito no texto constitucional como entende a doutrina. Preserva-se o texto da lei da prisão temporária, dando-lhe uma interpretação compatível com os princípios constitucionais.

Neste mister, de relevante importância é a figura do juiz criminal garantista pronto para realizar o direito no caso concreto, levando em conta os princípios constitucionais que regem as leis do processo penal. Estes princípios extraem sua normatividade do próprio texto constitucional e se destinam a todos quanto compõem os órgãos do Estado. Vale dizer, na pena mais nobre de JORGE MIRANDA: "Se a constituição é o fundamento da ordem jurídica, o fundamento da validade de todos os actos do estado, direitos fundamentais são os direitos que, por isso mesmo, se impõe a todas as entidades públicas e privadas e que incorporam os valores básicos da sociedade" [22]. Os princípios não se dirigem apenas aos órgãos do Poder Executivo e do Judiciário, uma vez que restringem também a "liberdade de conformação do legislador". Recorro mais uma ao Ministro GILMAR MENDES: "a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade [23](destaque no original).

Embora tenha em seu favor a presunção de constitucionalidade, não podemos olvidar que "os actos normativos só estarão conformes à constituição quando não violem o sistema formal, constitucionalmente estabelecido, da produção desses actos, e quando não contrariem, positiva ou negativamente, os parâmetros materiais plasmados nas regras e ou princípios constitucionais" [24]. A inconstitucionalidade a macular a norma jurídica pode ser apenas de ordem material. Como um recurso legítimo a preservar o ato normativo, LUIZ ROBERTO BARROSO informa que a razoabilidade oferece uma alternativa de atuação construtiva do judiciário para a produção do melhor resultado, ainda quando este não seja o único possível ou mesmo aquele que mais obviamente resultaria da aplicação acrítica da lei [25].

Para HUMBRETO BERMANN ÁVILA há casos em que a constitucionalidade de uma medida é aferida tendo conta não apenas uma relação meio-fim, mas com base na situação pessoal do sujeito envolvido, para este autor "trata-se de um exame concreto-individual dos bens jurídicos envolvidos, não em função da medida em relação a um fim, mas em razão da particularidade ou excepcionalidade do caso individual. (...). A razoabilidade (...) determina que as condições pessoais e individuais dos sujeitos envolvidos sejam consideradas na decisão [26](itálicos no original). Na apreciação desta situação particular é que se insere o papel do juiz criminal garantista a aferir da razoabilidade da prisão temporária de alguém. Não podemos olvidar que no Estado Democrático de Direito, a liberdade não pode ser exceção e sim a regra geral, o princípio absoluto. Tudo o mais é sofisma, já dizia o sumo PIMENTA BUENO [27].


NOTAS.

1 MOSSIN, Heráclito Antonio. Curso de Processo Penal. Vol. 2. São Paulo: Atlas, 1998. Pág. 423.

2 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen júris, 2004. Pág. 643.

3 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 3º volume. 23. ed. rev. atual. e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2001. Pág. 463.

4 Idem. Op. Cit. Pág. 469.

5 KARL LARENZ. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Caleuste Guebenkian, 1997. Pág. 293

6 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002. Pág. 98.

7 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2003. Pág. 392.

8 SEBASTIAN SCHEREER prefaciando livro de PAULO QUEIROZ: Do caráter subsidiário do Direito penal. Lineamentos para um Direito penal mínimo. 1ª. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. Pág. 15.

9 CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito. Porto: Rés-editora. Pág. 412.

10 ANDRADE, Anderson Luiz Almeida. A Razão da prisão provisória: uma incursão pela ontologia do instituto. Revista do TRF 1ª Região, Brasília, n 2 março de 2002.

11 TORNAGHI, Hélio. Compêndio de Processo Penal. Tomo III. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967. Pág. 1092.

12 BROCHARDO, Maria. O princípio da proporcionalidade e o devido processo legal. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 39 n.155 jul/set. 2002. Pág. 128.

13 BONAVIDES, PAULO. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. Pág. 362.

14 Idem, Op. cit. Pág. 395.

15 Idem,Op. Cit. pág. 360.

16 Idem, Op. Cit. pág. 360.

17 Idem, Op. Cit. Pág. 361.

18 Idem, Op. Cit. pág. 361.

19 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires ; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e Direitos fundamentais. Brasília: Brasília jurídica, 2000. Pág. 250.

20 TORNAGHI, Hélio. Op. Cit. Págs. 1080-1081.

21 GOMES CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almeidina, 1997. Págs. 1210-1211.

22 JORGE MIRANDA. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 3. ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra eds, 2000. Pág. 52.

23 Op. Cit. Pág. 250.

24 GOMES CANOTILHO.Op. cit. Pág. 862.

25 BARROSO Luiz Roberto. Princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. In: Estudos de Direito constitucional em homenagem a Paulo Bonavides. Jose Ronald Cavalcante Soares (coordenador). São Paulo: Ltr, 2001. Pág. 342

26 ÁVILA, HUMBERTO BERGMANN Apud GRAU, Eros Roberto. Op. Cit. Pág. 168.

27 PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito Público Brasileiro e análise da Constituição do Império. Brasília: Senado Federal, 1978. Pág. 384


8. BIBLIOGRAFIA.

ANDRADE, Anderson Luiz Almeida. A razão da prisão provisória: uma incursão pela ontologia do instituto. Revista do TRF 1ª região, Brasília, n 2 março de 2002.

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MOSSIN, Heráclito Antonio. Curso de Processo Penal. Vol. 2. São Paulo: Atlas, 1998.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen júris, 2004.

TORNAGHI, Hélio. Compêndio de Processo penal. Tomo III. Rio de Janeiro: Jose Konfino, 1967.

TORUINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 3º vol. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

Sobre o autor
Antoniel Souza Ribeiro da Silva Júnior

acadêmico de Direito da Universidade Católica do Salvador (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA JÚNIOR, Antoniel Souza Ribeiro. Prisão temporária:: uma interpretação conforme a Constituição da República. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 311, 14 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5199. Acesso em: 18 dez. 2024.

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