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A prisão civil na alienação fiduciária em garantia

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Agenda 25/05/2004 às 00:00

IV. Conclusões

Algumas breves conclusões podemos extrair do sumaríssimo estudo empreendido. Sejam elas reduzidas a termo:

a . O contrato de alienação fiduciária em garantia, entendido esse como o negócio mediante o qual há a transferência ao credor do domínio resolúvel e da posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal, importa na efetiva caracterização do devedor fiduciante como depositário da coisa dada em segurança, o que possibilita sua prisão civil, no caso de inadimplemento da obrigação que tem de restituir a res debita. O fato decorre dos permissivos insertos no artigo 66, caput da Lei n.º 4.728, de 14 de julho de 1.965, no artigo 4º do Decreto-lei n.º 911, de 1º de outubro de 1.969 e do artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal de 05 de outubro de 1.988;

b . Em oposição à possibilidade de se ter por exeqüível em nosso sistema de direito a prisão civil do devedor fiduciante, costumam ser levantadas as mais diversas proposições; há contudo, três argumentos mais correntes, os quais podem ser encontrados com uma certa constância, assim em obras doutrinárias como em arestos das cortes da Federação brasileira.

c . O primeiro é representado pela defesa de que a equiparação do devedor fiduciante ao depositário é eivada de gravíssima irrazoabilidade, por representar um desrespeito a toda a tradição legislativa pátria referente ao contrato de depósito; irrazoável, na mesma medida, seria aceitar-se a possibilidade de ele sofrer, em faltando com a sua obrigação, a constrição civil de que no ensejo tratamos.

A asserção é de todo improcedente: se é certo que o Decreto-lei n.º 911/69 de fato violou uma tradição legislativa vigente, é igualmente certo, entretanto, que não há nenhum dever jurídico a impor que as tradições legislativas sejam respeitadas. Não fosse assim, a própria atividade legiferante perderia o sentido, já que em nada poderia verdadeiramente inovar.

Não se pode olvidar: em boa verdade o Decreto-lei n.º 911/69 não "equiparou" o devedor fiduciante ao reus debendi do contrato de depósito; o que ele efetivamente fez foi constituir legalmente o sujeito passivo da alienação fiduciária como depositário. Na fidúcia, portanto, o paciente é depositário – e não equiparado a um. Seja acrescentado que o Decreto-lei n.º 911/69, por ser dotado do mesmo status hierárquico-normativo do Código Civil brasileiro, podia, na mesma medida em que este último, criar novas modalidades de contratos de depósito.

d . O segundo óbice erigido contra a viabilidade do meio coercitivo em debate encontra-se na defesa de que os depósitos nos quais a Constituição Federal admite a prisão civil seriam somente os chamados depósitos típicos, e não os depósitos atípicos – entre os quais estaria aquele pertinente ao pacto de alienação fiduciária.

A impugnação está no fato de a Carta Magna ter se referido genericamente à prisão civil do depositário infiel, sem especificar se ele adviria de um contrato de depósito de tal ou qual espécie. A regra constitucional do artigo 5º, inciso LXVII qualifica-se, desta forma, como uma norma de eficácia contida, i.e., pode ter o seu alcance delimitado pelos conceitos e pelas estruturas da legislação ordinária, a qual é livre para definir, por exemplo, novas modalidades de depósito.

Ainda nesse tocante, é de ser mencionado que se o atual Estatuto Político realmente desejasse excluir do albergue da norma em referência o depósito advindo do contrato de alienação fiduciária, tê-lo-ia feito expressamente. Elementos para tanto havia, eis que nossa vigente Lei Fundamental foi promulgada quase duas décadas após o advento do Decreto-lei n.º 911/69, o qual instituiu a fidúcia como hoje a conhecemos.

e . O terceiro argumento levantado em desfavor da prisão civil do devedor fiduciante está na alegação de que o contrato de alienação fiduciária foi instituído em nosso direito positivo em um período de exceção, e derivou de correntes legiferantes altamente influenciadas e direcionadas ao atendimento dos interesses das instituições componentes do sistema financeiro nacional; caracterizado como uma estrutura contratual "hipercapitalista", socialmente cruel e intrinsecamente desigual, nenhum bom fruto poderia gerar o pacto. Os corolários de sua irrestrita aplicação – como a constrição civil –, assim, seriam tidos por não razoáveis – e, portanto, contrários ao direito.

À asserção é lícito objetar que, se de fato a alienação fiduciária surgiu em uma época de exceção, se de fato ela veio a lume para atender aos interesses das instituições financeiras, e se de fato ela criou uma estrutura contratual eminentemente desigualitária, isso não se afigura como razão impediente para a sua irrestrita aplicação, eis que nenhum dever jurídico impele a que as normas criem necessariamente relações paritárias ou proporcionais. É mesmo na essencial falta de igualdade, aliás, que a nossa infra-estrutura econômica – e com ela a superestrutura jurídica – está baseada.

Some-se a isso a evidência de que ao jurista não é dado em seu labor questionar as razões políticas que conduziram o legislador a editar uma ou outra norma: ele não tem legitimidade para tanto. O seu mister se esgota na análise das potencialidades endógenas do ordenamento; no estudo da aplicação das normas, portanto, tem ele apenas de saber se são ou se não são válidas – somente isso.

f . Mas ainda que a prisão civil do devedor na alienação fiduciária em garantia seja algo claramente permitido em face de nosso direito interno, a questão não está livre de outros questionamentos. Perquire-se acerca da (in) validade da constrição perante o direito internacional, tendo em vista o que dispõe o artigo 7º, §7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, que faculta a prisão por dívidas somente no caso do devedor de prestação alimentícia – não, portanto, no caso do depositário infiel.

Tendo o Brasil regularmente subscrito, aprovado e ratificado a Convenção, é insofismável que ela ganhou vigência no direito pátrio. E o fez irrestritamente, com todas as suas disposições (Decreto n.º 678/92, artigo 1º).

Tomando esse fato como premissa, postula-se ora que o artigo 7º, §7º do Pacto entrou em vigor em nosso direito como norma constitucional – derrogando, portanto, o permissivo inserto no artigo 5º, inciso LXVII da Carta Magna –, ora que ele o fez com o status de lei ordinária – revogando, assim, seja o artigo 1.287 do Código Civil, seja o artigo 4º do Decreto-lei n.º 911/69. De uma ou de outra forma, a prisão civil não seria mais exeqüível, em decorrência da inovação trazida pela regra ultramarina.

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g . O primeiro argumento, que afirma ter o artigo 7º, §7º da Convenção revogado parte do artigo 5º, inciso LXVII da Lei Fundamental, está lastrado no pressuposto de que os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos (somente estes) são incorporados à ordem nacional não como normas de índole ordinária, mas como normas constitucionais. Postula-se que sendo o tratado em causa uma regra de mesmo status e posterior àquela outra do artigo 5º, inciso LXVII da Carta Federal, ter-lhe-ia superado na qualidade de lex nova, subtraindo-lhe a vigência.

A tese carece de qualquer valor científico, eis que pressupõe como válida uma norma que não existe, é dizer: a de que os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos devem ser incorporados ao direito pátrio como normas constitucionais. O ordenamento, de fato, não comporta em absoluto uma tal regra (sem embargo de ela existir em sistemas outros), que entre nós nada mais é que uma proposição política – e não jurídica.

Essa citada proposição, ademais, corresponde à jamais aceita doutrina da primazia do direito das gentes sobre o direito interno, a qual não se coaduna nem com a natureza descentralizada da sociedade internacional nem com o princípio da soberania adotado em Estados como o brasileiro (Constituição Federal, artigo 1º, inciso I).

Ainda, contudo, que o tratado em espécie pudesse ser admitido no sistema de direito nacional como norma constitucional, não seria lícito falar em derrogação do disposto no artigo 5º, inciso LXVII da Norma Ápice, pois o preceito faz parte de um composto de regras que integram uma secção imutável da Constituição Federal – a das chamadas cláusulas pétreas –, protegidas inclusive da ação do maior poder legiferante constituído, o poder constituinte derivado, ex vi do que dispõe o artigo 60, §4º da Lei Maior. Bem, se a própria emenda constitucional não pode revogar a norma que permite a prisão civil do depositário infiel e do devedor de alimentos, a fortiori o Pacto de São José da Costa Rica não pode fazê-lo.

h . Na verdade, em nosso ordenamento os tratados são acatados como regras de índole ordinária, figurando no concerto normativo em par de igualdade com as leis homônimas. É essa a doutrina aceita de há muito por nossa augusta Corte Constitucional.

i . O segundo argumento, portanto, entra em jogo: mesmo que se tenha a regra do artigo 7º, §7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos como de hierarquia ordinária, a prisão civil do devedor na alienação fiduciária seria inexeqüível, já que ela teria revogado seja o artigo 1.287 do Código Civil (se a tomarmos como norma geral), seja o artigo 4º do Decreto-lei n.º 911/69 (se a tomarmos como norma especial), os quais disciplinam a aplicação da medida constritiva.

São palavras ao vento. O artigo 7º, §7º do tratado em causa, admitido em nosso sistema como lei ordinária, não tirou a vigência de nenhuma das normas que lhes são antitéticas, pelo simples e só fato de ser inconstitucional, por confrontar com o artigo 5º, inciso LXVII da Carta de Outubro. Ora, como se sabe, as normas eivadas desse vício não produzem nenhum regular efeito no ordenamento, muito menos o de revogar normas válidas.

j . Poder-se-ia cogitar em contrário, alegando que aquilo que realmente fez o artigo 5º, inciso LXVII da Carta Magna foi facultar (e não ordenar) o Poder Legislativo a instituir a prisão civil nos excepcionais casos que menciona. Sendo assim, nenhuma inconstitucionalidade haveria na regra do artigo 7º, §7º do Pacto de São José da Costa Rica: a norma estaria tão somente deixando de exercitar uma prerrogativa que o legislador ordinário possui – e que pode ou não concretizar.

Mais uma falácia. A Constituição Federal não permitiu que o legislador comum instituísse ou não a prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel. Ela instituiu direta e positivamente a constrição civil nessas hipóteses, nas quais a prisão seria simplesmente disciplinada (e não instituída) pelo legislador – coisa de resto já feita por intermédio do Código Civil e do Decreto-lei n.º 911/69. O que o artigo 7º, §7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos representa, nesses termos, é uma ilícita limitação ao poder legiferante decorrente da Norma Maior. De toda forma, portanto, ele é inconstitucional.


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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ivan Carvalho Montenegro. A prisão civil na alienação fiduciária em garantia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 322, 25 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5200. Acesso em: 22 nov. 2024.

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