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Análise jurisprudencial e doutrinária acerca do reconhecimento do vínculo empregatício dos trabalhadores do jogo do bicho

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O presente artigo analisa a jurisprudência favorável e contra o reconhecimento o vínculo de emprego quando o objeto do contrato trabalhista é ilícito, analisando no caso concreto as relações de trabalho que tem por objeto o jogo do bicho.

A controvérsia acerca do reconhecimento de vínculo de empregatício, envolvendo a atividade do jogo do bicho é um tema pacificado no Tribunal Superior do Trabalho, nos termos da Orientação Jurisprudencial nº 199/SBDI-1, porém em muitos Tribunais Regionais do Trabalho a orientação é no sentido do reconhecimento do vinculo empregatício.


1. POSIÇÕES JURISPRUDENCIAIS E DOUTRINÁRIAS PELO NÃO RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGARÍCIO NO JOGO DO BICHO

O reconhecimento da relação de emprego entre trabalhadores e as bancas de jogo do bicho, tem como seu maior empecilho, a ausência de licitude do objeto do contrato de trabalho.

O Tribunal Superior do Trabalho consolidou entendimento sobre a matéria através da Orientação Jurisprudencial 199 da Seção de Dissídios Individuais - SBDI-1, que dispõe:

“199. JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. NULIDADE. OBJETO ILÍCITO (título alterado e inserido dispositivo) - DEJT divulgado em 16, 17 e 18.11.2010

É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico”. [1]

O TST ao se deparar com casos que tratem sobre o tema, tem se manifestado pela impossibilidade do reconhecimento do vínculo empregatício, pois para a maioria dos nobres Ministros, quem presta serviços em “bancas de jogo do bicho” exerce atividade ilícita, definida por lei como contravenção penal, dessa forma não há que se falar em contrato de trabalho.

O principal argumento é que o objeto do contrato é ilícito, bem como as atividades do tomador e prestador de serviços, e que essa pratica contratual, se encontra em total desarmonia com os princípios legais que regem os contratos.

Consoante se verifica no artigo 82 do Código Civil “a validade do ato jurídico requer agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei (art.104, I, II, III, do CC)”.

Dessa forma, se observa que o principal argumento para o não reconhecimento do vínculo empregatício dos trabalhadores do jogo do bicho é o impedimento legal. É esse entendimento do TST, que, mesmo havendo posições divergentes nos TRTs, como veremos mais adiante, tem servido de base para os que defendem o não reconhecimento do vínculo, até porque é a posição da Corte máxima da Justiça do Trabalho.

No entendimento do professor Pedro Paulo Teixeira Manus, quanto à validade do contrato de trabalho, defende que: “[...] para que seja válido o contrato de trabalho, é preciso que seu objeto seja lícito, pois não se poderia emprestar validade à prestação de serviços cujo objetivo fosse a prática de atos ilícitos”.[2]

É esse o mesmo entendimento da Vólia Bonfim Cassar:

“No caso do jogo do bicho existe jurisprudência tímida pregando a validade do contrato de trabalho, em face da ‘tolerância’ do Estado com essa atividade, apesar de ilícita. Argumentam, ainda, que a declaração de nulidade acarretaria em enriquecimento sem causa. A posição é absurda, pois o judiciário é o guardião da ordem moral e do direito e não pode aceitar tal negócio jurídico ilícito. Ademais, não se pode prestigiar o trabalhador que pratica o crime”[3].

Adalberto Martins, citando o comentário de Clóvis Beviláqua, ao comentar o art. 145 do CC de 1916, assevera que:

“‘O Direito, organização da vida social, não pode dar apoio e firmeza à pratica de atos imorais, que são elementos desorganizadores da ordem social; contrários aos fins de aperfeiçoamento cultural, (...)’. E arremata dizendo que: ‘O objeto imoral vicia, fundamentalmente, o ato. O Direito declara-o absolutamente nulo’”[4]

Como visto, doutrinadores renomados, opinaram pelo não reconhecimento do vínculo empregatício, quando o objeto do contrato for ilícito, sendo este o mesmo argumento adotado pela Jurisprudência.

Os posicionamentos de algumas Turmas do TST são neste mesmo sentido:

“RECURSO DE REVISTA. RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO. JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. NULIDADE. Impossível o reconhecimento de vínculo de emprego quando se trata de atividade envolvendo o denominado jogo do bicho, atividade ilícita, tipificada como contravenção penal. Impõe-se, no caso, reconhecer a nulidade do contrato de trabalho, ex vi dos artigos 104, II e 166, II, do Código Civil. Recurso de revista conhecido e provido”.[5]

“RECURSO DE REVISTA. JOGODO BICHO. VÍNCULO DE EMPREGO. CONTRATO. OBJETO ILÍCITO. OJ N.º 199 DA SBDI-1. PROVIMENTO. A jurisprudência predominante no âmbito desta Corte, acerca da prestação de serviços relacionados à exploração do jogo do bicho, está firmada no sentido de que é nulo o contrato de trabalho celebrado para estes fins, tendo em vista a ilicitude do objeto do referido contrato, não se conferindo nenhum efeito à avença. Este é o entendimento adotado pela OJ n.º 199 da SBDI-1. Recurso de Revista conhecido e provido.[6]

“RECURSO DE REVISTA. PROCESSO ELETRÔNICO. JOGO DO BICHO. ATIVIDADE ILÍCITA. VÍNCULO DE EMPREGO. VERBAS RESULTANTES.

1. Conforme a jurisprudência deste Tribunal, não há como se reconhecer a validade do contrato de trabalho em atividade ilícita relacionada ao jogo do bicho(OJ nº 199 da SBDI-1).

2 - O TRT consignou que a atividade da reclamada, contravenção penal de exploração do jogo do bicho, não descaracteriza a relação de emprego havida entre as partes. Decisão contrária à OJ nº 199 da SBDI-1 do TST.”[7]

Observa-se que o TST ao negar o reconhecimento do vínculo se restringe a analisar se estão presentes os requisitos para que o contrato seja válido, e muitas vezes não é levado em consideração os argumentos morais, e sociais.

É notório que a prática do jogo do bicho desfruta de uma tolerância significativa por parte das autoridades administrativas e policiais, ocorre que, por mais que seja tolerada, o TST não reconhece o vínculo empregatício em razão da ilicitude do objeto do contrato, pois o artigo que qualifica o jogo do bicho como ilícito penal não foi revogado. Dessa forma, a ilicitude do objeto torna nulo o contrato de trabalho, e sendo o contrato de trabalho espécie do gênero ato jurídico, há que se submeter aos requisitos do art. 82 do Código Civil, sob pena de, não existir juridicamente. (acórdão TST E-RR 1379/1988, publicado DJ- 30/08/1991)

Vólia Bonfim[8] apresentando o posicionamento de Sergio Pinto Martins sustenta que na ação trabalhista que tiver como pretensão o reconhecimento do vínculo empregatício em atividades ilícita, o processo deve ser extinto sem julgamento de mérito, por falta de interesse processual do reclamante em postular em juízo (art. 3º do CPC) e pela impossibilidade jurídica do pedido (art. 267, VI, do CPC), decorrente da ilicitude do objeto do contrato de trabalho.

Há decisões do TST neste sentido: “Carência de ação - Vínculo de emprego - Jogo do bicho. Sendo o objeto do trabalho ilícito nos termos da lei, não há que se falar em relação de emprego. Revista conhecida e provida.”[9]

Vólia Bonfim discorda da opinião se Sergio Pinto Martins, pois para ela, o vínculo de emprego é sempre possível. Ademais, a declaração de nulidade do contrato é questão de mérito, porque diz respeito ao direito material e não deve ser confundido com as condições da ação.[10]

Não obstante os argumentos citados, segundo Manoel outros aspectos têm que ser considerados:

“Entre eles, o que mais me preocupa é o da "legalização" do Contrato de Trabalho em clima de visível confronto entre o Direito Penal e o do Trabalho. E esse confronto é agravado pelas conseqüências legais do "reconhecimento" da relação de em prego, na hipótese, eis que gerará o recolhimento de contribuições para o Imposto de Renda e para o órgão oficial de Previdência Social. Esses recolhimentos, a seu turno, irão gerar o direito do prestador de serviços aos benefícios previstos em lei, entre eles o de aposentadoria. Ora, essa cadeia de efeitos permitirá ao tomador de serviços, não se poderá negar, a proclamação pública, como autêntica "carta de alforria", de que suas atividades na exploração do "jogo do bicho" (hipótese em foco) foram legalizadas pela Justiça do Trabalho.

A igual "proclamação" terá direito o outro infrator da lei que é, sem dúvida, o prestador dos serviços. Embora a parte mais considerável é dolosa da infração penal deva ser lançada aos ombros do tomador dos serviços, o portador não poderá, jamais, ver-se livre da pecha de infrator tendo em vista o princípio universal de que a ninguém é dado descumprir a lei alegando que não a conhece”. [11]

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2. POSIÇÕES JURISPRUDENCIAIS E DOUTRINÁRIAS PELO RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO NO JOGO DO BICHO.

Grande parte dos países do mundo tenta exercer de forma exclusiva a exploração de jogos de azar através de casas lotéricas oficiais, ou seja, as que são permitidas e fiscalizadas pelo Estado.

Ressalta-se que o Próprio Estado Brasileiro não aplica o preceito legal, pois se omite na repressão e punição ao ilícito. Além do mais, autoriza outras formas de jogos de azar, como fomento ao esporte[12], outros como a Tele Sena e ainda a própria loteria da Caixa Econômica Federal.

Como já citado, o TST firmou entendimento por meio da OJ 199 da SBDI-1, porém algumas posições contrárias a OJ se destacam, é o caso do voto proferido pelo Ministro João Oreste Dalazen:

“VÍNCULO EMPREGATÍCIO. JOGO DO BICHO

I. O jogo do bicho é prática usual amplamente tolerada pelas autoridades constituídas, desfrutando do inegável beneplácito dos órgãos competentes dos três poderes da República. Atualmente, assumiu foros de comportamento regular, acintosamente presente aos olhos de tudo e de todos. A evidente circunstância de não merecer repressão policial não apenas comprova a complacência do Estado para com banqueiros e adeptos desse jogo de azar, como também deixa transparecer nitidamente que inexiste hoje condenação social.

II. Hipocrisia reputar ilícito o objeto do contrato de trabalho envolvendo arrecadador de apostas de jogo do bicho se se cuida de prática notoriamente consentida pela sociedade e o Estado explora inúmeras formas de concursos de prognóstico, inclusive como medida de fomento às atividades desportivas. Ademais, se nulidade houvesse, decretar-se-ia com efeito "ex nunc”.[13]

Nessa esteira o voto da Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi acresce que:

“JOGO DO BICHO - RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE EMPREGO - PRINCÍPIOS DA PRIMAZIA DA REALIDADE E DA PROTEÇÃO

Seria incompatível com os princípios da primazia da realidade e da proteção negar, por completo, eficácia jurídica ao contrato celebrado entre as partes, para coleta do "jogo do bicho", em razão da ilicitude do objeto contratual.

No Direito do Trabalho, a nulidade do contrato pode não acarretar negação plena dos efeitos jurídicos do ato. É o que acontece com a contratação sem concurso pela Administração Pública. Declara-se a nulidade do ato, sem prejuízo da obrigação de pagar os salários dos dias trabalhados (Orientação Jurisprudencial nº 85 da SBDI-1). Assim, a tutela jurisdicional prestada pela Justiça do Trabalho obsta o enriquecimento sem causa, valorizando a força de trabalho despendida, considerada a impossibilidade de restabelecimento do estado anterior.”[14]

Valentin Carrion, ao discorrer sobre o tema, afirma que a jurisprudência e a doutrina entendem que a validade do contrato depende, além da capacidade do agente e forma especial, se prevista em lei, que o objeto do contrato seja lícito e possível, e não reconhecem os direitos do trabalhador:

“A doutrina e a jurisprudência [...] deixam de reconhecer quaisquer direitos ao empregado; alguns reconhecem a remuneração, sem entrar no enriquecimento ilícito do empregador, grande delinquente; assim, protege-se este em detrimento do empregado pequeno delinquente; é o caso da cozinheira de casa de lenocínio, beneficiando o proprietário; o arrecadador do ‘jogo do bicho’ com referência a quem o banca etc”[15]

Dessa forma se o trabalhador do jogo do bicho se enquadra nessas condições, não há que se falar em não reconhecer o vinculo empregatício...

Um dos motivos para o reconhecimento do vínculo de emprego do trabalhador do jogo do bicho é a aceitação popular, e a tolerância do Estado, este ultimo que tem poder-dever de punir e não o faz. O costume de grande parte da população de jogar no bicho está enraizado na sociedade de tal forma, que em alguns Estados é comum se deparar com lojas abertas sem qualquer repressão a tal prática.

Boa parte da doutrina e jurisprudência entende que o principal argumento para o reconhecimento do vínculo de emprego entre trabalhadores do jogo do bicho é de que ninguém pode alegar a própria torpeza para se beneficiar, isso é notório nos recursos apresentados pelo “banqueiro”, tanto para o TRT como para o TST.

O Reclamado alega em sua defesa, que a ilicitude do objeto impede a configuração do vínculo empregatício, alegando a própria torpeza em beneficio próprio, porém, essa alegação esbarra em princípios constitucionais e em outros, próprios do direito do trabalho.

Quanto à ilicitude da atividade desenvolvida pelo empregador, convém destacar, que a exploração dos jogos eletrônicos, assim como o jogo do bicho, constituem atividades ilícitas, sendo classificadas como contravenção penal.

Entretanto, existe uma tolerância por parte das autoridades civis e policiais do País, e isso tem feito com que essa pratica se torne cada dia mais popular, motivo pelo qual, em sendo o contrato de trabalho, contrato realidade, não se pode deixar de apreciar a natureza e os efeitos da relação travada entre as partes contratantes.

Uma vez caracterizada a relação de emprego, ou seja, sendo o empregado, pessoa física, que presta serviços de natureza não eventual, a empregador, sob a dependência de salário, não se pode desamparar o empregado, pois, embora ilícita a atividade desempenhada, despendeu sua força de trabalho cuja restituição é impossível, em face da natureza do contrato de trabalho.

O Ministro Wagner Pimenta, em acórdão proferido no julgamento de recurso de revista, confirma o posicionamento acima exposto:

“RELAÇÃO DE EMPREGO - JOGODO BICHO. NÃO OBSTANTE A ILICITUDE DA ATIVIDADE DESENVOLVIDA PELA RECLAMANTE, TOLERADA PELOS USOS E COSTUMES PELA NOSSA SOCIEDADE, ESTA PRESTOU SERVIÇOS PERMANENTES REMUNERADOS E SOB A DEPENDÊNCIA DA EMPRESA-RÉ. A DESPEITO DESSAS CONSIDERAÇÕES, É A AUTORA EMPREGADA, DENTRO DO CONTRATO-REALIDADE, NÃO PODENDO, POIS, A EMPREGADORA BENEFICIAR-SE DA PRÓPRIA TORPEZA.. Recurso de Revista da Reclamada conhecido e desprovido.”[16]

Caso não reconheça o vinculo de emprego, o empregador vai se beneficiar duplamente, porque além de explorar negócio ilícito e não ser punido se beneficiará de sua própria torpeza, enriquecendo sem causa com o fruto do trabalho alheio.

Sobre o tema o Tribunal Regional do Trabalho da 6º Região sedimentou entendimento favorável ao reconhecimento do vinculo empregatício través da Súmula 12, que dispõe:

“SÚMULA Nº 12 - CONTRATO DE EMPREGO. ILICITUDE DO OBJETO. TRABALHO VINCULADO AO JOGO DO BICHO. CONTRAVENÇÃO PENAL. NULIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO COM EFEITOS RETROATIVOS

Configurados os requisitos do contrato de emprego, hão de ser assegurados ao trabalhador os direitos constitucionais por força dos princípios da dignidade humana, da irretroatividade da declaração das nulidades no âmbito do Direito do Trabalho e da primazia da realidade por tratar-se, o jogo do bicho, de atividade socialmente arraigada e tolerada pelo Poder Público. RESOLUÇÃO ADMINISTRATIVA TRT 17/2008 - 3ª PUBL. DOE/PE: 28/01/2009”[17].

Dessa forma, ao se deparar com esse tema, a pergunta a ser feita é a possibilidade a justiça do trabalho reconhecer a prestação dos serviços em atividades ilícitas, pois o tema, embora pacificado no TST, encontra respeitáveis decisões e posicionamentos contrários.

Algumas divergências surgem na doutrina e jurisprudência, pois para eles, aplicar a referida Orientação Jurisprudencial é garantir ao empresário que explora a atividade ilícita os benefícios que decorrem do descumprimento da lei, em detrimento do trabalhador.

É nesse sentido o acórdão proferido pelo TRT da 4ª Região:

“... não se pode dar ao contrato de trabalho o mesmo tratamento atribuído pela lei civil às demais espécies contratuais, em virtude do contrato de trabalho ser um contrato-realidade, regido por normas tutelares, com expressiva carga institucional. Considerar nulo o contrato de trabalho celebrado com empregado que exerce suas atividades na coleta do jogo do bicho significaria premiar o contraventor, desobrigando-o de cumprir as leis trabalhistas, em prejuízo do trabalhador. A tutela jurisdicional prestada pela Justiça do Trabalho obsta o enriquecimento sem causa, valorizando a força de trabalho despendida, considerada a impossibilidade de restabelecimento do estado anterior”[18].

É também no mesmo sentido a acórdão proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 6º Região:

“DIREITO DO TRABALHO E PROCESSUAL DO TRABALHO. RECURSO ORDINÁRIO. JOGOS DE AZAR. CONTRAVENÇÃO. RELAÇÃO DE EMPREGO. CONFIGURAÇÃO. A ilicitude da atividade desenvolvida pela reclamada não constitui óbice ao reconhecimento da perseguida relação empregatícia, mormente quando a realidade fática trazida aos autos demonstra a presença dos elementos insertos no artigo 3º da norma celetária. Ademais, é incompatível com o princípio da primazia da realidade negar total eficácia ao contrato avençado entre as partes, em razão da ilicitude da atividade desenvolvida pela reclamada. Recurso ordinário patronal a que se nega provimento”[19]

Segundo entendimento exposto, alguns TRTs entendem que embora a exploração do jogo do bicho seja contravenção penal, não obsta o reconhecimento do vínculo de emprego, entendendo-se que os artigos do Código Civil não se revelam compatíveis com os princípios do direito do trabalho.

Deve-se atentar, ainda, que a valorização do trabalho é o bem jurídico maior nesta relação. A própria Constituição Federal em seu artigo 1º, inciso IV, colocou os valores sociais do trabalho como fundamento da república, como também, asseverou no art. 170 sobre ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano[20].

Porém o Tribunal Superior do Trabalho em sua maioria entende que quando o objeto do contrato for ilícito, ocorrerá uma nulidade absoluta, é nesse sentido os precedentes do TST:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. JOGO DO BICHO. RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO DE EMPREGO. IMPOSSIBILIDADE. OJ 199/SBDI-1/TST. Nos termos da OJ 199/SBDI-1/TST, inviabiliza-se o reconhecimento da relação de emprego no âmbito do - jogo do bicho -, em face da ilicitude do objeto. Exegese dos arts. 82 e 145 do CCB/1916 e arts. 104 e 166 do CCB/2002. Registre-se ser inviável, no caso, a incidência dos princípios protetivos especiais trabalhistas, uma vez que o Direito do Trabalho tutela o contrato de emprego e a figura do trabalhador e não atividades ilícitas e seus partícipes. Desse modo, não há como assegurar o processamento do recurso de revista quando o agravo de instrumento interposto não desconstitui os fundamentos da decisão denegatória, que subsiste por seus próprios fundamentos. Agravo de instrumento desprovido.”[21]

As alegações favoráveis ao reconhecimento do vinculo empregatício são basicamente fundamentadas em princípios, que atualmente tem o reconhecimento de norma jurídica, não atuando apenas na construção e interpretação de normas.

A Ministra do Tribunal Superior do Trabalho Kátia Magalhães Arruda afirma que:

“Por muito tempo, a doutrina entendeu que os princípios não eram normas jurídicas, o que servia de fundamento para explicar sua baixa eficácia no plano jurídico. Entretanto, tal posição encontra-se ultrapassada, não mais pairando dúvidas: os princípios possuem normatividade, ou seja, as normas jurídicas são o gênero, do qual as regras e princípios são as espécies, com conteúdo expressivo e finalístico, por visarem à realização de um fim juridicamente relevante” [22]

Adalberto Martins citando Manoel Alonso García, advoga que os princípios do direito do trabalho são ”aquelas diretrizes ou postulados básicos da tarefa interpretativa que inspiram o sentido das normas trabalhistas”[23]

A aplicação dos princípios como forma de fundamentar as decisões, está prevista no art. 8 da Consolidação das Leis do Trabalho:

“Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público”[24]

São comuns os juízes e Tribunais fundamentarem suas decisões em princípios, bem como em teses jurídicas apresentadas nas reclamações trabalhistas e em recursos. Os principais princípios que asseguram o reconhecimento do vínculo empregatício ao trabalhador do jogo do bicho são:

PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO

Por esse principio, torna-se claro que a estrutura do direito do trabalho, com suas regras princípios e presunções próprias, visa à proteção da parte hipossuficiente na relação de emprego, ou seja, do trabalhador, visando no sentido jurídico amenizar o desequilíbrio em relação ao empregador no contrato de trabalho.

Parte da doutrina tem esse principio como o principal do Direito do Trabalho, por influir em toda a estrutura e características próprias desse ramo especializado.

Nesse sentido Mauricio Glodinho Delgado, citando o jurista uruguaio Américo Plá Rodrigues, aponta que, o principio da proteção se divide em três dimensões distintas: o principio in dúbio pro operário, o principio da norma mais favorável e o princípio da condição mais benéfica[25].

A idéia inerente ao principio protetor, advêm da reconhecida desigualdade socioeconômica e de poder entre sujeitos da relação de emprego, e não abrange apenas as três dimensões citadas, ela se aplica, essencialmente a quase todos os princípios especiais do Direito Individual do Trabalho, sendo inspirador de todo o complexo de regras e institutos que compões esse ramo jurídico especializado.

O principio da proteção é a razão de ser do direito do trabalho visto que o nasceu para proteger o trabalhador diante da inferioridade econômica do empregador. O direito do trabalho tem como sua razão de ser a proteção ao trabalhador hipossuficiente, que vive em razão natural de desequilíbrio em relação ao empregador detentor do capital.[26]

Na maioria dos casos as pessoas se sujeitam a trabalhar no jogo do bicho por necessidade, pois ninguém quer um emprego em que seus direitos não são assegurados, é evidente que em meio ao desemprego, falta de oportunidade e de qualificação, muitos se vêem atraídos a tais propostas de emprego, tudo isso corroborado ao fato de em suas localidades o jogo do bicho ser uma prática aceita pela sociedade.

São nestas condições que o trabalhador presta serviços ao jogo do bicho, aceitando na maioria das vezes a trabalhar por horas que extrapolam as permitidas pela Constituição Federal, muitas vezes sem o pagamento das horas extras e outros benefícios garantidos ao trabalhador, se tornando uma mão de obra barata, que não tem a quem recorrer na luta por seus direitos, pois presta serviços ao jogo do bicho, que é uma pratica ilícita para o direito do trabalho, mas que suas portas continuam abertas angariando clientes. Resta, assim, evidenciada a grande necessidade do principio da proteção.

PRINCÍPIO DA NORMA MAIS FAVORÁVEL

O presente principio, assevera que ao se aplicar o Direito do Trabalho deve optar pela regra mais favorável ao trabalhador em três situações ou dimensões distintas: no instante da elaboração da regra (principio orientador da ação legislativa), ou no contexto de confronto entre regras concorrentes (principio orientador do processo de hierarquização de normas trabalhistas), ou, por fim, no contexto de interpretação das regas jurídicas ( principio orientador do processo de revelação do sentido da regra trabalhista).[27]

No entanto, esse princípio não pode ser entendido em termo absolutos. É evidente que em matéria trabalhista o princípio básico da hierarquia das normas é o da prevalência daquelas mais favoráveis ao trabalhador, com ressalva a existência de Lei proibitiva do Estado, ou normas coletivas supervenientes que estabeleçam a redução ou supressão de alguma vantagem outrora reconhecida. Isto porque o interesse de classe ou particular não se sobrepõe ao interesse público, conforme se aduz o art. 8º da CLT.[28]

PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO OPERaRIO

O principio do in dubio pro operario é uma das referencias doutrinárias mais antigas. É a transposição adaptada ao ramo do Direito do Trabalho do principio jurídico penal in dubio pro reo. [29]

Por este princípio, temos que, em caso de dúvida o aplicador do direito deve sempre aplicar a norma que favoreça ao trabalhador. Dessa forma, os princípios supracitados, se inclinam de forma patente a proteger os interesses do trabalhador, tendo por finalidade reduzir as desigualdades entre as partes, uma vez que o trabalhador é notoriamente a parte mais frágil na relação.

Vale destacar, que o referido princípio não é capaz de subverter as regras do ônus da prova no processo trabalhista, ou seja, não esse princípio não se presta a beneficiar o trabalhador quando o órgão julgador estiver em dúvida em face ao conjunto probatório. Em verdade, o princípio tem aplicabilidade no que respeita à interpretação das normas jurídicas trabalhistas, optando-se por aquela que melhor atende aos interesses do trabalhador. [30]

PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE

O principio da primazia da realidade, também como conhecido como princípio do contrato realidade, aduz que se deve atentar mais à intenção dos agentes do que ao contrato de que transpareceu a vontade.[31] (art. 112, CCB/2002).

No Direito do Trabalho deve se atentar a pratica concreta efetivada ao longo da prestação de serviços, independentemente da vontade manifestada pelas partes no contrato. Ou seja, se a pratica for diferente do pactuado, ocorre uma verdadeira alteração do contrato, gerando direitos e obrigações novos às partes contratantes, respeitando o principio da inalterabilidade contratual lesiva ao obreiro.

Dessa forma, o conteúdo escrito no contrato de trabalho, não prevalece sobre a realidade do contrato. O principio do contrato realidade autoriza, assim, por exemplo, a descaracterização de uma pactuada relação civil de prestação de serviços, desde que no cumprimento do contrato, despontem, concretamente, todos os elementos fáticos-jurídicos da relação de emprego, ou seja, trabalho com pessoalidade, por pessoa física, onerosidade, eventualidade e sob subordinação.

Em uma situação de litígio trabalhista, o principio da primazia da realidade, constitui-se um poderoso instrumento na busca da verdade real. Isso justifica a afirmação de que o contrato de trabalho é um contrato-realidade, na medida em que sua existência não reside no acordo de vontades, mas na realidade da prestação de serviço. Vale dizer, é a forma de prestação de serviços que poderá traduzir a relação de emprego, e não a vontade das partes, mormente quando se considera que o contrato de trabalho pode se estabelecer de forma tácita (art. 442 da CLT).[32]

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O princípio da dignidade da pessoa humana está inserido como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Esse princípio, na atualidade, teve como ponto de partida o fato histórico das atrocidades dos crimes políticos, sob razão do Estado. Nessas circunstâncias, houve a inserção na Declaração Universal de 1948, passando a nortear o ordenamento jurídico de inúmeros países e a levar sua inserção nas Constituições.[33]

Esse princípio geralmente serve de fundamentação aos que são favoráveis ao reconhecimento do vínculo empregatício.

Configurado os requisitos do vínculo empregatício, e sendo o jogo do bicho uma atividade socialmente aceita em algumas localidades, são assegurados ao empregado todos direitos trabalhistas por força do princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobre os autores
Thiago Santos Ribeiro

Advogado. Graduado em Direito pela Centro Universitário Unieuro – Brasília. Pós-Graduado em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - FESMPDFT (798 horas aulas), e em Direito Público pela Faculdade Processus (382 horas aulas). <br>

Rayane Almeida Dias Ribeiro

Advogada, Graduada pelo UniPROJEÇÃO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Thiago Santos; RIBEIRO, Rayane Almeida Dias. Análise jurisprudencial e doutrinária acerca do reconhecimento do vínculo empregatício dos trabalhadores do jogo do bicho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6818, 2 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52111. Acesso em: 21 nov. 2024.

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