1). Introdução
Tarefa árdua e tormentosa, a individualização judicial da pena – garantia fundamental disposta no art. 5º, XLVI, da CF – configura momento sensível da prestação jurisdicional, ainda hoje falho em boa parte dos processos, e o quadro se revela ainda mais preocupante nos contornos da quase inexistente individualização execucional.
Por aqui, deveriam ser consideradas com mais acuidade algumas das preocupações criminológicas de Garofalo,[1] Mezger,[2] Beristain,[3] Baratta,[4] Figueiredo Dias e Costa Andrade,[5] dentre outros que se dedicaram ao tema, bem como variados aspectos da penologia magistralmente enfrentada por Bentham[6] e Mir Puig.[7]
Seja como for, procedente a ação penal, encontramos no art. 59, caput, do Código Penal, regras gerais norteadoras da dosimetria da pena, escolha do regime prisional a ser fixado, bem como elementos que devem ser valorados pelo julgador a fim de melhor concluir se, no caso concreto, se apresenta indicada, ou não, a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, quando se apresentar cabível.
Conforme o dispositivo invocado, para tais deliberações, ao proferir condenação o magistrado deverá levar em conta a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do delito, bem como o comportamento da vítima.
Complexo como se apresenta o dispositivo, vem de longa data as discussões que se estabeleceram, na doutrina e na jurisprudência, a respeito do melhor alcance a ser dado a cada um dos aspectos valorativos apontados.
Não bastassem as dificuldades para encontrar a melhor interpretação teórica, na prática a situação se agrava, e muito, em razão da fraca/insuficiente (muitas vezes inexistente) colheita de prova a respeito das norteadoras apontadas, de modo a desprestigiar ou negar plena incidência ao princípio da individualização da pena, que embora dotado de inegável eficácia jurídica, tem sua existência marcada pela ineficácia social, frente ao caso concreto.
Na grande maioria dos processos, por força de condenável e generalizada despreocupação, não ocorre adequada apuração da conduta social do acusado, compreendida esta como seu proceder na vida cotidiana; seu agir rotineiro no meio em que vive, e eventual influência que seu “estilo de vida” possa ter na realização do delito imputado. A personalidade do agente – de difícil e extremamente complexa aferição – não constitui objeto de investigação profissional e por isso não é verdadeiramente sopesada. Sobre tal elemento de individualização, no mais das vezes o julgador, desprovido de conhecimentos técnicos que o habilitem a conhecer a personalidade do agente e a ela se referir com propriedade científica, se permite apontar algumas conclusões por ele tiradas da própria conduta imputada e também das circunstâncias em que o delito foi praticado, mas, convenhamos que, por melhor que seja a intenção a empolgar tal proceder, tais apontamentos dizem pouco ou quase nada a respeito da personalidade do agente, quando muito, aferível após longo e meticuloso trabalho levado a efeito por profissionais habilitados e equipe multidisciplinar composta por psicólogo, psiquiatra e assistente social, tal como reconhecido, por exemplo, nos arts. 3º e 7º da LEP.
Alvino Augusto de Sá ensina a esse respeito que “O exame de personalidade não se volta para o ‘lado criminoso’ do condenado, mas, sim, para sua pessoa, na sua realidade integral e individual, incluída aí toda sua história de uma pessoa, e não mais de um criminoso”.[8]
Para agravar o quadro, não é muito diferente no tocante à real apuração e valoração da culpabilidade, dos motivos, das circunstâncias e consequências do delito, bem como do comportamento da vítima, sendo valiosas, por aqui, as reflexões de Pellegrino[9] e Moura Bittencourt,[10] dentre outros.
Emoldurado por tais inquietações, assim caminha, em regra, o processo individualizador frente aos casos concretos. É preciso admitir; não dá para negar esta triste e perigosa realidade estampada na rotina judiciária-penal, a desconsiderar a advertência de Ferri no sentido de que “a individualização deve ser tecnicamente sistematizada”.[11]
Mas não é só.
Ainda nos quadrantes do art. 59 invocado, constitui objeto de profunda discussão determinar o que se deve entender por antecedentes, para as finalidades inicialmente apontadas.
Doutrina e jurisprudência fundamentadas em interpretação constitucional e sistêmica do dispositivo divergem do posicionamento adotado por aqueles que, data venia, procuram emprestar interpretação meramente gramatical e que, convenhamos, atende melhor aos ideais de endurecimento no trato judicial das questões penais.
Antes de apontarmos nossa conclusão (já sinalizada) a esse respeito, é preciso enveredar por algumas considerações, como as dispostas nos tópicos que seguem.
2). Princípio da presunção de inocência e favor rei
Dispõe o art. 9º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) que “Todo acusado é considerado inocente até ser considerado culpado”.[12]
Nessa mesma linha de pensamento, diz o art. 8º, § 2º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), adotada pelo Brasil por meio do Decreto n. 678, de 6-11-1993, que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprovar legalmente sua culpa”, regra também disposta em outros textos internacionais.
Essa presunção de inocência, estado de inocência[13] ou presunção de não culpabilidade também está assegurada no art. 5º, LVII, da CF, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
A rigor, o dispositivo constitucional não fala em “presunção de inocência”, mas em “não culpabilidade”, daí a existência de discussão doutrinária com vistas a definir o real alcance da garantia em questão.
Nesse particular, conforme leciona Gustavo Badaró, “Não há diferença de conteúdo entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade. As expressões ‘inocente’ e ‘não culpável’ constituem somente variantes semânticas de um idêntico conteúdo. É inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas as ideias – se é que isso é possível –, devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas. Procurar distingui-las é uma tentativa inútil do ponto de vista processual. Buscar tal diferenciação apenas serve para demonstrar posturas reacionárias e um esforço vão de retorno a um processo penal voltado exclusivamente para a defesa social, que não pode ser admitido em um Estado Democrático de Direito”.[14]
Milita em favor de todo acusado a presunção relativa (juris tantum) de que é inocente em relação ao cometimento do delito imputado, de tal modo que a garantia constitucional remete ao acusador o ônus de produzir prova em sentido contrário. Bem por isso, a advertência de Gimeno Sendra[15] no sentido de que a carga material da prova incumbe exclusivamente ao acusador.
La Ley fundamental – ensina Mayer – “impide que se trate como si fuera culpable a la persona a quien se le atribuye un hecho punible, cualquiera que sea el grado de verosimilitud de la imputación, hasta tanto el Estado, por intermedio de los órganos judiciales establecidos para exteriorizar su voluntad en esta materia, no pronuncie la sentencia penal firme que declare su culpabilidade y la someta a una pena”.[16]
Se ao final do processo restar dúvida, esta será resolvida em favor do acusado, que então deverá ser absolvido (CPP, art. 386, VII),[17] porquanto não elidida a presunção constitucional. Incide o princípio in dubio pro reo (na dúvida decide-se em favor do réu).
A presunção de que ora se cuida tem duração determinada, pois deixará de existir com a superveniência do trânsito em julgado definitivo de sentença penal condenatória.
A presunção de inocência que acompanha toda e qualquer pessoa leva ao princípio do favor rei,[18] segundo o qual, na interpretação da lei, havendo possibilidades contrapostas, o juiz deverá adotar a que melhor atender aos interesses do acusado.
Como ensinou Bettiol, ele supõe que quando não se pode ter uma interpretação unívoca, mas uma situação de contraste entre duas interpretações de uma norma penal (antinomia interpretativa), o juiz terá que eleger a interpretação mais favorável às posições do imputado.[19] Em verdade, o juiz não pode ser agnóstico a respeito da escolha interpretativa, pois “Egli vive in un determinato clima politico-constituzionale nell’ambito del quale il valore supremo è la persona umana; ed è la posizione di questa che il giudice deve sposare quando è chiamato a scegliere tra due interpretazioni contrastanti di una norma di legge”.[20]
Acolhida a lição do mestre italiano, enquanto o princípio in dubio pro reo orienta a decisão do juiz diante de prova insegura ou não convincente a respeito de qualquer das versões existentes nos autos, o princípio do favor rei indica a adequada interpretação da regra jurídica, na vertente mais compatível com a presunção de inocência.
Essa também parece ser a opinião de Nucci,[21] que, após explicar o significado do princípio in dubio pro reo e sua conexão com a prova produzida no processo, refere-se ao favor rei nos seguintes termos: “Por outro lado, quando dispositivos processuais penais forem interpretados, apresentando dúvida razoável quanto ao seu real alcance e sentido, deve-se optar pela versão mais favorável ao acusado, que, como já se frisou, é presumido inocente até que se demonstre o contrário. Por isso, a sua posição, no contexto dos princípios, situa-se dentre aqueles vinculados ao indivíduo, sendo, ainda, considerado como constitucional implícito”.[22]
Nessa linha de argumentação, já decidiu o STJ que “O princípio do favor rei estabelece, diante do conflito entre o jus puniendi do Estado e o jus libertatis do acusado, a interpretação mais benéfica ao réu do texto legal”.[23]
3). Sobre os “antecedentes”
Muito embora não esteja expresso no art. 59 do CP, ao apontar a valoração dos “antecedentes” para fins de individualização, referiu-se o legislador aos antecedentes criminais do acusado.
Tal conclusão resulta evidente na medida em que também determinada a valoração da conduta social do agente, que representa, sob o enfoque exclusivo, sua conduta precedente, diversa de qualquer prática delitiva, o que corresponde, num outro olhar, a seus “antecedentes não criminais”.
Em outras palavras, isso quer dizer que, na apuração-valoração individualizadora, os “antecedentes” se referem apenas e tão somente aos antecedentes criminais; delitos anteriormente praticados, ao passo que a conduta social diz com o proceder em todas as demais áreas da vida cotidiana.
Delimitado o enfoque nos termos expostos, é preciso saber o que pode, ou não, ser incluído no conceito-ideia de antecedentes criminais. É nesse ponto que as discussões são acirradas.
Durante muito tempo, quase sempre por maioria de votos e de maneira equivocada, com todo respeito, a jurisprudência da Suprema Corte entendeu correta a utilização de apontamentos existentes em folha/registro de antecedentes criminais a respeito de inquéritos policiais em curso ou arquivados[24] e ações penais em andamento,[25] para o fim de fundamentar exasperação da reprimenda e do regime prisional, argumentando, em casos tais, contar o acusado com antecedentes criminais desabonadores.
Consignou-se, em várias decisões, que “Não se pode admitir que a presunção de inocência atue como uma barreira impeditiva do exame de circunstancias indispensáveis a individualização da pena, que também tem assento na Constituição, art. 5, XLVI”,[26] mas, embora seja essa uma afirmação irrecusável, é preciso refletir um pouco mais para verificar se é correta a dimensão dos contornos a ela emprestada.
A interpretação gramatical tantas vezes praticada para o fim de se chegar à precedente orientação, mais abrangente e rígida, no sentido de se admitir como antecedentes criminais tudo o que constar em folha/registro de antecedentes do acusado, não se presta à solução do impasse. A propósito, já advertimos em outro trabalho que, “A interpretação gramatical possui acentuada importância, mas, isoladamente, nem sempre é a melhor companheira”.[27]
A palavra, ensinou Carlos Maximiliano, “quer considerada isoladamente, quer em combinação com outra para formar a norma jurídica, ostenta apenas rigidez ilusória, exterior. É por sua natureza elástica e dúctil, varia de significação com o transcorrer do tempo e a marcha da civilização. Tem, por isso, a vantagem de traduzir as realidades jurídicas sucessivas. Possui, entretanto, os defeitos das suas qualidades; debaixo do invólucro fixo, inalterado, dissimula pensamentos diversos, infinitamente variegados e sem consistência real. Por fora, o dizer preciso; dentro, uma policromia de ideias. Traçar um rumo nesse mar revolto; numa torrente de vocábulos descobrir um conceito; entre acepções várias e hipóteses divergentes fixar a solução definitiva, lúcida, precisa; determinar o sentido exato e a extensão da fórmula legal – é a tarefa do intérprete. Não lhe compete apenas procurar atrás das palavras os pensamentos possíveis, mas também entre os pensamentos possíveis o único apropriado, correto, jurídico”.[28]
Entre nós, o único pensamento apropriado, correto e jurídico, harmônico com a ordem constitucional vigente, aponta para a necessidade de se considerar antecedentes criminais apenas as condenações transitadas em julgado, não utilizadas ou inaptas para o fim de afirmar reincidência.
Não se deve olvidar que a situação pendente de prestação jurisdicional definitiva pode ser decidida em favor do investigado ou acusado, de modo que argumentar com a existência de inquérito policial e/ou ação penal em curso para o fim de agravar a situação do increpado, além de configurar inaceitável inversão da presunção de inocência ou não culpabilidade, muitas vezes terminaria por configurar decisão injusta e teratológica, ante a real e nada incomum possibilidade de arquivamento deste mesmo inquérito e absolvição na ação penal pendente ao tempo da individualização judicial da pena e do regime.
Para os mais céticos, cabe ainda mencionar que, em caso de dúvida a respeito da melhor interpretação a ser emprestada ao tema em testilha, a incidência do favor rei está por determinar a prevalência daquela mais favorável ao acusado.
Bem por isso, com irrepreensível acerto, diz a Súmula 444 do STJ (DJ de 13-5-2010) que “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.
Nessa mesma linha de pensamento, quando do julgamento do Recurso Extraordinário 591.054/SC, com repercussão geral, o Pleno do Supremo Tribunal Federal revisou e inverteu sua antiga orientação, também por maioria de votos, para o fim de afirmar soberanamente que “Ante o princípio constitucional da não culpabilidade, inquéritos e processos criminais em curso são neutros na definição dos antecedentes criminais”.[29]
Há mais.
Também já decidiu a Suprema Corte que “Decorridos mais de 5 anos desde a extinção da pena da condenação anterior (CP, art. 64, I), não é possível alargar a interpretação de modo a permitir o reconhecimento dos maus antecedentes. Aplicação do princípio da razoabilidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana e do Direito ao esquecimento”.[30]