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Axiologia do sujeito de direito em face da biotecnologia

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Agenda 28/09/2016 às 11:30

O presente trabalho objetiva abordar os vários aspectos do sujeito de direito, tomando este como sendo um invariante axiológico e ao mesmo tempo como o protagonista de todo o discurso jurídico.

1.     INTRODUÇÃO

No ano de 1956, na obra intitulada The Psysics and Chemistry of Life[1], foi suscitado três enigmas fundamentais do mundo, quais sejam: o que é o universo? O que é a matéria? E o que é a vida, entretanto, com a incessante evolução do homem, especialmente em face da ausência de limites para o emprego de técnicas na área da ciência médica suscita-se um quarto enigma denominado “O que é ser Humano?”.

Na medida em que novos elementos integrantes da vida são revelados, novos mistérios são apresentados, não se pretende com isso afirmar que este seja o propósito do avanço científico, pelo contrário, o que se busca é apresentar respostas e soluções para esses enigmas e, assim, estar contribuindo para o desenvolvimento da ciência com a criação de teorias que justifiquem a ausência de limites para a construção de um mundo livre de dor e sofrimento aos seres humanos. Os avanços tecnológicos que por um viés descortinam o véu que recai sobre o conceito de vida, por outro, suscitam polêmicas sobre o limite ético da prática dessas técnicas que inferem na axiologia do ser.

Por muito tempo a análise dos limites da ação do homem como demiurgo, tem sido abordado sob o aspecto religioso, entretanto, as religiões também não são uníssonas aos valores que devem ser despendidos à essência do ser humano, pelo que, uma abordagem laica parece ser mais apropriada para justificar o fenômeno da vida enquanto elemento iniciático do ser humano, é dizer: do sujeito de direito. Nesse sentido, o presente trabalho, apesar de apresentar algumas coincidências com alguns entendimentos religiosos, o trata como mera coincidência, já que a verdade não é exclusiva de um, mas de várias partes que compõe um todo da resposta que se propõem a solucionar os enigmas do mundo.

Busca-se defender no presente trabalho que os avanços tecnológicos e científicos visam o fim ultimo de toda ação humana, a felicidade, pois, é da essência do ser humano almejar um estar-melhor-no-mundo, uma existência plena e feliz. Até mesmo a Constituição também faz uma perspectiva filosófica-politica, como um projeto jurídico ideológico de felicidade. 

Dessa forma faz-se uma abordagem visando a essência do ser  na medida que se vive na busca de um estar-melhor-no-mundo, este sim, digno em todos os sentidos. Após, faz-se a análise da essência do homem sob o vértice do estatuto biológico da concepção humana, trazendo à baila ensinamentos de Aristóteles em uma abordagem metafísica, estabelecendo uma correlação entre a biologia, a filosofia e o direito. Analisar-se-á também o homem sob o aspecto axiológico-jurídico e sob o vértice de um direito estritamente positivo.

Enfrentada que seja a problemática passa-se a abordar o homem como sujeito e como sujeito-objeto culminando em paradigmas éticos de uma bioética principialista.

 Percebendo-se a necessidade da analise do homem como sendo a medida de todas as coisas e a necessidade de uma bioética da intervenção culminando em um novo humanismo jurídico, para que assim possamos dispor do que há de melhor nos avanços tecnológicos e científicos e como corolário atingirmos uma vida digna e feliz que como nos escritos do Filósofo Aristóteles, é um fim ultimo de toda ação humana.

2.     FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O ser humano é arrematado centro de imputabilidade de todas as ciências,  vive incessantemente em busca do bem estar e tranquilidade duradoura, característica intrínseca da humanidade em relação às demais espécies. Desta forma o seu humano se reinventa e através do tempo tenta encontrar o verdadeiro sentido de sua existência, buscando incessantemente melhores condições de vida.

Na incansável busca de melhorias do seu bem estar o homem se põe como verdadeiro Demiurgo, no estrito sentido neoplatônico que a palavra demonstra, de recriar o mundo para nele habitar, sem que com isso queira provocar heresias, mas simplesmente exercitar na plenitude as dádivas divinas, como forma de realização da felicidade.

Incessante busca a vida boa para atingir um estar-melhor-no-mundo, o ser humano vê nas biotecnologias mais um degrau na árdua busca da felicidade, fim ultimo de toda ação humana como bem vem sendo exaltado desde Aristóteles.

Apesar dos alertas dos prós e contras, sabe-se que não se pode retroagir em relação a tais avanços, mas, sim deve-se disponibilizar do que eles possuem de melhor para ajudar o ser humano a alcançar a felicidade, na busca pelo sentido da existência humana.

A legislação tem sido uma barreira inibidora da pratica das biotecnologias, enquanto deveria estar a serviço da felicidade. Apesar da lei imperar o discurso jurídico, o ser humano é o protagonista da história de vida, pois, não havia o que se falar em lei se não houvesse o seu elemento primordial, o ser humano! Portanto, os limites devem corresponder aos anseios do ser humano na busca da felicidade.

 Ainda que seja uma variante da axiologia da pessoa humana, ainda assim, o ser humano continua sendo o valor-fonte, e sendo as biotecnologias um meio para alcançar o fim ultimo, qual seja, a felicidade, cabe ao Direito ou em especifico ao Biodireito e a Bioética tanto a principialista quanto a intervencionista filtrar o que há de melhor nesses avanços, para, assim, culminar em um projeto humanismo jurídico, o qual deve ter em conta dois valores fundamentais: o principal: a invariante-axiológica dita sujeito de direito; e outro, secundário: a felicidade.

2. 1 DA ESSÊNCIA DO SER: A BUSCA INCESSANTE PELA FELICIDADE

               

Quando se fala em essência do ser não se deve apenas vincular a vida cotidiana, mas sim analisar a existência da pessoa natural exposta a uma melhor qualidade de vida, o que seria dizer, uma melhor existência no mundo, como consecução do “verdadeiro humanismo, no grande empreendimento de tornar o ser humano verdadeiramente humano”[2], realizador da dignidade valor fundante do ordenamento jurídico.

Nessa incessante busca da “vida boa”, o fato de um estar melhor no mundo, o ser humano vê nas biotecnologias um grande impulso para a tão sonhada felicidade realizada pela boa vida. Nesse sentido Vicente de Paulo Barreto faz uma comparação dos fatos vivenciados na atualidade com o mito épico do poeta Hesíodo, com a seguinte redação:

Antigamente, os homens viviam na terra livres de preocupações, sem o trabalho suado e as atrozes doenças que são mortais. Mas a mulher abriu o vaso e deixou-as escapar, trazendo lúgubres inquietações para a humanidade. Somente a esperança ficou resguardada (...)[3]

Sob uma abordagem dualística das biotecnologias Vicente de Paulo Barreto diz que se, por um viés as biotecnologias possuem a possibilidade de “alterar radicalmente a vida humana, que era, até então, nos versos do poeta despreocupada e feliz”, por outro viés afirma que “junto com os males, permanece a esperança, guardada a sete chaves, por ordem de Zeus, mas de qualquer forma pronta a libertar-se por meio de um engenho e da arte do ser humano”[4], assim, pergunta-se qual seria o limite para a pratica da biotecnologia? 

Com o intuito de contribuir para a discussão Daury César Fabriz assevera:

As novas técnicas biomédicas colocam em perspectiva uma nova revolução antropogenética, que impõe decisões políticas no que se refere às próximas etapas da evolução do gênero humano. Tais decisões não poderão ser tomadas por qualquer elite, sob pena de mais uma vez o projeto humanizante não passar de uma mera domesticação, segundo as criticas nitzscheanas, acerca das ideias humanistas .[5]

Na mesma esteira Daury César Fabriz ainda acrescenta dizendo que a compreensão do passado pode ser instável, mas apesar dessa instabilidade é este a base para pensar o futuro, como segue:

Ao nos depararmos com os problemas da biotecnologia, das ciências da vida em geral, em decorrência das novas e incessantes descobertas, não podemos nos prestar a fazer obra de futurologia, mas devemos lançar mão dos fatos já existentes, que potencialmente consubstanciam uma realidade concreta, tangível. Não devemos nos prestar às arbitrárias adivinhações.[6]

Segundo ele, as leis naturais não estão mais consubstanciadas em seu determinismo, mas sim submetidas a própria vontade humana. 

Apresentando o ser humano como verdadeiro Demiurgo, é dizer: o homem utilizando-se do que lhe foi previamente dado “por Deus” e a partir daí, criando um mundo melhor para se habitar, pois, a partir do momento que se está no mundo almeja-se um estar melhor no mundo.

O homem é um ser vivente, e sendo este fato indiscutível Battista Modin afirma:

Antes, o homem é o vivente por antonomásia. Com efeito, embora havendo tantas coisas que classificamos como viventes, entre todas há uma que consideramos particularmente rica de vida: o homem. De outro lado, sabemos que privar o homem da vida e destruir o próprio ser são a mesma coisa. Isso significa que o homem é essencialmente vivente: a vida faz parte de sua essência.[7]

Battista Mondin acrescenta que a grande e máxima interrogativa atual, é: “O homem: quem é ele?”[8] A indagação constitui-se em um problema importantíssimo, pois não se refere  a qualquer fato, coisa, pessoa estranha ou afastada de nós, mas toca diretamente a nós mesmos, a nossa origem e nosso destino.

A história da espécie humana caracterizou-se pela sua inquietude; o homem em sua condição é hermeneuta de si mesmo “na medida em que ao dar significado para as coisas constrói um discurso sobre si próprio.”[9]

Nessa condição o homem se recria, se transforma na infindada busca de um estar-melhor-no-mundo; busca incessantemente a tão sonhada vida boa  almejada desde séculos vindos de  Aristóteles, acrescenta o Estagira que a felicidade (dito eudaimonia) é o bem a que toda ação humana se destina alcançando assim uma vida boa e um estar digno no mundo[10], e não simplesmente um mero ser vivente, dando assim, sentido além do meio para a vida.

 André Leonardo Copetti Santos também traz a baila os tão bem aceitáveis ensinamentos do Estagira:

Cada um dos seres humanos, em sua cotidianidade, vivencia, no âmbito individual ou não, seqüências infindáveis de sensações de confortos e desconfortos existenciais, traduzidas espiritual e somaticamente de diferentes maneiras e intensidades. Parte delas compõe um estado de autoconsciência de bem-estar, de vida boa, que comumente chamamos de felicidade: o principio fundamental orientador das ações humanas, o fim concebível de todo desejo, o mais legítimo motivo de todas as artes e saberes, a mais sublime manifestação do sentido da vida, summum bonum.[11]

Assim, pode-se constatar que a essência humana esta estritamente vinculada com a felicidade, pois, a partir do momento que o ser esta no mundo, ele deseja antes e acima de tudo que este estar seja digno de ser vivido (estar-melhor-no-mundo), que seja uma vida boa, e que esta vida seja feliz.  A ciência busca ao longo dos tempos auxiliar a conquista da vida boa, seja incentivando em saberes ou em estratégias para assim estar propiciando a espécie humana a conquista da felicidade[12], como realizadora da dignidade da pessoa humana, sem a qual a própria existência perderia o sentido.

Destarte, percebe-se esta intenção nas biotecnologias quando nos remetemos a temas como a barriga de aluguel, barriga solidaria, fertilização in vitro, remoção do feto anencéfalico, manipulação de células-tronco embrionárias, clonagem humana, experimentação com seres humanos, reprodução assistida, mudança de sexo, transfusão de sangue, transplante de órgãos, eutanásia, entre outros assuntos de suma relevância para a sociedade contemporânea, visto que toda ação tende a um bem, a felicidade; como deve proceder a ciência do direito em tais situações? André Leonardo Copetti Santos nos diz que antes de qualquer outro paradigma a Constituição é um projeto político-filosófico de felicidade:

(...) uma concepção de felicidade, estruturada objetivamente através de enunciados postulatórios, principiológicos ou regradores de determinadas situação, que traduzem uma visão presente e futura de um modelo de sociedade, de um modelo de Estado e de um paradigma de Direito, todos voltados para a efetivação histórica de melhores condições de vida para toda a população em comparação com modelos concretos experimentados anteriormente.[13]

Na busca da consecução do fim constitucional para realização da felicidade, Daury César Fabriz apresenta a ação praticada pelo ser humano para o encontro da via boa, e afirma:

O homem, ao procurar dominar a natureza ou mesmo imitá-la, conforme as novas possibilidades da antropotécnica encontrarão maneiras de criar as condições para o surgimento de um novo homem (mais humano), ou o homem, em sua essência, é imodificável? A manipulação do corpo tem conseqüências no espírito que anima o Ser? [14]

Diante de tais questionamentos como devemos pensar? Sabe-se que tais avanços científicos visam o summum bonum, mas que caem em controvérsia na cotidianidade seja por motivos éticos, religiosos ou políticos.

Dessa forma um novo discurso deve ser proposto em relação à atualidade vivenciada pelo ser humano, pois, faz-se necessário que se analise o ser humano em suas diferentes concepções, para compreendê-lo, sob um ponto de vista biológico e axiológico, para só então justificá-lo em um verdadeiro sentido do humanismo jurídico.

2.2 O ESTATUTO BIOLÓGICO DA CONCEPÇÃO HUMANA

O ser humano para a biologia esta estritamente vinculado a vida e ao meio em que vive; para a biologia, de uma forma geral, cada novo ser começa com a concepção[15], apesar da vida ser um processo sequencial por meio dos seres. 

Reinaldo Perreira e Silva diz que a concepção do ser humano é tida como o primórdio da vida, e que o homem adquire vida a partir do momento em que é gerado nas entranhas maternas ou numa placa petri, embora este ser ainda não tenha nascido, entretanto, quando se fala de início é preciso ter em mente o marco da criação, e a vida, já é própria do ser vivente desde a criação, pelo que a vida existe e o que tem início é tão e simplesmente o novo ser. Assim, o nascimento é apenas o inicio do ser que se dá à luz, mas não é o inicio da vida humana, a qual se dá a partir da geração no ventre materno.[16]

Somando ao entendimento do início do ser diferente do início da vida, Reinaldo Perreira e Silva assevera que a vida começa com uma única célula somática:

O início da vida humana, portanto, é uma única célula somática, de natureza totipotente, com complemento diplóide: vinte e três pares de cromossomos. Vinte e dois pares são semelhantes em ambos os sexos, possuem os mesmos locais genéticos (locí) e de denominam autossomos; um par compreende os cromossomos sexuais, sendo XX no sexo feminino e XY no sexo masculino.[17]

Desta forma, seja no plano existencial ou no celular, constata-se que a vida humana é formada por varias etapas, as quais têm inicio na concepção, uma vez concebida vai desenvolvendo as suas potencialidades biológicas, caso esse desenvolvimento seja interrompido teremos a morte desta potencialidade biológica de ser humano.

Nesse sentido, assevera Reinaldo Pereira e Silva:

A concepção é então o início da existência de um ser humano distinto em relação aos seus genitores e também o único em relação aos demais seres humanos. A vida concebida é distinta da dos genitores, para além do plano existencial, também por causa da meiose, processo mediante o qual todos os seres humanos tem garantida a sua individualidade genética.[18]

É fato notório que a concepção é precedida da fertilização a qual ocorre quando um dos milhões de espermatozóides consegue adentrar a zona pelúcida do óvulo, é importante relembrar que a fertilização geralmente ocorre na tuba uterina, mais ou menos um dia após a ovulação.

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Nesta esteira, Reinaldo Pereira e Silva afirma ainda que a fusão dos pro núcleos, o materno e o paterno são o marco zero do desenvolvimento humano. Quando iniciada a clivagem, nascem os blastômeros, também conhecidos como as primeiras células humanas, estas se multiplicam até que chegam ao estágio de blastócito, quando então o concepto apresenta células bastante diferentes umas das outras,[19] e, quando o blastócito se implanta na superfície do endométrio termina-se o período pré-embrionário, ou nidação como biologicamente é conhecido.

O início do período embrionário sucede imediatamente o período pré-embrionário, quando então “se inicia na terceira semana após a concepção e se estende até o final da oitava semana” [20]. Nesse sentido acrescenta Helen Bee:

Ao término desse período, todos os órgãos e os tecidos do corpo humano já possuem uma estrutura rudimentar, e o desenvolvimento do trofoblasto, com a troca de nutrientes e outras substâncias entre as circulações materna e embrionária, garante a formação total das várias estruturas de apoio. As principais estruturas de apoio são a placenta e o âmnio.[21]

Logo em seguida inicia-se o período neurulatório o qual tem a finalidade do desenvolvimento da placa neural, que constitui-se o primórdio do sistema nervoso central. O desenvolvimento do embrião propriamente dito se dá a partir da quinta semana após a concepção. Nesse sentido Günter Rager faz a analise:

Durante a quinta semana após a concepção,o aumento da cabeça excede o de outras regiões do corpo do embrião, em conseqüência principalmente, do desenvolvimento do anecéfalo, e os membros superiores começam a exibir uma distinção local. [22]

Com a entrada da nona semana de gestação inicia-se o período fetal, o qual se estende até o dia do nascimento segundo afirma Reinaldo Perreira e Silva, e diz que é nesta fase que o feto tem o aprimoramento dos órgãos, como segue:

Os sete meses do período fetal envolvem um processo de intenso aprimoramento de todos os órgãos e tecidos do corpo  humano, que até então possuem estrutura rudimentar. Uma das mais notáveis modificações que se verificam nesse período é o desenvolvimento da cabeça do feto, que se torna mais lento em relação ao restante do corpo.[23]

Reinaldo Perreira e Silva acrescenta que a partir da décima terceira semana após a concepção, o crescimento do feto se intensifica devido a composição placentária, e nesse período inicia-se a formação dos ossos, entretanto, é a partir da vigésima primeira semana após a concepção que o feto começa a ganhar peso:

Da trigésima quinta à trigésima oitava semana após a concepção, toda a aparência do feto é rechonchuda, como conseqüência do depósito de gordura subcutânea, e a sua cabeça possui circunferência maior do que qualquer outra parte do corpo, de maneira a assegurar a sua passagem pelo canal do parto.[24]

Terminada toda essa evolução desde a concepção é chegado o momento do nascimento que se dá após a dilatação e obliteração da cérvix, quando o feto a placenta e as membranas fetais são expelidos do trato reprodutivo da mãe[25], e dá origem ou não ao novo sujeito de direito.

Após o nascimento o ser humano passa a ser independente em relação as suas funções vitais, ou seja, ele não depende mais diretamente da genitora, e, assim, “o homem passa a obter alimento pela boca e oxigênio pelos pulmões” [26], entretanto, permanece com a necessidade dos cuidados dos pais, o que per si é uma característica da condição social do ser humano que já existe desde o nascimento.

Apresentadas as considerações supra, pode-se observar que o inicio do ser humano possui uma conotação diversa da de sujeito de direito, pelo que apesar do ponto de convergência prático, sob o ponto de vista teórico em face de uma cosmovisão, cada um pertence a um mundo diferente.

2.2.1 A visão biológica e a jurídica de homem relacionada a Teoria Ato – Potência de Aristóteles: uma abordagem metafísica

Apesar da divergência conceitual entre a biologia e o direito no que se refere ao marco da existência da pessoa natural, é possível compor a divergência sob uma perspectiva Metafísica, segundo a Teoria Ato - Potência de Aristóteles.

Nesse sentido cabe ressaltar que para o Estagira a matéria é potencialidade a assumir forma, já a forma “enquanto princípio que determina, concretiza e realiza a matéria, constitui aquilo que é alguma coisa, a sua essência sendo assim substância a pleno título”[27]. Dessa maneira Aristóteles afirma que:

Em seu significado mais forte, o ser é substância; a substância, em sentido (impróprio), é matéria, em um segundo sentido (mais próprio) é “sinolo” e em terceiro sentido (e por excelência) é forma; o ser, portanto é matéria; em um grau mais elevado, o ser é sinolo; e, no sentido mais forte, o ser é a forma.[28]

                Dessa forma podemos afirmar que a matéria é a pessoa natural em sua condição biológica caracterizada desde o ser pré-natal, ou seja, o ser desde a fertilização é inegável a sua condição de matéria, entretanto para que a matéria que possui potencialidade e se converta em “forma” para o direito é necessário que o ser (matéria) nasça com vida, para só então se concretizar seu potencial receber o reconhecimento de forma (sujeito de direito) perante o mundo do conhecimento (ao qual pertence o Direito), pois, o sujeito de direito é obra do mundo do conhecimento que produz efeito no mundo natural. Esta teoria pode ser compreendida segundo ensinamentos do Estagira que assim leciona:

A matéria é “potência”, isto é, “potencialidade”, no sentido de que é a capacidade de assumir ou receber a forma: o bronze é a potência da estátua porque é capacidade efetiva de receber e assumir a forma de estátua; a madeira é potência dos vários objetos que se podem fazer com a madeira porque é capacidade concreta de assumir as formas desses vários objetos.[29]

Assim, o corpo que é matéria e possui a “capacidade efetiva” (potencialidade) de assumir a forma de sujeito de direito caso venha nascer vivo, entretanto, a própria existência se desmentirá no caso de nati morto, já que a personalidade não se atribui tão e simplesmente em razão do fato se ocupar lugar no espaço, mas depende da atribuição da personalidade civil[30].

Assim, durante o período gestacional o ser é simplesmente matéria com potencialidade indeterminada, tornando-se algo de determinado só a partir do momento que receber forma, ou seja, após o nascimento. Ratificando o entendimento, o individuo enquanto embrião é matéria com mera presunção de potencialidade (já que esta é indeterminada) e para ser reconhecido concretamente como sujeito de direito, depende de nascer com vida, momento em que receberá “forma” (personalidade jurídica).

De acordo com Aristóteles a partir do momento que o ser recebe forma ele deixa de ser mera potencialidade, e passa a se “configurar como ato ou concretização daquela capacidade” [31] assumida em matéria. Nesse diapasão asseveram Giovanni Reale e Dario Antiseri em citação do Estagira:

Diz ainda Aristóteles que o ato tem absoluta “prioridade” e superioridade sobre a potência. Com efeito, só se pode conhecer a potência como tal referindo-a ao ato de que é potência. Além disso, o ato (que é forma) é condição, norma, fim e objetivo da potencialidade (a realização da potencialidade ocorre sempre por obra da forma). [32]

            Destarte o ser desde a concepção e durante todo o desenvolvimento embrionário e fetal até o nascimento em uma abordagem metafísica é considerado mera potencialidade a assumir forma, esta (forma) vista como sendo a personalidade jurídica, pois, somente a partir de tal transação potência-ato vida intra-uterina para a vida extra-uterina é que o concepto se torna sujeito de direito, desde que nascido vivo, e, antes do evento nascimento ele é meramente uma potencialidade biológica de sujeito de direito.

Como bem acentua Michel Schooyans “na transição da fase pré-natal para a fase natal dá-se a passagem de potência a ato, subsistindo o substrato que é o ser humano”.[33]

Logo quando se fala em pessoa natural, antes de proferir o conceito determinante da existência é necessário o operário do direito situar a análise sob a ótica da cosmo visão, sob pena de concluir a pessoa natural sob uma falsa verdade, pois se de um lado (para a biologia – matéria com potencialidade) o ser existe desde a concepção, por outro (Direito – somente receberá o atributo da forma) o ser somente existirá (assumirá a condição de sujeito de direito) após o nascimento e este condicionado a verificação da vida.

2.3  O SER HUMANO  SOB O ENFOQUE DA AXIOLOGIA JURÍDICA

Tendo como característica intrínseca a historicidade, os valores não possuem uma natureza ontológica, mas sim estão sempre relacionados a coisas valiosas, valiosidade que se caracteriza com a época vivenciada. De acordo com Miguel Reale os valores se revelam por meio da experiência humana:

Os valores não são uma realidade ideal que o homem contempla como se fosse um modelo definitivo, ou que só possa realizar de maneira indireta, como quem faz uma cópia. Os valores são, ao contrario, algo que o homem realiza em sua própria experiência e que vai assumindo expressões diversas e exemplares através do tempo. [34]

Acentua o jurisfilosofo que os valores possuem certa objetividade na história, desta forma, por mais que o homem conquiste seus objetivos “e realize as obras de ciência ou de arte, jamais, tais obras chegarão a exaurir a possibilidade de valores”, pois, o instinto criativo e inventor nunca se acaba. Os valores não existem de per si, mas sempre ligados a um sujeito:

Os valores não podem deixar de ser referidos ao homem como sujeito universal de estimativa, mas não se reduzem às vivências preferenciais deste ou daquele individuo da espécie: referem-se ao homem que realiza na História, ao processus da experiência humana de que participamos todos, conscientes ou inconscientes da sua significação universal.[35]

Nesta esteira Miguel Reale afirma também que a pessoa é a fonte de toda a axiologia, “pois pessoa não é senão o espírito na autoconsciência de seu pôr-se constitutivamente como valor”. Neste sentido Reale vê nos valores a única maneira de análise da essência do homem, sendo ele o “valor fundamental, algo que vale por si mesmo, identificando-se seu ser com a sua valia”[36], assim, sob este enfoque o ser humano sem a sua respectiva valoração, estaria reduzido a condição de objeto sem presteza.

2.3.1 O Ser Humano como invariante axiológico

A busca do sentido da existência humana está intimamente ligada a sua função no meio, o que per si lhe atribui o valor objeto de estudo, cerne do presente trabalho.

Miguel Reale constata que o homem não é entidade psicofísica ou biológica, que pode ser redutível a explicações exatas; muito pelo contrario o ser humano é dotado de poder, qual seja, inovação e superação.

A concepção axiológica apresentada pelo autor situa a idéia de homem como “ente que, a um só tempo é e deve ser” [37]. É nessa perspectiva que nasce a idéia de pessoa natural, a qual não é homem “pelo mero fato de existir, mas pelo significado ou sentido de existência”. [38] Assim, valorar a pessoa é encontrar o sentido de sua existência, que para Miguel Reale é exaltar o ser humano como sendo uma invariante axiológica, valor universal e inato.

Ainda quanto aos valores da pessoa natural, Immanuel Kant assevera o estrito vinculo existente entre o ser humano e a dignidade da pessoa humana, cujo vínculo é ratificado pelo ordenamento jurídico brasileiro ao eleger a dignidade da pessoa humana como fundamento constitucional que coloca a pessoa como sendo o standard do direito, apresentando-a como invariante axiológica, que segundo o nominado autor afirma:

(...) um ser humano considerado como uma pessoa, isto é, como um sujeito de uma ação moralmente prática, é guinado acima de qualquer preço, pois como pessoa não é para ser valorado meramente com um meio para o fim de outros ou mesmo para seus próprios fins, mas como um fim em si mesmo, isto é, ele possui uma dignidade (um valor interno absoluto) através do qual cobra respeito por si mesmo de todos os outros seres racionais do mundo. Pode avaliar a si mesmo conjuntamente a todos os outros seres desta espécie e valora-se em pé de igualdade com eles.Uma vez que ele tem que considerar a si mesmo não apenas como uma pessoa em geral, mas como ser humano, ou seja, como uma pessoa que tem deveres que lhe são impostos por sua própria razão (...)[39]

Na medida em que os estudos sobre a valoração do homem foi ganhando enfoque jurídico, se relacionando com a dignidade da pessoa humana, conclui-se que a pessoa natural não tem preço, vale per si.

Nesse sentido, o que se constata é que o direito atual possui um conceito fechado sobre pessoa, algo que deve ser repensado, pois, é característico do ser humano a mudança, o aprimoramento, a perfeição; a mutação é uma característica que pode ser constatada com o advento das biotecnologias, pois, são uma tentativa do ser humano melhorar sua estadia no mundo, mas vinculando a pessoa natural a um plano jurídico-existencial.

Leonardo Galvani traz a baila a fenomenologia existencialista de Martin Heidegger e diz que o homem não deve ser analisado em separado do mundo em que vive, mas pelo contrario, o ser deve ser analisado como o ser-no-mundo, pois, o homem necessita de um lócus para acontecer, como segue:

A pessoa não será, desta forma, análoga e limitada a mero conceito jurídico que clausura outras das infinitas possibilidades de ser do homem. O sentido do ente humano é percebido quando se é de alguma maneira. Ele necessita do tempo, do cotidiano para se maturar, para se mostrar. Cada Daisen colherá as verdades que o ser em geral -coisas- mostra. Colherá a verdade do ser dos demais entes humanos como eles se mostram e revelam-se, bem como a sua própria, de modo a construir seu próprio mundo. Então, para entender o homem heideggeriano, não se faz pertinente considera-lo como um conceito ideal prévio (ideia), fechado; como objetivado pelo Direito. Faz-se imperioso permitir que cada pessoa (e o alter) possa se desvelar e se mostrar para o mundo onde (e como) ele acontece. Assim, no aspecto existencial do ser humano, os enunciados normativos posicionaram-se como um indicativo, um caminho pelo qual, percorrendo-o, a pessoa se mostra e encontra-se. Nesse desvelar, o ser humano captará a atenção de tantos outros dispositivos jurídicos se fizerem necessários, de acordo com que cada um experimenta no mundo.[40]

Constata-se, assim, que o ser humano esta no centro de todos os questionamentos axiológicos, filosóficos e jurídicos, pondo-se como um eterno enigma a ser desvendado; não existe uma pré-compreensão do homem, pois, o homem se realiza estando no mundo conforme analisado na perspectiva heideggeriana.

Mesmo não se sabendo de onde vem e para onde vamos, sabe-se que o ser humano tem valor inestimável em todas as ciências, valemos por nos mesmos e não em relação aos outros, e sob esta esteira de analise axiológica pode-se perceber que na seara jurídica não é diferente. Pois a pessoa é considerada um centro de imputabilidade jurídica, a qual é detentora de direitos e deveres.

2.4 O HOMEM SOB O ENFOQUE DO DIREITO POSITIVO COMO DETENTOR DE DIREITOS E DEVERES

Como já dito, para conceituar pessoa natural, primeiramente deve o estudioso do direito, definir a perspectiva que pretende ser a pessoa, ou seja, vê-lo como simples objeto do mundo ou como objeto de imputabilidade jurídica.

Para Antonio Menezes Cordeiro pessoa natural para o direito é considerada um arrematado “centro de imputabilidade de normas jurídicas”[41], pois, a pessoa natural atrai para si o fim da existência da normas jurídicas.

Para a axiologia, assim como também para o direito a pessoa é tida como valor-fonte, pois, sem o ser humano não haveria porque se falar em direito.

Capelo de Souza ao abordar o tema pessoa, inicia indagando qual é o sentido da pessoa, suscitando dúvida para a formação conceitual sob várias perspectivas, senão vejamos:

Quem é pessoa? Que é ser pessoa? Será a pessoa uma estrutura normatizada da ordenação socioeconômica? Ou será inicio, centro e sentido criador da sociabilidade projetada? Será Daisen e/ou Mitsein? Será pessoa predominantemente uma substância metafísica dotada de transcendência ou que se transcende a si própria? Ou será antes uma mera individualidade psicofísica ou simples invólucro de um epifenómeno físico? Ou não será pessoa uma mera categoria reflectora de predominância de um certo tipo de interesse de classe? Ou, até, não será apenas uma ficção ideológica ou antiideológica? Será pessoa a liberdade a independência, perante o mecanismo da restante natureza, de um ser submetido a leis próprias, puras e práticas, estabelecidas pela sua própria razão?... Quem é e o que é ser pessoa, para o direito?  [42]

Na Grécia e na Roma Antiga a palavra persona era utilizada para designar uma máscara utilizada em teatros, tal máscara tinha como finalidade precípua fazer ecoar a voz do ator, entretanto, precipuamente visava diferenciar o ator de seu personagem, como se o personagem fosse outra pessoa que não aquele interpretador do papel, e esse é exatamente o papel da personalidade, atribuir individualidade aos sujeitos de direito para torná-lo diferente entre seus semelhantes, reconhecendo sua existência no mundo fático para produzir os efeitos no mundo jurídico.

Washington de Barros Monteiro ao fazer a ligação entre a antiga persona e a atual personalidade jurídica, assim se manifesta:

(...) persona, advinha do verbo personare, que significava ecoar, fazer ressoar, de forma que a máscara era uma persona que fazia ressoar, mais intensamente, a voz da pessoa por ela ocultada. Mais tarde persona passou a exprimir a própria atuação do papel apresentado pelo autor e, por fim, completando esse ciclo evolutivo, a palavra passou a indicar o próprio homem que representava o papel. Passa, então, a três opções: a vulgar, em que pessoa seria sinônimo de ser humano; porém não se pode tomar com precisão tal assertiva, ante a existência de instituições que têm direitos e deveres, sendo por isso, consideradas como pessoas, e devido ao fato de que já existiram seres humanos que não eram consideradas pessoas, como escravos; b) a filosófica, segundo a qual, a pessoa é o ente, dotada de razão, que realiza um fim moral e exerce seus atos de modo consciente; c) jurídica, que considera como pessoa todo ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. E nesse sentido que pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito da relação jurídica.[43]

Sobre o assunto acentua Goffredo Telles Junior que na concepção jurídica pessoas são entidades as quais são titulares de direito subjetivo, o que equivale dizer, que pessoa é o sujeito de direito, titular de direitos e deveres.[44]

Por sua vez Wanderlei de Paula Barreto é mais enfático ao falar sobre pessoa, e diz que essa está para o direito estritamente vinculada ao titular dos direitos da personalidade:

(...) a pessoa é, pois, o sujeito, o titular dos direitos da personalidade; a personalidade é o fundamento ético, é a fonte, é a síntese de todas as inúmeras irradiações, da pletora de emanações possíveis dos direitos da personalidade.[45]

Nesse sentido o italiano Luigi Ferrajoli analisa que o ser humano necessita de um status o qual deve ser reconhecido por determinado ordenamento jurídico, enquanto identidade de pessoa com “condições de titularidade de todos os (diversos tipos de) direitos fundamentais”[46], portanto, manifesta-se também no sentido de definir o sujeito de direito como forma realizadora da potencialidade investida na matéria após a concepção, ou seja, sem o reconhecimento da qualidade de sujeito de direito, seria apenas mais uma coisa do mundo.

Benigno Cavalcante faz menção à atualidade vivencia pelo status da personalidade jurídica, afirmando que:

A pessoa humana é o núcleo de toda a construção jurídica, vislumbrando o sujeito de direitos e obrigações no contexto social e, em torno do qual, gravitam as teorias “jusnaturalistas” e as teorias positivistas em constante debate cuja preocupação comum é a preservação dos interesses individuais a partir do maior desses interesses jurídicos: a vida humana.[47]

Desta forma como exaltado pelo autor, o juspositivismo, acentua a órbita dos interesses individuais tutelados juridicamente, a partir do momento que se alcança o status de pessoa para o direito; adquirindo como conseqüência dessa categoria jurídica, direito e deveres inerentes.

2.5  O HOMEM E OS PARADIGMAS ÉTICOS: HOMEM-OBJETO E HOMEM-SUJEITO

Como se pode notar, por tudo o que até o presente momento foi tratado, em que pese a difícil tarefa de aceitar a condição do homem como objeto do mundo enquanto matéria, é a única forma de se fixar um padrão ético para a práticas das ações da biotecnologia.

Nesse sentido, Giovanni Berlinguer e Volnei Garrafa dão destaque a concepção dualística do homem, objeto – sujeito; afirmando que a concepção percorre toda a história da humanidade, segundo o que se afere das leis, das regras religiosas e das correntes filosóficas, respeitadas as respectivas épocas, nas quais os dilemas se inseriam, dizendo que o reconhecimento do sujeito também como objeto, atualmente: 

Deriva dos progressos científicos que permitem a remoção, a modificação, a transferência e o uso, em beneficio de outras pessoas (sobretudo por motivos de saúde, mas não somente por esta razão) de partes separadas do corpo humano, de gametas, de embriões.[48]

A aprovação ou negação dessas praticas de acordo com  Berlinguer e Garrafa despende dos princípios morais, pois, enquanto as experimentações com embriões é tido como aspecto negativo, as transfusões de sangue e doação de órgãos são tidas como benéficas, apesar de algumas oposições por motivos religiosos, como é o caso do seguidores da religião chamadas de “Testemunhas de Jeová que rejeitam as transfusões; ou então, os adeptos de outras religiões que não admitem a retirada de órgãos do cadáver em nome da reencarnação.”[49] Em que pese os posicionamentos religiosos contrários, a aceitação da pratica é unânime dentre aqueles que a vida depende das ações decorrente da área da biotecnologia, sofrendo oposição daqueles que ainda não necessitaram, mas que, mudaram de idéia quando não restar outra alternativa para salvar um ente querido.

Segundo os mesmo autores, findando o século XX percebeu-se que com os avanços tecnológicos e científicos, o homem pode estar voltando a tornar-se objeto de comércio; não há a comercialização do corpo todo como era tempos atrás (era da escravidão), entretanto, o que se percebe na atualidade é desenvolvimento do comércio de partes separadas do corpo humano, e advertem que:

Os limites entre os usos e os abusos do corpo tornaram-se gradualmente mais sutis e imprecisos. E provocaram manifestações, como em outros tempos, de opiniões filosóficas cientificas e jurídicas notavelmente divergentes. Essa nova apresentação do problema leva também a uma reconsideração sobre as analogias e as diferenças em relação ao passado, e ás muitas manifestações dessa dupla caracterização dos seres humanos como sujeito e como objeto de troca, que hoje inclui quase cada uma de suas partes: sangue e medula; gametas e órgãos de reprodução; placenta, embrião e feto, DNA e células, além dos órgãos utilizáveis para transplante.[50]

            Destarte a compra e venda de determinadas partes do corpo humano não deve desencadear a repudia ou censura “nem da ciência moderna, nem das suas inumeráveis aplicações benéficas”, e, assim esclarecem fazendo a seguinte comparação:

(...) a desumana exploração dos menores, que teve inicio no século XVIII, que se expandiu e depois extinguiu-se  no século sucessivo, pelo menos nos países desenvolvidos . Estes fatos não podem induzir à condenação em bloco da revolução industrial, ainda que no inicio o trabalho bestial de crianças tenha sido umas componente intrínseca.[51]

         Com essas técnicas, suscitam tantos prós e contras, e cada qual é defendido por uma concepção moral, que pode comprometer o futuro de toda a espécie humana “que se tornou interdependente em relação aos fatos, ainda que por sorte se mantenha diversificada em termos de história, leis e cultura”[52].

         Diante de um presente de possibilidades, e de uma diversidade de éticas em face da presença da subjetividade moral, o Direito apresenta-se como elemento fundamental e determinante para fixar os limites éticos da utilização da biotecnologia, de modo a proporcionar um tratamento igualitário para todos, primando pela busca de felicidade como realizadora da vida boa.

Assim, com o elemento jurídico aparece a Bioética, caracterizada por W. Reich como “um conhecimento complexo de natureza pragmática, aplicado aos questionamentos morais suscitados pelas decisões clinicas e pelos avanços” [53], portanto, objeto do mundo do conhecimento com conseqüências no mundo natural, que via fixar um limite sem privar o sujeito de direito de alcançar a felicidade, pelo que se impõe o racionalismo sobre a emoção.

Essa natureza pragmática tem quatro princípios sendo eles o principio  da autonomia, da beneficência, da não-maleficência e o da justiça . Essa base principiologica implica em tomadas de decisões morais e que são resguardadas pelo direito, nos casos onde há conflito de valores no que se refere aos avanços tecnológicos e científicos.

2.5.1. Principio da Autonomia

Entre todos os princípios, este é identificado como o respeito à pessoa, sendo autonomia (autos, próprio; nomos, vontade) o principio que designa que todos devem ser responsabilizados pelos seus atos, logo a liberdade de escolha seria o marco numero um para a análise do limite ético, que segundo Daury César Fabriz se consubstancia no relacionamento médico-paciente onde o profissional simplesmente age de forma a realizar à autonomia da vontade do paciente, afirmando que:

O princípio da autonomia justifica-se como principio democrático, no qual a vontade e o consentimento livres do indivíduo devem constar como fatores preponderantes, visto que tais elementos ligam-se diretamente ao princípio da dignidade humana.[54]

Fabriz faz uma ressalva aos questionamentos inerentes as hipóteses de se tratamento de incapazes, sejam menores impúberes púberes ou portadoras de alguma deficiência, pois, estes não teriam o discernimento para manifestação livre e consciente da vontade, assim, “nessas hipóteses, deve-se colocar o Estado como guardião dos direitos indisponíveis, inerentes a vida e a dignidade” [55], entretanto, em defesa da liberdade de escolha, afirma que:

No âmbito das pesquisas ou aplicação de novas tecnologias que envolvam populações, o principio da autonomia deve ser observado. Quando uma comunidade contribui com suas opiniões, ou mesmo deixa-se submeter a determinados procedimentos, para que se realize um estudo, essa comunidade deve ser informada de todos os riscos. Não cabe a justificativa, para a sonegação de tais informações, por questões ligadas ao método ou rigor científico .[56]

Nesse sentido, segundo o principio da autonomia, orienta a formação de normas que imponha limite com base no dever de informação, e esta deve ser realizada alertando as pessoas dos riscos e benefícios, ficando a cargo delas, decidir se querem ou não optar por esses métodos científicos.

2.5.2 Principio da Beneficência e da Não-Maleficência

Por seu turno, Maria Celeste Cordeiro Santos ao se manifestar sobre o principio da beneficência afirma que este princípio fundamenta-se na regra da confiabilidade. Em análise etimológica, do latim bonum facere significa fazer o bem, este principio indica a obrigação do profissional da saúde e do investigador ter como primeiro objetivo fazer o bem,[57] como consecução da vida boa.

A máxima do principio da beneficência foi instituído a muitos anos atrás, ainda no Juramento de Hipócrates, pelo qual houve limitação para a prática médica, pelo contrário, conferiu-se a medicina elaborar o estatuto teorético de ciência, segundo dispõem Giovanni Reale e Dario Antiseri:

(...) conseguiram determinar com uma lucidez verdadeiramente impressionante a estatura ética do médico, o ethos ou identidade moral que deve caracteriza-lo. À parte o pano de fundo social bem visível no comportamento expressamente tematizado (...) o sentido do juramento se resume numa proposta simples que, em termos modernos , poderíamos expressar assim: médico, lembra-te de que o doente não é uma coisa ou um meio, mas um fim, uma valor, e portanto comporta-te em decorrência disto.[58]

Por oportuno, cita-se parte do Juramento Hipocrático:

Por Apolo médico, por Esculápio, por Higéia, por Panacéia e por todos  os deuses e deusas, invocando-os por testemunhas, juro manter este juramento e este pacto escrito, segundo as minhas forças e o meu juízo. (...) Valer-me-ei do regime para ajudar os doentes, segundo as minhas forças e o meu juízo, mas me absterei de causar dano e injustiça (...) em todas as casas em que entrar, irei para ajudar os doentes, abstendo-me de levar voluntariamente injustiças e danos, especialmente de qualquer ato de libidinagem nos corpos de mulheres e de homens livres ou escravos.[59]

 Logo, pode-se observar que o principio da beneficência encontra limite no fazer o bem, não causar dano, cuidar da saúde, favorecer a qualidade de vida, e porque não realizar a vida boa? Pois, é o que explicita o Juramento de Hipócrates.[60]

Daury César Fabriz assevera que este princípio em seus imperativos é de extrema importância na delimitação de padrões de conduta, além do dever de praticar o bem, engloba ainda o dever de não fazer o mau, quando afirma:

Fundado nas máximas non nocere e bonum facere, engloba um outro principio, o da não-maleficência ( primum nom nocere) , o de não impingir a alguém qualquer dano. Tal princípio põe em pauta uma série de indicativos que devem ser levados em consideração nas práticas ligadas a biociência.[61]

Salienta ainda o autor que o principio da beneficência deve ser o horizonte para a normatização jurídica, pois, dispondo e garantindo direitos e deveres à comunidade científica e por ultimo mas, não menos importante (aliás, talvez o mais importante) aos médicos e pacientes, assim segundo  Daury César Fabriz a norma deve nortear-se por ações que visem o bem, quando diz:

Uma normatização jurídica, nesse sentido, deve conter disposições que indiquem as ações a serem estabelecidas como procedimentos adequados a serem seguidos pelos prestadores de serviços, instituições e profissionais, voltados para a melhoria da saúde e o bem-estar da clientela.[62]

           

            O principio da não-maleficência segundo Maria Helena Diniz é um desdobramento do principio na beneficência, pois tem como finalidade a obrigação de não causar dano intencional; assim, tal principio deriva de uma máxima médica, qual seja, a de fazer o bem,[63] estando implícito no principio da beneficência, pois se existe a imperatividade da realização do bem, é inadmissível a pratica do mal.

 2.5.3 Principio da Justiça

O principio da Justiça, indica por sua vez a obrigatoriedade de haver uma distribuição “justa, eqüitativa e universal dos bens e serviços (dos benefícios) de saúde,”[64] cuja seja acessível a todos na busca da realização da vida boa para o alcance da felicidade.

Ao fazer menção ao principio da justiça Daury César Fabriz[65] afirma que a palavra é objeto de significados pluralista, ou seja, segundo ele os “critérios de justiça são vários”, por exemplo: se um lado alguns dizem que justo é aquilo que é realizado de acordo com a lei; de outro lado outros afirmam que a lei deve corresponder ao sentimento de justiça, entretanto, em que pese à divergência dos significados, Direito e Justiça sempre se apresentaram como conceitos afins.   

Estabelecendo um sentido formal de justiça, o mesmo autor afirma que a realização da justiça é tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, dizendo que “se as pessoas não forem iguais, elas não terão uma participação igual nas coisas”[66], nesse sentido, ao se tratar a igualdade na pratica da biotecnologia, deve-se ter em mente o próprio princípio do respeito, que é a aceitação da verdade alheia, pois, se algum dia a verdade alheia se tornares a tua verdade, poderá lhe ser útil como foi para o teu semelhante.           

Nesse sentido Manfredo Araújo Oliveira[67] constata que as igualdades de direitos aos serviços de saúde expressam a justiça na seara biomédica, criam entre a teoria e a pratica um grande abismo, qual seja, o da inefetividade e por conseguinte a injustiça.

Importante salientar que a maioria absoluta das pessoas que são contra a aceitação da manipulação de material genético, o são em razão de nunca terem necessitado dos préstimos desta área do conhecimento para a cura de uma moléstia grave que afeta um ente querido, e em face da necessidade, todos aqueles padrões éticos e discriminatórios desaparecem, como que se nada mais existisse. Ora, a análise do senso de justiça para a fixação do limite ético, deve ser a partir da análise do ponto de vista de quem necessita a prática, posto que mesmo aquele que é contra, não tendo outra alternativa, altera seu convencimento em razão de um novo entendimento.

2.5.4 O Homem como a medida de todas as coisas, a necessidade de uma bioética intervencionista

Segundo a corrente sofistica, o filósofo mais prestigiado da área foi Protágoras de Abdera na década compreendida entre 491 e 481 a.C. Protágoras tinha como proposta basilar o axioma “o homem é a medida de todas as coisas, daqueles que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são”.[68] Naquele tempo, a prática da medicina era uma profanação do corpo, hoje é objeto inclusive da livre disposição do corpo com o fim único da beleza.

Neste diapasão constata-se que sempre desde os primórdios o homem sempre foi tido como valor-fonte em detrimento a todos os demais valores e, essa assertiva se constata na área das ciências biomédicas, na filosofia, no direito, em fim em todas as áreas do conhecimento.

Com o advento dos avanços das biotecnologias, percebeu-se que o fenômeno homem como valor-fonte poderia estar em risco, pois, se de um ponto vista as biotecnologias podem ser meios para o homem alcançar felicidade; sob outro viés coloca em risco essa invariante axiológica que é o ser humano.

Contudo não se devem analisar a pratica das biotecnologias como um check list, mas sim sob o enfoque de uma bioética de intervenção, como bem acentua Volnei Garrafa em entrevista concedida ao Centro de Bioética do CREMESP, quando assim se manifestou:

A bioética de intervenção não exclui a reflexão – só que exige uma indispensável e imediata tomada de posição. A bioética é, obrigatoriamente, uma “ética aplicada”. Tal expressão sempre foi do âmbito da filosofia, mas situações vinculadas ao desenvolvimento científico e tecnológico tão acelerado; ao projeto genoma humano; as novas tecnologias reprodutivas; à clonagem de animais; à utilização de células-tronco, atropelaram os filósofos, que não tiveram mais como deixar de nos ajudar e dar resposta concretas. O que a velha filosofia queria era ficar só na reflexão(...)mas os problemas concretos não esperam por reflexões demoradas. [69]

            Constata-se, pois, a necessidade de uma bioética intervencionista, cujas decisões devem voltar-se para a perspectiva da intervenção sob o enfoque do utilitarismo consequencialista, mas também solidário, ou seja, aquela “decisão ética capaz de beneficiar o maior número de pessoas, pelo maior espaço de tempo possível, trazendo as melhores conseqüências públicas e coletivas.” [70]

Volnei Garrafa salienta que “a bioética de intervenção é uma espécie de bioética da libertação sem Deus e sem padres”[71], portanto, a prática da biotecnologia encontra resistência que são comuns sob o ponto de vista religioso, mas que sob o ponto de vista humanístico, bem como realizador da dignidade da pessoa humana, deve ser permitida para proporcionar ao sujeito de direito a sonhada felicidade, pois, não permitir que um pai ou mãe possa salvar seu filho, ou, um filho deixar que um pai ou uma mãe morra pelo simples fato da proibição da manipulação de material genético, seria o mesmo que obrigar uma mulher (vitima de estupro ou uma gestante que corre risco de morte) a continuar com a gestação.

Esta conclusão se faz, em face dos posicionamentos filosóficos que justificaram as possibilidades do aborto, bem como em face da permissão da morte decorrente da legitima defesa, pois se de um lado está o concepto (sujeito inexistente – simples matéria com potencialidade), de outro está um sujeito de direito (forma potencializada) que necessita dos genes que serão manipulados, na mesma proporção e importância que qualquer sujeito de direito, legitimo detentor do direito de proteção a vida, cuja proteção o Estado esta obrigado, desde o momento que suprimiu dos tutelados a possibilidade da autotutela.

2.5.5 Humanismo jurídico a luz do biodireito e da bioética

Os avanços biotécnologicos a disposição da humanidade, como dito, geram uma pluralidade de opiniões, entretanto, é uníssona a idéia de preservação da dignidade da pessoa humana, elemento este que é o fundamento do estado democrático de direito[72], a bioética, tanto para os principialista como para os intervencionistas, veem nos alertando sobre as conseqüências e benefícios que podemos ter.

O tema não é de fácil solução e como comenta Maria Helena Diniz a “bioética emerge como novo domínio da reflexão que considera o ser humano em sua dignidade e as condições éticas para uma vida humana e digna”[73], na busca de soluções para os problemas de difícil solução e polêmicos, que desafiam a argúcia dos juristas, mas que não podem ser ignorados sob pena de privar o ser humano do alcance da felicidade.

Desses numerosos avanços e da necessidade de uma tomada de posição por parte do Direito surgiu uma nova disciplina, qual seja, o biodireito. Esta disciplina tem como fonte imediata os princípios bioéticos, e tem a pessoa humana, como valor-fonte. Maria Helena Diniz acrescenta que “faz-se necessária uma ‘biologização’ ou ‘medicalização’ da lei, não havendo como desvincular as ‘ciências da vida’ do direito, pois, cada vez mais a biologia e o direito caminham pari passu[74], na formação da disciplina da bioética, área de abrangência da ciência reguladora dos limites de manipulação das diversas formas de disposição do corpo humano.

            Destarte, faz-se necessário a conscientização dos juristas, dos legisladores, dos biólogos, geneticistas, da população como um todo, que o fim maior é dignidade da pessoa humana.

Assim, não se pode perder de vista que o ser humano é valor-fonte, é invariante axiológica, é algo que vale por si mesmo e não em relação a terceiros. Destarte a bioética e o biodireito estão incumbidos de sempre analisarem primeiramente o valor-fonte e depois em segunda linha os demais valores.

            Desta feita, na medida em que as ciências da vida se aperfeiçoam elas visam a felicidade e tem-se as biotecnologias como um aliado na busca de um novo humanismo jurídico, empreendimento este, que tem como escopo a função de tornar o ser humano verdadeiramente humano, pois é da essência do homem almejar melhores condições de vida, desta forma ele se reinventa, ele se recria, ele torna-se um verdadeiro Homo Faber, cria um mundo para nele habitar.

Desta forma o homem simplesmente estaria se fazendo valer do que Deus lhe dera, criando um mundo melhor para nele habitar, pondo-se como verdadeiro Demiurgo, sem com isso querer ocupar o lugar do Grande Arquiteto do Universo, pois, se a biotecnologia fosse obra exclusiva de Deus, certamente não teria conferido ao ser humano a possibilidade do redescobrimento de si mesmo.

4.     CONCLUSÃO

A busca do bem estar e tranqüilidade duradoura é característica intrínseca da humanidade em relação às demais espécies, o ser humano se reinventa e através do tempo e tenta encontrar o verdadeiro sentido de sua existência, buscando no mundo melhores condições de vida.

Na incansável busca de melhorias do seu bem estar o homem se põe como verdadeiro Demiurgo, no estrito sentido neoplatônico que a palavra demonstra, de recriar o mundo para nele habitar, sem que com isso queira provocar heresias, mas, simplesmente exercitar na plenitude as dádivas divinas, como forma de realização da felicidade.

Nessa incessante busca da vida boa por estar-melhor-no-mundo, o ser humano vê nas biotecnologias mais um degrau na árdua busca da felicidade, fim ultimo de toda ação humana como bem vem sendo exaltado desde Aristóteles.

Apesar dos alertas dos prós e contras, sabe-se que não se pode retroagir em relação a tais avanços, mas, sim deve-se disponibilizar do que eles possuem de melhor para ajudar o ser humano a alcançar a felicidade, na busca pelo sentido da existência humana.

A legislação tem sido uma barreira inibidora da pratica das biotecnologias, enquanto deveria estar a serviço da felicidade, assim como a lei é a dona de todo o discurso jurídico, nesta perspectiva o ser humano é o protagonista neste discurso, pois, não há o que se falar em lei se não houver o seu elemento primordial, o ser humano! Portanto, os limites devem corresponder aos anseios do ser humano na busca da felicidade.

Sendo a pessoa humana uma invariante axiológica enquanto valor-fonte, e sendo as biotecnologias um meio para alcançar o fim ultimo, qual seja, a felicidade, cabe ao Direito ou em especifico ao Biodireito e a Bioética tanto a principialista quanto a intervencionista filtrar o que há de melhor nesses avanços, para, assim, culminar em um projeto humanismo jurídico, o qual deve ter em conta dois valores fundamentais: o principal: a invariante-axiológica dita sujeito de direito; e outro, secundário: a felicidade.

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Sobre a autora
Pâmela Thais Escher

Procuradora Municipal <br>Pós Graduada em Direito Administrativo - CERS/Estácio.

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