7.CORRUPÇÃO E DESESTATIZAÇÃO.
Sendo a corrupção uma conseqüência assaz comum nas hipóteses de concentração de poder, um dos instrumentos utilizados para combatêla é a descentralização de poder.
Especificamente no que concerne à intervenção do Estado no domínio econômico, abstraindonos de concepções ideológicas, é possível afirmar que a sua paulatina redução importará em proporcional diminuição dos poderes dos agentes públicos, o que acarretará o estreitamento de seu campo de ação e em muito restringirá o estímulo à prática dos atos de corrupção.
O estímulo à iniciativa privada é uma importante medida de combate à corrupção. Oferecendose facilidades, pouco espaço sobra para que o agente público venda dificuldades. Quanto menor for a intervenção do Estado no mercado, menor será a relevância do papel desempenhado pelo agente público, o que em muito reduzirá o espaço aberto à corrupção.
Não se ignora, no entanto, que a livre concorrência, apesar de apresentar os aspectos favoráveis acima referidos, não pode ser levada a extremos. Não raro será imperativa a intervenção do Estado no domínio econômico, o que preservará a igualdade de oportunidades e reduzirá a possibilidade de dominação de mercados.
Frisese, ainda, que a própria redução da intervenção estatal no domínio econômico tem sido fonte de incontáveis atos de corrupção, em especial para a obtenção de informações privilegiadas e conseqüente limitação da competitividade nos respectivos leilões de privatização.
8.CORRUPÇÃO E RESPONSABILIDADE DO AGENTE PÚBLICO.
Como derivação da própria noção de democracia, que congrega a idéia de representatividade de interesses alheios, deve ser prestigiada a possibilidade de responsabilização de todos aqueles que desempenhem esse munus.
Em sua essência, a responsabilidade do agente público pelos ilícitos que venha a praticar é conseqüência lógica da inobservância do dever jurídico de atuar em busca da consecução do interesse público. Dessa concepção teleológica derivam o dever de transparência e o dever de prestar contas da gestão dos recursos públicos. Descumpridos os deveres, haverá de incidir a sanção correspondente. Inexistindo sanção, terseá o enfraquecimento da própria concepção de dever.
A responsabilização dos agentes públicos pode se disseminar em múltiplas vertentes, assumindo um colorido administrativo, político, penal, cível ou mesmo moral. Tais vertentes, que acompanharão a natureza do ato e a sua potencialidade lesiva no contexto social, possibilitarão a aplicação de sanções extremamente variáveis, quer seja em grau ou em essência.
A interrelação entre as responsabilidades política e judicial (rectius: penal ou cível) merece uma breve reflexão. Como ensinam as regras de experiência, na medida em que se ascende no escalonamento hierárquico, mais remotas se mostram as possibilidades de responsabilização do agente público. Tal constatação deriva das maiores prerrogativas que a lei concede ao agente, de sua ascendência política, da possibilidade de manipulação da opinião pública, da maior disponibilidade de recursos financeiros o que lhe permitirá uma ampla defesa (quer seja lícita ou ilícita) e de um possível direcionamento da estrutura administrativa à consecução de seus próprios interesses. No que concerne aos agentes políticos, que normalmente ocupam o ápice do escalonamento funcional, raros são os casos de responsabilização política, o que deriva da constatação de que a própria atividade partidária, a cada dia mais ampla e organizada, tende a evitar que o Chefe do Executivo tenha contra si uma forte oposição no Parlamento, isto sem olvidar os ajustes políticos de toda ordem que são diuturnamente realizados.
Ante a ínfima possibilidade de responsabilização política, que seria um eficaz mecanismo de prevenção e repressão à corrupção, resta a responsabilização perante os órgãos judiciais, o que pressupõe a tramitação de um demorado e custoso processo e o preenchimento de requisitos específicos, como o elemento subjetivo exigido pela norma (dolo ou culpa) e o enquadramento da conduta em uma tipologia específica. A distinção entre responsabilidade política e responsabilidade judicial, conquanto clara para o operador do direito, é quase que imperceptível à população em geral. Como conseqüência, uma possível condenação judicial pode ensejar, aos olhos do leigo, o surgimento de um sentimento de ilegitimidade em relação ao Poder Judiciário, pois o agente político contou com o beneplácito dos parlamentares, que são representantes do povo, o que impossibilitou o simultâneo reconhecimento de sua responsabilidade política. Com isto, temse uma indesejável semente de desprestígio do aparato judicial frente à população, já que à condenação jurídica não esteve atrelada a condenação política e a necessária responsabilização moral.
Especificamente em relação à responsabilidade moral, temse a projeção dos efeitos da publicidade do ato no organismo social, que os absorverá e formará um juízo crítico a respeito das virtudes e dos valores éticomorais do agente público. Sua conduta tanto poderá merecer o beneplácito como o repúdio de seus pares, o que terá grande relevância nas hipóteses em que o agente, por pretender exercer a representatividade popular, dependa dos votos daqueles que tiveram conhecimento de seus atos. O juízo crítico acima referido, elemento condicionante da própria responsabilidade moral, variará em graus semelhantes à capacidade de percepção do organismo social. A disseminação da informação pressupõe uma imprensa livre (e responsável), enquanto a sua assimilação exige uma população com níveis satisfatórios de desenvolvimento social e intelectual. [15] Em um país de baixo desenvolvimento humano, como é fácil concluir, a responsabilização moral do agente é sensivelmente enfraquecida, terminando por se diluir com uma mistura infalível: o passar do tempo e um bom exercício de retórica. Frustrados os mecanismos de controle social, não resta outra alternativa senão buscar a efetividade dos instrumentos de persecução e de repressão à corrupção.
9.DOSIMETRIA DAS SANÇÕES E PERSPECTIVA DE EFETIVIDADE.
Além dos mecanismos de prevenção já mencionados, o combate à corrupção está diretamente entrelaçado à perspectiva de efetividade das sanções cominadas. A prática de atos de corrupção, dentre outros fatores, sofre um sensível estímulo nas hipóteses em que seja perceptível ao corrupto que reduzidas são as chances de que sua esfera jurídica venha a ser atingida em razão dos ilícitos que perpetrou. Por outro lado, a perspectiva de ser descoberto, detido e julgado, com a conseqüente efetividade das sanções cominadas, atua como elemento inibidor à prática dos atos de corrupção.
Ainda que esse estado de coisas não seja suficiente a uma ampla e irrestrita coibição à corrupção, seu caráter preventivo é induvidoso. Além das sanções de natureza penal, que podem restringir a liberdade individual, é de indiscutível importância a aplicação de reprimendas que possam, de forma direta ou indireta, atingir o bem jurídico que motivou a prática dos atos de corrupção: o patrimônio do agente.
Quanto maiores forem os prejuízos patrimoniais que o agente poderá suportar e mais aprimorados se mostrarem os meios de controle, menores serão os estímulos à corrupção. Essa afirmação, aparentemente simples, não deve ser interpretada como um mero exercício de retórica. À sua concreção no plano fático deve estar vinculada a efetiva existência de custo econômico para o agente que venha a sofrêlas. Esse custo econômico estará atrelado não só à perda patrimonial atual, como também à futura. A perda patrimonial futura refletirá, em especial, os ganhos que o agente deixará de receber caso venha a perder o cargo ocupado e a inabilitação para o exercício de outra função no prazo fixado em lei. Dessa constatação resulta a conclusão de que o receio do prejuízo patrimonial, verdadeiro elemento inibidor da corrupção, será tanto maior quanto mais elevada for a remuneração recebida pelo agente. Remuneração insignificante, além de atentatória à dignidade da função e comprometedora da subsistência do agente, é um indiscutível elemento de estímulo à corrupção.
Merece ser realçado que, além do aspecto jurídico das sanções, os agentes públicos, em especial aqueles que exercem função política, em muito prezam a reputação que ostentam e, uma condenação por corrupção, como se sabe, reduz sensivelmente as perspectivas de êxito em um futuro pleito.
Repitase, uma vez mais, que é absolutamente inútil a cominação de severas sanções se os mecanismos de controle e de execução são ineficazes. O temor que reduzirá o ímpeto do agente para a prática do ilícito surge a partir da constatação de que uma sanção será inevitavelmente aplicada. Ao revés, não obstante a cominação legal, havendo a certeza de que a sanção não se efetivará, o temor se transmuda em estímulo, em muito enfraquecendo os freios inibitórios do agente.
Além do aspecto preventivo, a sensação de efetividade das sanções terá como sucedâneo a lenta e paulatina diminuição dos próprios custos com os mecanismos de controle, pois, na medida em que se difunde a repulsa à ilicitude, em menor número serão aqueles que se aventurarão à sua prática.
10.CORRUPÇÃO E INTERESSE PRIVADO.
A corrupção, a partir da relação estabelecida entre corruptor e corrompido, busca minimizar os custos e maximizar as oportunidades. Nessa perspectiva, a corrupção se apresenta como um meio de degradação do interesse público em prol da satisfação do interesse privado. O agente público, apesar de exercer suas funções no âmbito de uma estrutura organizacional destinada à consecução do bem comum, se desvia dos seus propósitos originais e passa a atuar em prol de um interesse privado bipolar, vale dizer, aquele que, a um só tempo, propicia uma vantagem indevida para si próprio e enseja um benefício para o particular que compactuou com a prática corrupta. A questão, acaso dissociada de balizamentos éticos, sendo analisada sob uma ótica meramente patrimonial, permitirá concluir que, em inúmeras oportunidades, o particular tenderá a aceitar a prática corrupta para a satisfação mais célere ou menos custosa de seu interesse privado, ainda que o interesse público termine por ser prejudicado.
Essa ausência de consciência coletiva, com a correlata supremacia do interesse privado sobre o público, é, igualmente, um poderoso elemento de estímulo à corrupção, tornandoa socialmente aceitável. Seu combate está diretamente relacionado ao desenvolvimento dos padrões educacionais e da consciência cívica da população, fatores que exigem um processo contínuo de aperfeiçoamento e que somente apresentam resultados satisfatórios a longo prazo.
Devese afastar a vetusta concepção de que a coisa pública não é de ninguém, fruto indesejado do perverso ciclo de perpetuação da ignorância popular [16]: povo ignorante não se insurge contra o agente corrupto, o agente corrupto desvia recursos públicos e os afasta das políticas de concreção da cidadania, o povo fica mais ignorante e dependente daquele que o lesou, sendo incapaz de romper o ciclo – quando muito, altera os personagens.
Regra geral, a corrupção é deflagrada por grupos de pressão, os quais atuam de forma sistemática junto aos poderes constituídos para a consecução de seus objetivos, culminando em direcionarse para aquela vertente sempre que não alcancem seus fins por meios diversos.
Sob a ótica empresarial, a corrupção, normalmente, é vista como um instrumento necessário à manutenção da própria competitividade entre aqueles que atuam em um meio reconhecidamente corrupto. Aqueles que abdicarem da corrupção se verão em uma posição de inferioridade em relação aos competidores que se utilizam desse mecanismo, sendo possível, até mesmo, sua exclusão da própria competição (v.g.: órgão público cujos agentes fraudam com freqüência suas licitações ou que exigem um percentual do objeto do contrato para a sua adjudicação, somente permitirá que o certame seja vencido por empresa que se adeqüe ao esquema de corrupção).
O contratante beneficiado pelos atos de corrupção, não raro, deixa de cumprir os requisitos técnicos exigidos para o caso e deixa de realizar a melhor prestação, isto porque o custo da corrupção haverá de ser transferido para a execução do contrato, o que redundará em prestação com quantidade ou qualidade inferior à contratada.
As formas de corrupção não só toleradas como estimuladas no âmbito empresarial apresentam múltiplas variações. Dentre as mais comuns, podem ser mencionadas: a) a entrega de presentes aos agentes públicos que de algum modo possam beneficiar a empresa no exercício da função; b) a desmesurada hospitalidade na recepção dos agentes públicos; c) o custeio de despesas que recaem sobre tais agentes; d) o fornecimento de viagens gratuitas etc.
A corrupção pode se manifestar, igualmente, como projeção das alianças que propiciaram ao agente público a ascenção ao poder. Em casos tais, os benefícios auferidos pelo agente antecederam o próprio exercício da função pública, mas gerarão reflexos na atividade finalística a ser por ele ulteriormente desenvolvida. Tratase de verdadeira corrupção diferida, na qual a vantagem recebida no presente desvirtuará a atividade administrativa em momento futuro.
11.CUSTOS SOCIAIS DA CORRUPÇÃO.
O regular funcionamento da economia exige transparência e estabilidade, características de todo incompatíveis com práticas corruptas. A ausência desses elementos serve de desestímulo a toda ordem de investimentos, que serão direcionados a territórios menos conturbados, o que, em conseqüência, comprometerá o crescimento, já que sensivelmente diminuído o fluxo de capitais.
Quanto maior for a relevância dos interesses que o agente público venha a dispor em troca das benesses que lhe sejam ofertadas, maior será o custo social de sua conduta. [17]
As políticas públicas, ademais, são sensivelmente atingidas pela evasão fiscal, que consubstancia uma das facetas dos atos de corrupção. Com a diminuição da receita tributária, em especial daquela originária das classes mais abastadas da população, diminui a redistribuição de renda às classes menos favorecidas e aumenta a injustiça social. Esse quadro ainda servirá de elemento limitador à ajuda internacional, pois é um claro indicador de que os fundos públicos não chegam a beneficiar aqueles aos quais se destinam.
Esse ciclo conduz ao estabelecimento de uma relação simbiótica entre corrupção e comprometimento dos direitos fundamentais do indivíduo. Quanto maiores os índices de corrupção, menores serão as políticas públicas de implementação dos direitos sociais. [18] Se os recursos estatais são reconhecidamente limitados, o que torna constante a invocação da reserva do possível [19] ao se tentar compelir o Poder Público a concretizar determinados direitos consagrados no sistema, essa precariedade aumentará na medida em que os referidos recursos, além de limitados, tiverem redução de ingresso ou forem utilizados para fins ilícitos.
Como os atos de corrupção normalmente não ensejam o surgimento de direitos amparados pelo sistema jurídico, já que escusos, a solução dos conflitos de interesses verificados nessa seara normalmente redunda na prática de infrações penais, o que estimula o aumento da própria criminalidade.
A corrupção, assim, gera um elevado custo social, sendo os seus malefícios sensivelmente superiores aos possíveis benefícios individuais que venha a gerar. [20]