1- INTRODUÇÃO
Este trabalho versará sobre o habeas corpus preventivo e suas especificidades, abordando, principalmente, seu papel no âmbito do processo penal brasileiro. Serão desenvolvidos aspectos como o histórico, classificação, consequências e posicionamentos dos Tribunais Superiores.
Nessa perspectiva, o principal objetivo do referido trabalho é explicitar a forma de aplicação do habeas corpus no Direito brasileiro. Para tal, serão feitas as críticas e ressalvas necessárias, como forma de melhor explicar a realidade jurídica atual.
Dessa forma, haverá uma maior facilidade para o entendimento do dispositivo em questão em face do embasamento pessoal e doutrinário que será fornecido. Assim, o habeas corpus poderá ser compreendido frente a sua finalidade e maneiras de aplicação.
2- DESENVOLVIMENTO
2.1. HISTÓRICO
Para melhor compreender o dispositivo do habeas corpus, é necessário fazer uma breve análise de sua origem.
Durante muito tempo, em certos momentos históricos, os direitos humanos, mesmo inerentes a todos os homens, não foram respeitados nem tampouco assegurados. Um desses momentos, por exemplo, consiste no Estado Absoluto, época em que o direito à liberdade praticamente inexistia.
Como predileciona Marmelstein (2014, p. 39):
No âmbito da repressão penal, o Estado era implacável. Os juízes condenavam sem garantir o direito de defesa ou mesmo o contraditório aos acusados. As penas eram cruéis, desumanas e desproporcionais à gravidade do delito cometido.
Assim, durante o Estado Absoluto, não havia tolerência religiosa, liberdade econômica ou de expressão e nem garantias processuais (contraditório, por exemplo). Dessa forma, inexistia, consequentemente, o direito à liberdade de locomoção, visto que, muitas vezes, um indivíduo não podia optar entre ir, vir e permanecer em virtude da ausência de seu direito de se expressar conforme sua vontade.
Nessa perspectiva, em meio aos privilégios concedidos à nobreza e ao clero e ao sentimento de revolta popular ocasionado por eles, surge, com base na ideologia do jurista tcheco Karel Vasak, a primeira geração de direitos fundamentais. Tal geração baseava-se, basicamente, nos ideais de liberdade que emergiam àquela época, inclusive o direito à livre locomoção.
Desse modo, ainda com relação ao histórico do habeas corpus, é inégavel a influência ocasionada por um grande marco para tal dispositivo: a Magna Carta de 1215. No referido documento, já notavam-se indícios de que a liberdade pessoal deveria ser respeitada, não podendo ser limitada por qualquer autoridade sem que houvesse um motivo justo e real.
No Brasil, os primeiros sinais de proteção aos objetivos do habeas corpus ocorreram com o advento do Decreto de 23 de maio de 1821, que determinava que:
[...] desde a sua data em diante nenhuma pessoa livre no Brazil possa jamais ser presa sem ordem por escripto do Juiz, ou Magistrado Criminal do territorio, excepto sómente o caso de flagrante delicto, em que qualquer do povo deve prender o delinquente.
Assim, somente foi contemplado o institudo do habeas corpus no Código de Processo Criminal de 1932, sendo, posteriormente, reafirmado com a Constituição de 1871 e em todas as outras que a seguiram. Esta, em seu artigo 72, informa que “dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer violência, ou coação, por ilegalidade,ou abuso de poder.”. A partir de então, surgiu o que se denominou de “doutrina brasileira do habeas corpus”, isto é, um desenvolvimento para entender até onde iria a proteção oferecida pelo instituto em questão.
Nesse sentido, ainda no âmbito do Brasil, é válido ressaltar que, durante o período da ditadura militar, o habeas corpus sofreu graves limitações, sobretudo pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5) de 13 de novembro de 1968. Tal dispositivo pregava em seu artigo 10º que “fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”, evidenciando um prejuízo considerável à liberdade pessoal.
2.2. CONCEITO
O termo habeas corpus é proveniente do latim e significa “tome o corpo”, representando, de certo modo, a finalidade característica desse instituto.
O principal objetivo do habeas corpus, de modo geral, é a proteção do direito de locomoção (ir, vir e permanecer) contra qualquer tipo de medida abusiva que, geralmente, provém do Poder Público. Porém, é sabido, também, que tal abuso pode ser oriundo de particular, sendo cabível, da mesma maneira, o mecanismo em análise.
Nessa perspetiva, ensina Mendes (2014, p. 426):
A liberdade de locomoção deve ser entendida de forma ampla, não se limitando a sua proteção à liberdade de ir e vir diretamente ameaçada, como também a toda e qualquer medida de autoridade que possa afetá-la, ainda que indiretamente.
Desse modo, evidencia-se que tanto a coerção como a coação estão abrangidas pelo instituto em análise, sendo esta entendida como a pressão psicológica e aquela como a violência propriamente dita (física).
Também, é bastante corriqueiro o uso do habeas corpus com o intuito de trancar o inquérito policial em algumas hipóteses, como evidencia o H.C. 20121/MS, Rei. Ministro Hamilton Carvalhido, 6ª Turma, STJ:
O trancamento da ação penal, por ausência de justa causa, somente é possível, conforme entendimento desta Corte e do Pretório Excelso, quando prontamente desponta a inocência do acusado ou, atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade [...]
Tal afirmação evidencia a amplitude dada ao alcance do habeas corpus, que se estende, portanto, às medidas que afetem, mesmo que indiretamente, a liberdade individual. Essa amplitude justifica-se, conforme lição de FLORÊNCIO DE ABREU (1945, adput NUCCI, 2015), pela “ausência, no nosso mecanismo processual, de outros remédios igualmente energéticos e expeditos para o amparo de outros direitos primários do indivíduo”.[1]
É válido ressaltar, ainda, que, como dito no art. 5º, LXXVII da Constituição Federal/88, o habeas corpus sempre será fornecido de maneira gratuita, inexistinto, dessa forma, tal dispositivo com a finalidade de condenação no Brasil.
Ademais, a titularidade do direito do habeas corpus deve ser, em regra, da pessoa natural que tiver sido afetada pelo atentado a seu direito de locomoção. Contudo, conforme ensina o art. 654, caput, do Código de Processo Penal, pode ser impetrado, também, por qualquer outro indivíduo ensejado por benefício para si ou para terceiro, assim como pelo Ministério Público.
Portanto, entende-se que habeas corpus consiste num mecanismo constitucional (art. 5º, LXVIII, Constituição Federal) que visa evitar (preventivo) ou fazer cessar (liberatório) qualquer espécie de abuso e ilegalidades que afetem o direito à locomoção de certo indivíduo. Refere-se a uma ação de conhecimento, como é bem disposto no artigo acima supracitado, sendo também, para diversos autores, um instrumento de caráter impositivo, visto que é preciso que a autoridade abusiva, por exemplo, pare imediatamente com a conduta errônea, podendo, caso contrário, incorrer em desobediência.
Por fim, embora o Código de Processo Penal vigente o trate como recurso, o mecanismo em estudo não é considerado como tal. Isso se explica porque ele pode ser aplicado a qualquer momento, independentemente de haver o esgotamento de todas as instâncias ou não.
2.3. CLASSIFICAÇÃO
Há dois tipos de habeas corpus válidos no Brasil.
Na lição de Nucci (2015, p.887):
“pode ser liberatório, quando a ordem dada tem por finalidade a cessação de determinada ilegalidade já praticada, ou preventivo, quando a ordem concedida visa a assegurar que a ilegalidade ameaçada não chegue a se consumar.”.
Assim, o habeas corpus liberatório, também chamado de repressivo, é aplicado, como ensinado pelo renomado autor acima mencionado, em casos nos quais a liberdade do indivíduo já foi cerceada, mediante abuso de poder ou ilegalidade.
Tal modalidade de habeas corpus, portanto, ataca diretamente a ordem de prisão expedida pelo juiz, ou seja, ataca sua decisão interlocutória.[2]
Por outro lado, a aplicação do habeas corpus preventivo só é cabível em situações nas quais haja uma forte pretensão de que o direito à locomoção do indivíduo está prestes a ser cerceado.
Desse modo, ele será impetrado em um momento no qual ainda não foi expedida a ordem judicial pretensamente ilegal ou abusiva, visando, como é sabido, evitar que haja a limitação do direito de locomoção. Para garantir tal finalidade, se o habeas corpus for aceito pelo juiz, deverá ser fornecido um documento chamado salvo-conduto por meio do qual o indivíduo terá o impedimento de sua prisão ou limitação de sua liberdade em face das razões pelas quais solicitou o instrumento analisado.
2.4. ÂMBITOS DE APLICAÇÃO.
Inicialmente, é importante elencar quem são, em geral, os envolvidos no processo de impetração do habeas corpus. Há o impetrante, isto é, aquele sujeito que ingressa com a ação em favor daquele que teve seu direito de locomoção afetado, o qual, por sua vez, é chamado de paciente (beneficiário do mecanismo). Há, ainda, a figura do impetrado, ou seja, a autoridade praticante da ameaça ou real privação injusta da liberdade de locomoção que, em grande parte dos casos, é realizada por um juiz.
Nesse contexto, é sabido que o remédio constitucional em análise é aplicável a vários ramos do Direito, tendo mais destaque nas esferas do processo civl e do processo penal.
No que concerne à perspectiva cível, faz-se mister explicitar a aplicação do habeas corpus em relação ao predisposto no art. 5º, LXVII da Constituição Federal de 1988. Tal artigo elenca duas hipóteses[3] em que a prisão por dívida será realizada: a do depositário infiel e do inadimplemento de obrigação alimentícia. A primeira hipótese, em virtude da incorporação do Pacto San Jose da Costa Rica com força constitucioanal, foi desconsiderada como caso de prisão. Já no que se refere à dívida de pensão alimentícia, de acordo com o posicionamento do Supremo Tribunal de Justiça (BRASIL, 2001, on line):
Cabe, na presente hipótese, habeas corpus preventivo, tendo em vista que o paciente foi citado para, na execução de alimentos, efetuar o pagamento de determinada importância, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de fazê-lo, pena de prisão [...]
Já em relação ao processo penal brasileiro, por outro lado, entende-se que, se a liberdade de locomoção do paciente não for diretamente afetada pela impetração do habeas corpus, não se dará continuidade a ele. Essa é a principal ideia da jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal, a qual é demonstrada no H.C. 84.816/PI (2005, STF, on line):
O afastamento do paciente do cargo de Prefeito Municipal não autoriza a impetração de habeas corpus, porquanto não põe em risco a sua liberdade de locomoção. É que o habeas corpus visa a proteger a liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, não podendo ser utilizado para proteção de direitos outros [...]
Assim, faz-se mister a interdependência entre o habeas corpus e a limitação ao direito de liberdade de locomoção do paciente, visto que o objetivo do instrumento em estudo é exatamente impedir que haja ou que tenha seguimento a privação injusta.
O primeiro critério a ser verificado em relação à competência é o territorial, buscando-se o lugar onde se dá a coação. Em seguida, analisa-se a qualidade da autoridade coatora, checando-se se possui foro privilegiado.[4]
Conforme disposto no art. 650 do Código de Processo Penal vigente, “a competência do juiz cessará sempre que a violência ou a coação provier de autoridade judiciária de igual ou superior jurisdição”.
Nesse sentido, as hipóteses de competência dos Tribunais Superiores e Tribunais Regionais encontram-se constitucionalmente elencadas nos arts. 102 e 108.
Assim, é preciso explanar, ainda mais, alguns aspectos referentes à legitimidade passiva e ativa. Aquela, como dito anteriormente, é aplicada não só a orgãos do Poder Público, mas também a algum particular que pratique medida abusiva ou pretensamente ilegal. Nessa perspectiva, como explica Nucci (2015, p. 898):
Na realidade, a Constituição Federal não distingue, no polo passivo, entre a autoridade e o particular, de modo que é possível impetrar habeas corpus contra qualquer pessoa que constranja a liberdade de locomoção de outrem.
Por outro lado, a legitimidade ativa é cabível não apenas ao paciente, mas também a “qualquer pessoa, física ou jurídica, nacional ou estrangeira [...] seja em seu próprio benefício, seja em favor de outrem, independente de possuir habilitação técnica para tanto.” (NUCCI, 2015, p. 895).
Nota-se, portanto, que não há a obrigatoriedade da presença de um advogado como impetrante, embora seja altamente recomendado.
Desse modo, quando um advogado impetra pedido de habeas corpus preventivo[5] em favor de um paciente que está com sua prisão preventiva decretada por roubo, p. ex., ele o faz por acreditar que aquela prisão seria ilegal, buscando evitar que o paciente seja preso por causa de medidas abusivas.
3- CONCLUSÃO
Assim, conforme pesquisas feitas para a elaboração deste trabalho, entende-se que o habeas corpus é, de modo geral, um remédio constitucional destinado a combater ou pôr fim à privação ao direito de locomoção. Tal privação deve ser oriunda de medidas abusivas ou pretensamente ilegais, que podem ser praticadas não apenas por órgãos do Poder Público, mas também por particulares.
Tal instituto é, desse modo, fundamental para que seja assegurado o direito à liberdade de locomoção, devendo este ser entendido de forma ampla, a fim de que não haja desconsideração de nenhum de seus aspectos. Assim, o habeas corpus representa, de fato, um mecanismo de suma importância para o exercício de ampla defesa, gerando, portanto, o cumprimento de garantias processuais imprescindíveis.
Notas
[1] Comentários ao Código de Processo Penal, v. 5, p. 558.
[2] É o ato praticado pelo juiz por meio do qual, no curso do processo, são resolvidas questões incidentais, como a concessão ou negação de um habeas corpus.
[3] Nessas hipóteses, a finalidade do instrumento coercitivo da prisão civil é fazer com que o devedor pague o que deve, e não sancioná-lo por não pagar, restringindo sua liberdade.
[4] Trata-se de um instrumento que designa uma forma especial e particular para julgarem-se determinadas autoridades.
[5] O habeas corpus deve ser preventivo, pois ainda não houve a privação de liberdade do paciente.