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A desconsideração da personalidade jurídica à luz do direito fundamental à propriedade

Agenda 19/10/2016 às 20:57

A proteção da propriedade, enquanto direito fundamental, em relação à desconsideração da personalidade jurídica com o objetivo de afetas os bens dos sócios.

1-INTRODUÇÃO.

1.1-Considerações Gerais

Considerando a disciplina que foi trabalhada, qual seja, “Sistemas de proteção dos direitos fundamentais e as relações privadas”, desde logo, constata-se a importância de assegurar o direito fundamental à propriedade em contraponto à desconsideração da personalidade jurídica, de modo a dar-lhe segurança em não afetar os bens de um sócio antes de esgotadas todas as possibilidades de se garantir através da pessoa jurídica.

Com a presente disciplina, pôde ser verificado que a autonomia do direito privado não é absoluta, assim como a legitimidade de algumas regras de direito privado admite a ponderação de outras normas, mormente quando se trata de direitos fundamentais.

Não obstante aos tipos societários existentes, a partir do momento em que a personalidade jurídica é desconsiderada, os bens das pessoas que compõem essa pessoa jurídica são afetados de modo a satisfazerem o crédito devido.

Como é sabido, a ilicitude de sócios caracterizada pela má fé em determinados negócios, com a finalidade de se escusar da obrigação de ter que honrar com o adimplemento de obrigações, faz com que bens sejam transferidos à outras pessoas, com o intuito de impedir com que obrigações sejam cumpridas.

Neste sentido, faz-se mister analisar que apesar da ocorrência de uma ilicitude, como por exemplo, a fraude de credores, com o intuito de não adimplir com uma determinada obrigação, e posteriomente, a realização da desconsideração, tal instituito afetaria o direito fundamental à propriedade?

Com efeito, a criação de pessoas jurídicas são realizadas através de pessoas físicas, isto é, a pessoa jurídica tem “vida” própria, bens próprios, responsabilidades e etc. Todavia, há que se destacar que com a criação de uma pessoa jurídica, os bens das pessoas físicas que a compõe ficam blindados face a responsabilização da pessoa jurídica por alguma ilicitude.

Assim, tem-se que a desconsideração da personalidade jurídica retira a proteção dos bens dos sócios que integram uma sociedade limitada por exemplo, afastando a blindagem outrora existente.

Pois bem, a gestão dolosa da personalidade jurídica pode gerar consequencias catastróficas em todo o ordenamento, como podemos verificar das possíveis utilizações escusas de uma pessoa jurídica. A fraude à lei e aos direitos creditícios podem ser o resultado de seu mau uso, mas o anteparo da fraude que encontrava-se escondida em simulações obscuras de atos jurídicos foi rompido com a evolução dos entendimentos jurisprudenciais acerca da matéria que atenua em certas circunstâncias a autonomia da pessoa jurídica, permitindo que a reparação da fraude e da lesão sejam feitos mediante a expropriação de bens de seus sócios, note-se, que isso ocorre com a desconsideração.

Ao analisar a desconsideração da personalidade jurídica, deve-se observar que assim como haverá a satisfação de uma pretensão de um lado, de outro haverá a expropriação de um bem daquele sócio que integra a pessoa jurídica.

Ademais, é válido atentar que a desconsideração é fruto da construção jurisprudencial, em especial a inglesa e a norte-americana e que se instalou dentro do nosso ordenamento jurídico brasileiro.

Hoje, percebe-se a grande incidência dos efeitos da desconsideração da personalidade jurídica, permitindo-se assim, a execução do patrimônio pessoal dos sócios por dívidas da sociedade, como se a socidade não tivesse “vida” e bens próprios.

Claro que, como será abordado mais adiante, a desconsideração não será aplicada de qualquer forma e de forma imediata em todo e qualquer caso, existem certas peculiaridades para a aplicação pelo Poder Judiciário.

Portanto, após serem apontados os requisitos para a desconsideração, sua aplicabilidade em nosso ordenamento jurídico, verificar-se-á a questão sob a óptica do direito fundamental à propriedade do sócio que teve o seu patrimônio afetado em decorrência de uma ilicitude.

2- Princípios norteadores para aplicação da teoria da desconsideração.

O principal sistematizador da teria da desconsideração da personalidade jurídica foi Rolf Serick (1953), cuja pesquisa realizada chegou a conclusão de que não se admite a desconsideração sem a presença do abuso da forma da pessoa jurídica (fraude ou abuso de direito).

Ademais, Serick em seu estudo, aponta quatro princípios que autorizam o afastamento da autonomia das pessoas jurídicas, quais sejam: 1- “que o juiz, diante de abuso da forma da pessoa jurídica, pode, para impedir a realização do ilícito, desconsiderar o princípio da separação entre sócio e pessoa jurídica”; 2- “não é possível desconsiderar a autonomia subjetiva da pessoa jurídica apenas porque o objetivo de uma norma ou a causa de um negócio não foram atendidos”; 3- “aplicam-se à pessoa jurídica as normas sobre capacidade ou valor humano, se não houver contradição entre os objetivos destas e a função daquela. Em tal hipótese, para atendimento dos pressupostos da norma, levam-se em conta as pessoas físicas que agiram pela pessoa jurídica”; 4- “se as partes de um negócio jurídico não podem ser consideradas um único sujeito apenas em razão da forma da pessoa jurídica, cabe desconsiderá-la para aplicação de norma cujo pressuposto seja diferenciação real entre aquelas partes”.[1]

Assim, verifica-se que da análise dos quatro princípios retromencionados, tem-se que a desconsideração trata de ser um instrumento de repressão a atos fraudulentos, ou seja, uma forma de penalizar o sócio que através de uma fraude ou abuso de direito, tenta se eximir de responsabilidades.

Em outras palavras, pode-se afirmar que existem empresários que de uma forma maliciosa, utilizam-se das mais variadas artimanhas com a finalidade precípua de fraudar seus credores, valendo-se da personalidade jurídica, se autobeneficiando do princípio da separação patrimonial como um verdadeiro escudo protetor contra as afetações ao seu patrimônio pessoal.

Neste sentido, o objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomiaem relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam.

2-Princípio da autonomia patrimonial

Conforme já citado, a sociedade empresária possui “vida” e bens próprios, sendo titular de direitos e obrigações, não se confundindo com os sócios que a compõe.

E em função do princípio da autonomia patrimonial, acaba protegendo temporariamente os bens dos sócios que integram a sociedade empresária, é inclusive, vista como uma ferramenta jurídica de incentivo ao empreendedorismo.

No caso das sociedades empresárias, a pretensão do Estado é consagrar regras de limitação da responsabilidade dos seus membros, estimulando o exercício de atividade econômica[2] 

Entretanto, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica criada com a finalidade de salvaguardar o princípio da autonomia patrimonial, busca evitar o seu uso indevido e deturpado, devendo ser aplicado sempre que constatado o uso abusivo da personalidade jurídica em face de seus credores.

A regra então é que em função do princípio da autonomia patrimonial, o patrimônio da sociedade empresária é quem responderá pelos atos da mesma e não o patrimônios dos sócios que a constituem, todavia, nos casos em que houverem a prática de ilícitos, especialmente o manifesto abuso da forma da personalidade jurídica (abuso ou fraude), estar-se-á autorizada a desconsideração da personalidade.

Há de se observar, ainda, que a desconsideração é aplicada nos casos em que se opera a ocultação da fraude, pois se a prática ilícita for identificada como ato do sócio ou administrador, não é caso para aplicação da desconsideração.

Insta salientar que o fundamento para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica deve ir além de um dano patrimonial, deve ocorrer a prática de um ato ilícito, isto é, a intenção de fraudar ou se eximir de uma responsabilidade que era da sociedade empresária, mas que com a desconsideração passa a ser dos sócios que a integram.

3- A aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro.

Conforme já mencionado, a desconsideração é fruto de uma construção jurisprudencial, sendo muito defendida por Rubens Requião na década de 1960, já que havia ausência de previsão legislativa.

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Sua aplicabilidade no Brasil ganhou regulamentação com a edição do Código de Defesa do Consumidor, no art. 28 da Lei nº 8.078/90, tendo a seguinte redação:

“o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

Em seguida, o mesmo teor do dispositivo legal acima foi ganhando proporção e passou a ser utilizado na lei de defesa da concorrência; lei dos crimes ambientais, código civil e na lei anticorrupção.

Ainda com relação a aplicação da desconsideração, tem-se a possibilidade de ocorrer a inversa, ou seja, é um tipo muito comum no direito de família. Geralmente ocorre, quando o sócio na iminência de desconstituir sua relação conjugal busca ocultar seus bens na sociedade empresária, causando uma confusão patrimonial entre seus bens pessoais com os da sociedade empresária.

A desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio.[3]

Em todos os casos acima elencados, esclarece-se que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica não acarreta o fim da pessoa jurídica, muito menos é dissolvida ou liquidada, o que ocorre é apenas uma anulação da personificação da sociedade, tornando ineficaz alguns atos da sociedade.

Porém, frisa-se que uma vez cumprida a obrigação de originou a desconsideração, a sociedade segue sua “vida” normalmente.

Assim, a desconsideração da personalidade jurídica tem os seus efeitos adistritos ao caso concreto em que foi requerida, continuando a sociedade – ainda que “desconsiderada” naquele caso – a existir normalmente e a ter os efeitos da sua personalização respeitados em todas as demais relações jurídicas em que figurar.[4]

Por conseguinte, a desconsideração foi ganhando magnitude já que passou a ser uma forma mais célere para dar cumprimento a determinadas obrigações, a exemplo, sua aplicação é comum na Justiça do Trabalho, mormente na fase de execução, afetando com bastante rapidez o patrimônio dos sócios para garantir os créditos trabalhistas que possuem natureza alimentar. Sobre tal ocorrência, o E. Tribunal Superior do Trabalho vem aplicando a desconsideração nos seguintes termos:

EXECUÇÃO. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DO EMPREGADOR. RESPONSABILIDADE DE EX-SÓCIO. 1. Justifica-se a incidência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica do devedor quando caracterizado o descumprimento das obrigações decorrentes do contrato de emprego e a falta de bens suficientes da empresa executada para satisfação das obrigações trabalhistas. Correta a constrição dos bens do recorrente, tendo em vista sua condição de ex-sócio do executado durante a relação de emprego do autor, bem como a inexistência de patrimônio da empresa executada capaz de garantir a execução. 2. Agravo de instrumento não provido .

(TST - AIRR: 1406402020055020027 140640-20.2005.5.02.0027, Relator: Lelio Bentes Corrêa, Data de Julgamento: 28/08/2013,  1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 06/09/2013).

AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO - EMBARGOS À EXECUÇÃO - LEGITIMIDADE AD CAUSAM - RESPONSABILIDADE - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - BENEFÍCIO DE ORDEM - MATÉRIAS INFRACONSTITUCIONAIS - SÚMULA Nº 266 DO TST As questões da legitimidade ad causam de diretor do Reclamado, para figurar no polo passivo na fase de execução , e da extensão de sua responsabilidade pelos débitos trabalhistas revestem-se de nítido caráter infraconstitucional, de rediscussão incabível por meio de Recurso de Revista, nos termos do artigo 896, § 2º, da CLT e da Súmula nº 266 do TST. Agravo de Instrumento a que se nega provimento.

(TST - AIRR: 3797008820075090661, Relator: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 14/10/2015,  8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 16/10/2015)

Neste viés, verifica-se que no âmbito da justiça do trabalho, a desconsideração ocorre na fase de execução, tendo o devedor um contraditório diferido ou postergado, vez que primeiramente sofre a constrição patrimonial para depois se defender, sendo um ato judicial muito criticado no cotidiano.

Na justiça do trabalho, o meio de defesa daquele sócio que sofreu a constrição judicial de seus bens se dá pelos embargos à execução, todavia, como já dito, não ocorre na fase de conhecimento, mas sim na fase de execução, com uma cristalina redução de possbilidade de defesa caso fosse logo na fase de cognição, até porque não sofreria de imediato a referida constrição.

Ademais, a desconsideração vem sendo adotada, inclusive, no âmbito administrativo, tendo como um dos principais fundamentos o princípio constitucional da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos quando ocorrer abuso de forma e fraude à lei, claro que, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular. Neste sentido, segue o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS. - A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída. - A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular. - Recurso a que se nega provimento.

(STJ - RMS: 15166 BA 2002/0094265-7, Relator: Ministro CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 07/08/2003,  T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 08.09.2003 p. 262<BR>RDR vol. 27 p. 378<BR>RSTJ vol. 172 p. 247).

O Tribunal de Justiça do Estado do Pará, vem aplicando a desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 do Código Civil/2002, nos moldes já traçados anteriormente, pressupondo o abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou por confusão patrimonial, nos termos abaixo:

AGRAVO REGIMENTAL RECEBIDO COMO AGRAVO INTERNO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. PREVISÃO DO ART. 557, § 1º DO CPC. DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO QUE PRETENDIA O DEFERIMENTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS LEGAIS. INDEFERIMENTO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. DECISÃO UNANIME. 1. O recorrente interpôs agravo de instrumento, visando a reforma da decisão interlocutória que indeferiu o pedido de efeito suspensivo. 2. Em Decisão Monocrática, foi negado provimento ao agravo de instrumento, por não haver sido demonstrado o preenchimento dos pressupostos legais exigidos para o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica. 3. O recorrente pretende a reforma da decisão monocrática, apresentando os mesmos fundamentos já apreciados, quando do julgamento monocrático do agravo de instrumento, notadamente quando à hipótese prevista no art. 34, parágrafo único da Lei 12.529/2011. 4. A desconsideração da personalidade jurídica prevista no art. 50 do CC é medida excepcional que pressupõe abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou por confusão patrimonial, situações não demonstradas nos autos. 5. O Egrégio Superior Tribunal de Justiça definiu recentemente (ERESP 1306553/SC) que a dissolução, ainda que irregular, da sociedade empresária, não configura fundamento suficiente a admitir a superação da sua autonomia patrimonial. 6. Decisão mantida. Recurso não provido. Decisão Unânime. (2015.04516886-60, 153.989, Rel. JOSE ROBERTO PINHEIRO MAIA BEZERRA JUNIOR – JUIZ CONVOCADO, Órgão Julgador 5ª CAMARA CIVEL ISOLADA, Julgado em 27/11/2015).

Uma inovação muito importante sobre a desconsideração é aquela aplicada pelo Tribunal de Contas da União, buscando primar como já mencionado os princípios da moralidade e da indisponibilidade do interesse público, nos seguintes termos:

SUMÁRIO: DENÚNCIA. CONTRATAÇÃO DE EMPRESA QUE INCORPOROU OUTRA, DECLARADA INIDÔNEA PARA CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. OITIVAS DOS ENVOLVIDOS. SOCIEDADES COM MESMO OBJETO E SÓCIOS. TENTATIVA DE BURLA À SANÇÃO. EXTENSÃO DA DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE À EMPRESA SUCESSORA. CIÊNCIA DO FATO AOS ÓRGÃOS ADMINISTRATIVOS CENTRAIS DOS PODERES EXECUTIVO E JUDICIÁRIO PARA A ADOÇÃO DAS MEDIDAS PERTINENTES.

Como foi assegurado o contraditório e a ampla defesa no presente processo à empresa e a seus respectivos sócio administradores, propõe-se que os efeitos da suspensão de licitar e contratar com a Administração Pública Federal imposta à Alder sejam estendidos à R. E. Engenharia, a partir da aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica e com base nos princípios da moralidade e da indisponibilidade do interesse público.

VOTO DO RELATOR 6: Em meu modo de ver, três características fundamentais permitem configurar a ocorrência de abuso da personalidade jurídica neste caso:

a)A completa identidade dos sócios proprietários;

b)A atuação no mesmo ramo de atividades;

c)A transferência integral do acervo técnico e humano.

E no mesmo raciocínio, segue o STF:

EMENTA: PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO E DESCONSIDERAÇÃO EXPANSIVA DA PERSONALIDADE JURÍDICA . “DISREGARD DOCTRINE” E RESERVA DE JURISDIÇÃO: EXAME DA POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, MEDIANTE ATO PRÓPRIO, AGINDO “PRO DOMO SUA”, DESCONSIDERAR A PERSONALIDADE CIVIL DA EMPRESA, EM ORDEM A COIBIR SITUAÇÕES CONFIGURADORAS DE ABUSO DE DIREITO OU DE FRAUDE. A COMPETÊNCIA INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E A DOUTRINA DOS PODERES IMPLÍCITOS. INDISPENSABILIDADE, OU NÃO, DE LEI QUE VIABILIZE A INCIDÊNCIA DA TÉCNICA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM SEDE ADMINISTRATIVA. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: SUPERAÇÃO DE PARADIGMA TEÓRICO FUNDADO NA DOUTRINA TRADICIONAL? O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA: VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, CONDICIONANTE DA LEGITIMIDADE E DA VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS. O ADVENTO DA LEI Nº 12.846/2013 (ART. 5º, IV, “ e ”, E ART. 14), AINDA EM PERÍODO DE “VACATIO LEGIS”. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E O POSTULADO DA INTRANSCENDÊNCIA DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS E DAS MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DA PRETENSÃO CAUTELAR E CONFIGURAÇÃO DO “PERICULUM IN MORA”. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.

(Medida Cautelar em Mandado de Segurança 32.494-DF – Relator: Celso de Mello. 11/11/2013).

Portanto, constata-se que a desconsideração da personalidade jurídica se tornou bastante usual no ordenamento jurídico brasileiro, tendo como finalidade satisfazer determinados créditos sempre que houver intenção de fraude à credores, abuso da forma e confusão patrimonial.

Entretanto, a doutrina entende que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é aplicada no Brasil de forma incorreta, na realidade, um simples desentendimento de crédito na sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta, seria suficiente para a imputação da responsabilidade dos sócios.[5]

No decorrer do texto, verificou-se que a desconsideração é aplicada em casos que haja o a abuso do direito, fraude a credores, confusão patrimonial, sendo citada pala doutrina hipóteses para a sua aplicação, mas ao analisar o que ocorre, por exemplo, na justiça do trabalho, chega-se a conclusão de que foge do entendimento original da teoria.

E o pior, a desconsideração foi intentada para ser aplicada na fase de cognição, com a garantia constitucional do exercício do contraditório e da  ampla defesa, à luz do princípio constitucional do devido processo legal insculpido na Constituição Federal, todavia, isso não ocorre quando se trata de desconsideração na justiça do trabalho, como nos casos de execuções fiscais, momento em que os sócios só terão um curto prazo para embargar a execução, ressaltando que o bem já sofreu a constrição judicial.

- A desconsideração da personalidade jurídica à luz do direito fundamental da propriedade.

Antes de se falar em desconsideração da personalidade jurídica que tem como objetivo afastar o princípio da autonomia patrimonial, ultrapassando os limites da sociedade empresária para alcançar os bens dos sócios que a compõe, faz-se necessário atentar para o direito fundamental da propriedade.

Sobre a propriedade, tem-se que é um direito real, possibilitando ao dono o direito de usar, gozar e dispor da coisa, conforme estatui o Código Civil de 2002. Mas a propriedade vai muito mais além disso, ela está sob o manto sagrado da Constituição Federal, posto que é considerada um direito fundamental do indivíduo, ganhando esta liberdade individual uma proteção constitucional, por isso está inserida no art. 5º, Caput, da CF/88[6], na parte denominada como bloco de constitucionalidade.

A teoria geral dos direitos fundamentais considera os direitos fundamentais como direitos pétreos[7] porque são intangíveis em virtude de sua imprescindibilidade.

Os direitos fundamentais constituem relações de atribuição entre bens e pessoas geradas a partir da verificação de situações pressupostas em normas jurídicas positivas, por isso são positivados numa Constituição.

Ora, se os direitos fundamentais são uma espécie de relação entre bens e pessoas, a propriedade enquanto direito fundamental aqui estudado, tem essa correlação.

Ao pegar o direito fundamental de propriedade isoladamente, pode-se entendê-lo como um direito do ser humano que é reconhecido        e positivado na esfera do direito constitucional positivo de um Estado.  

Com efeito, a propriedade apesar de ser fruto de uma liberdade individual, verifica-se que ganha proteção do Estado, por isso é considerado um direito fundamental. Não obstante a sua fundamentalidade, acaba não sendo um direito absoluto.

Nenhum direito fundamental é absoluto, não são absolutos na medida em que podem ser relativizados, não podendo inclusive ser utilizado para a prática de ilícitos.[8]

Na mesma linha de entendimento, os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. (...) Até o elementar direito à vidatem limitação explícitano inciso XLVII, a, do art. 5º, em que se contempla a pena de morte em caso de guerra formalmente declarada (BRANCO apud FILHO, p.7).

Para concluir o raciocínio, a jurisprudência do STF tem se direcionando no seguinte sentido:

“OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO.

Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se

revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.” (STF, Pleno, RMS 23.452/RJ, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 12.05.2000, p. 20).

Esses direitos fundamentais possuem limites, considerando que em certos momentos ocorreram choques entres eles e, esses choques são tratados pela doutrina como colisão e coalisão.

Enfim, a questão aqui é evidenciar que nenhum direito fundamental é absoluto. A propósito, nas palavras de André Ramos Tavares, “não existe nenhum direito humano consagrado pelas Constituições que se possa considerar absoluto, no sentido de sempre valer como máxima a ser aplicada nos casos concretos, independentemente da consideração de outras circunstâncias ou valores constitucionais. Nesse sentido, é correto afirmar que os direitos fundamentais não são absolutos. Existe uma ampla gama de hipóteses que acabam por restringir o alcance absoluto dos direitos fundamentais”.[9]

Assim, apesar da imprescindibilidade de se resguardar um direito fundamental, verifica-se que a doutrina entende não ter um caráter absoluto, podendo ser sopesado, ou melhor, relativizado a depender do caso concreto.

Num breve apanhado, os direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o poder estatal em face da liberdade individual.[10]

Diante disso, evidente está a grande relevância dos direitos fundamentais no ordenamento constitucional brasileiro, face à sua autoaplicabilidade, os direitos fundamentais são tutelados pelo Estado, pois há a necessidade de se impor limites aos poderes deste mesmo Estado.

Feito este apanhado sobre os direitos fundamentais, estando dentro do bloco de constitucionalidade o direito fundamental à propriedade, verifica-se que a partir do momento em que ocorre a desconsideração da personalidade jurídica, com a consequente afetação dos bens dos sócios que a integram, o direito fundamental à propriedade do sócio é atacada.

E é neste sentido que surge um ponto importante para se refletir, já que os bens patrimoniais dos sócios são atingidos, tem-se que o direito de propridade é atingido.

Mas, ora, a propriedade não é um direito constitucional fundamental do indivíduo? Observou-se no decorrer deste trabalho, os direitos fundamentais não são absolutos, podem ser relativisados quando colocados diante de outros direitos fundamentais.

Uma coisa aqui é certa, o acervo patrimonial do sócio é literalmente atingido com a desconsideração da personalidade jurídica, podendo ser alvo de discussões judiciais sob o argumento da propriedade ser um direito fundamental ou que a desconsideração por ser uma norma infraconstitucional não poderia violar um direito constitucionalmente consagrado. Enfim, muitas são as discussões que podem ser travadas ao longo de uma demanda judicial.

Neste sentido, no cotidiano forense, pode ser vislumbrado      que a questão vem sendo constantemente alvo de debates judiciais, por exemplo, nas execuções fiscais. De um lado, a busca inócua pelo patrimônio pessoal do sócio com a pretensão de se regular a o adimplemento do crédito tributário e, de outro, o direito fundamental à proteçãoao patrimônio e a ameaça de sua violação, em flagrante desrespeito às normas constitucionais.

Veja-se, então, que a desconsideração abala e viola o direito constitucional fundamental à propriedade, posto que aquele Estado que tutela em sua Magna Carta esse direito fundamental é o mesmo que afeta os bens patrimoniais do indivíduo de modo a dar satisfação aos créditos exequentes dos sócios que tentam fraudar seus credores.

Ora, o patrimônio do sócio perde a sua relevância enquanto direito constitucional de propriedade, já que o objetivo deixa de ser a salvaguarda da propriedade para que se satisfaça o adimplemento de uma determinada obrigação.

Entretanto, não obstante às colocações aqui feitas, deve-se colocar em análise o princípio constitucional do devido processo legal e os seus desdobramentos com o contraditório e a ampla defesa, enquanto direitos fundamentais também, eis que estão no mesmo bloco de constitucionalidade do direito à propriedade.

Pois se for atentado, o direito ao devido processo legal com o exercicio do contraditório e ampla defesa são direitos constitucionalmente assegurados pela Constituição Federal, assim como o direito à propriedade.

Neste ponto, observa-se que muitas vezes a desconsideração da personalidade jurídica ocorre na fase de execução como é o caso da justiça especializada do trabalho, dando ao devedor a mínima possibilidade de defesa, eis que ocorre  primeiramente o ato da constrição patrimonial, isto é, a propriedade saí da esfera de domínio do devedor, para posteriormente poder fazer uso do direito constitucional do contraditório, por isso chamado de contraditório diferido ou postergado.

Ou seja, o Poder Judiciário não concede ao sócio a possibilidade de se discutir a desconsideração numa fase de conhecimento. Tal conduta, para muitos doutrinadores fere o direito constitucional fundamental do devido processo legal e seus consectários legais.

Portanto, a partir do momento em que reduz-se a possibilidade de defesa acerca a desconsideração da personalidade jurídica, tem-se que além do direito fundamental de propriedade ser maifestamente violado, os princípios constitucionalmente consagrados também sofrem violação.

Assim, pode-se chegar a conclusão de que a desconsideração apesar de ser aplicada de modo diverso da qual foi criada, acarreta algumas violações de ordem constitucional, trazendo inclusive um manifesto prejuízo e até imensurável ao romper o princípio da autonomia patrimonial das sociedades empresárias.   

Referências Bibliográficas:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Volume 2 – 17ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2013

DIMOULIS, Dimitri. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5º ed. Ver., atual e ampl. São Paulo: Atlas, 2014

FILHO, João Trindade Cavalcante. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Artigo trabalhado no mestrado em Direitos Fundamentais da Universidade da Amazônia. Publicado em: http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portaltvjustica/portaltvjusticanoticia/anexo/joao_trindadade__teoria_geral_dos_direitos_fundamentais.pdf. Acessado em: 20/06/2016, às 17:02 horas.

NETO, João dos Passos Martins. Direitos Fundamentais: conceitos, função e tipos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 4ª ed. Ver. Atual. E ampl. – Rio de Janeiro:  Forense: São Paulo: Método, 2014


[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 2 – 17ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 59 e 60.

[2] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. 4ª ed. Ver. Atual. E ampl. – Rio de Janeiro:  Forense: São Paulo: Método, 2014, p. 409.

[3] COELHO, Fábio Ulhoa, op. cit., p. 68.

[4] RAMOS, André Luiz Santa Cruz, op. cit., p. 418.

[5] COELHO, Fábio Ulhoa, op. cit., p. 69.

[6] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) (Grifei).

[7] NETO, João dos Passos Martins. Direitos Fundamentais: conceitos, função e tipos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 87.

[8] FILHO, João Trindade Cavalcante. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Artigo trabalhado no mestrado em Direitos Fundamentais da Universidade da Amazônia. Publicado em: http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portaltvjustica/portaltvjusticanoticia/anexo/joao_trindadade__teoria_geral_dos_direitos_fundamentais.pdf. Acessado em: 20/06/2016, às 17:02 horas.

[9] TAVARES apud FILHO, p.21.

[10] DIMOULIS, Dimitri. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5º ed. Ver., atual e ampl. São Paulo: Atlas, 2014, p. 41.

Sobre o autor
Michel Santos Batista

Pós-Graduando em Direito material e processual do Trabalho pela Universidade da Amazônia – UNAMA. Mestrando em Direitos Fundamentais pela Universidade da Amazônia - UNAMA. Advogado e Coordenador Jurídico. Membro da Comissão dos Jovens Advogados da OAB/PA.

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Trabalho apresentado à disciplina Sistemas de proteção dos direitos fundamentais e as relações privadas. Orientador da Linha: Prof. Dr. Fabrício Vasconcelos de Oliveira, do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais da Universidade da Amazônia.

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