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Portaria inaugural do inquérito policial: teoria e prática

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Agenda 27/10/2016 às 08:33

A portaria inaugural é um ato jurídico-administrativo de conteúdo decisório efetivado pelo delegado de polícia e que, portanto, deve ser devidamente fundamentado, justificando-se, assim, a necessidade de instauração do inquérito policial.

INTRODUÇÃO

Infelizmente nossa doutrina processual penal, de um modo geral, não se aprofunda de maneira adequada no estudo do inquérito policial. Temas como indiciamento, representação do delegado de polícia, registro de ocorrência e seu respectivo arquivamento etc., passam praticamente despercebidos pelos estudiosos do assunto.

Justamente por isso somos defensores de uma Teoria Geral do Inquérito Policial, uma vez que é este o principal instrumento de investigação criminal previsto em nosso ordenamento jurídico, razão pela qual sua materialização deve ser estudada de maneira mais profunda, observando-se sempre os direitos e garantias fundamentais dos investigados, preservando-se, todavia, as características inerentes ao procedimento, como a sigilosidade, por exemplo.

O objetivo desse trabalho é preencher um vácuo doutrinário existente em relação à Portaria inaugural do inquérito policial. Quando deve ser instaurado o inquérito policial? Qual a forma adequada de instauração? Qual a função da Portaria e o que deve ser consignado no seu conteúdo? É o que veremos na sequência.


FUNÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL

Para que possamos responder as questões acima formuladas e compreender a finalidade da Portaria inaugural, é imprescindível uma breve análise sobre a função do inquérito policial dentro da persecução penal.

O ordenamento jurídico é criado e recriado constantemente pelo legislador, sempre com a observância das premissas estabelecidas na Constituição da República e com a finalidade de organizar, da melhor maneira possível, a vida em sociedade. Isso significa que a violação de uma norma jurídica dá ensejo a repercussões diversas, seja na esfera civil, administrativa ou no âmbito criminal.

No que se refere especificamente à seara penal, destaca-se que é nesta área onde se encontra a face mais incisiva do Direito, aquela que repercute de maneira mais agressiva na vida do indivíduo, tendo a aptidão de limitar um dos seus direitos fundamentais mais importantes, vale dizer, o direito à liberdade de locomoção.

Constatada a ocorrência de um crime, nasce o jus puniendi estatal. Trata-se de um poder-dever que não pode ser exercido de maneira aleatória, às margens do ordenamento jurídico, justamente porque estão em jogo os bens jurídicos mais relevantes. Assim, para impor uma pena ao autor de um crime o Estado deve, necessariamente, percorrer um caminho. É nesse cenário que surge a chamada persecução penal, composta de duas fases distintas, porém, complementares: investigação criminal e processo penal.

Aliás, o Direito Processual Penal tem a finalidade de regular exatamente essas atividades estatais, vivendo, todavia, um drama ou um conflito quase que intransponível. Nas lições de Denílson Feitoza:

O drama e a tragédia da persecução criminal transcorrem cotidianamente num cenário formado por duas forças diretivas que colidem tensamente, acarretando a contrariedade fundamental da persecução criminal: quanto mais intensamente se procura demonstrar a existência do fato delituoso e sua autoria (princípio instrumental punitivo), mais se distancia da garantia dos direitos fundamentais, e quanto mais intensamente se garantem os direitos fundamentais (princípio instrumental garantista), mais difícil se torna a coleta e a produção de provas que poderão demonstrar a existência do fato delituoso e sua autoria.[1]

É através do inquérito policial que o Estado consegue reunir fontes de prova e elementos de informações que justifiquem o início do processo. Fernando da Costa Tourinho Filho define este procedimento como “um conjunto de diligências realizadas pela Polícia Civil ou Judiciária (como a denomina o CPP), visando a elucidar infrações penais e sua autoria”.[2]

Adílson José Vieira Pinto, por sua vez, assevera que o inquérito policial

pode ser definido como sendo o procedimento administrativo de polícia judiciária que, por intermédio de investigação, visa a confirmação da existência ou não de uma determinada infração penal, suas circunstâncias e o estabelecimento da correspondente autoria.[3]

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Já o professor Aury Lopes Jr. vai um pouco além ao definir como investigações preliminares

o conjunto de atividades desenvolvidas concatenadamente por órgãos do Estado, a partir de uma notícia crime, com caráter prévio e de natureza preparatória com relação ao processo penal, e que pretende averiguar a autoria e as circunstâncias de um fato aparentemente delituoso, com o fim de justificar o processo ou o não-processo.[4]

Desse modo, pode-se afirmar que o inquérito policial não deve ser compreendido apenas como um procedimento preparatório da ação penal, mas, sobretudo, como um obstáculo a ser superado antes que se possa dar início à fase processual.

É muito importante que se tenha em mente que a função do inquérito policial não é apenas constatar a materialidade do crime e os indícios de sua autoria, mas fornecer elementos para a defesa do sujeito passivo do procedimento, ou, sob um outro prisma, demonstrar que nem sequer houve o crime, ocasião em que a investigação também terá cumprido a sua missão.

Em consonância com esse entendimento, destacamos as lições de Eduardo Cabette ao afirmar que

o inquérito policial não deve ser conceituado somente sob o ponto de vista que destaca sua função de fornecer elementos ao titular da ação penal (Ministério Público). Na realidade, o inquérito policial serve não somente para embasar a futura ação penal, como também, em certos casos, para demonstrar exatamente o inverso, ou seja, a desnecessidade ou não cabimento de uma eventual ação penal. O inquérito é um instrumento imparcial, não vinculado à futura acusação, podendo em seu bojo trazer elementos de interesse da defesa do suposto autor da infração. Reduzi-lo a fornecedor de elementos ao titular da ação penal é manietar sua verdadeira função, muito mais ampla e relevante à consecução da Justiça.”[5]

Frente ao exposto, pode-se dizer que o inquérito policial funciona como uma espécie de filtro, evitando que acusações infundadas desemboquem em um processo. Como é cediço, a fase processual constitui uma pena em si mesmo, causando ao réu inocente um grande descrédito social e uma profunda humilhação, ainda que seja absolvido ao seu final. É exatamente essa a razão de existência de um procedimento preliminar de investigação, que, nesse contexto, representa uma garantia para a sociedade em geral.


FORMAS DE INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL

A instauração do procedimento investigativo de polícia judiciária pode variar de acordo com a espécie de ação penal prevista para crime objeto da apuração. Nos crimes de ação pena pública condicionada, por exemplo, o inquérito policial não pode nem sequer ser instaurado sem a devida representação da vítima (ou seu representante legal) ou requisição do Ministro da Justiça[6]. O mesmo ocorre com os crimes de ação penal privada, onde o Estado-Investigador só pode agir mediante requerimento da vítima (ou seu representante legal).

Por outro lado, em se tratando de crimes de ação penal pública incondicionada, a doutrina, de um modo geral, ensina que o inquérito policial poderá ser instaurado das seguintes formas[7]: a-) de ofício; b-) mediante requisição do Ministério Público ou do Poder Judiciário; c-) requerimento do ofendido ou do seu representante legal; d-) notícia oferecida por qualquer pessoa do povo; e-) auto de prisão em flagrante.

Data maxima venia, entendemos que o inquérito policial só pode ser instaurado por duas formas: de ofício, por meio de Portaria; e através de Auto de Prisão em Flagrante. Isto, pois, trata-se de procedimento investigativo de polícia judiciária, presidido pelo delegado de polícia, nos termos da Lei 12.830/13. Parece-nos que as demais formas de instauração supracitadas configuram, na verdade, espécies de notitia criminis de cognição mediata ou provocada.

Sobre a requisição formalizada pelo Poder Judiciário, entendemos inconstitucional por violar o princípio da imparcialidade do juiz e o próprio sistema acusatório. Assim, diante da possível ocorrência de um crime o magistrado deverá encaminhar o expediente para o Ministério Público, titular da ação penal pública.

Em se tratando de requisição do Parquet, entendemos que não se trata de ordem, haja vista a inexistência de hierarquia entre o delegado de polícia e o promotor de justiça. Por óbvio, diante da possível existência do crime, a autoridade policial deve instaurar o inquérito policial em observância ao princípio da legalidade, sem que isso constitua qualquer tipo de subserviência ao Ministério Público. 

Não é outro o escólio de Edilson Mougenot ao discorrer sobre a requisição de instauração de inquérito policial:

Para uma parte da doutrina, a instauração é obrigatória porque requisição constitui ordem. O argumento, entretanto, não prospera, diante da inexistência de subordinação hierárquica do delegado de polícia em relação aos autores da requisição. Compreensão mais precisa implica identificar como fundamento da obrigatoriedade da requisição o dever funcional da autoridade policial de instaurar investigação tão logo tenha conhecimento de alguma prática potencialmente criminosa. Dessa forma, a requisição funcionaria como notitia criminis indireta[8].

Destarte, é imprescindível que a requisição venha amparada por elementos que demonstrem a existência de justa causa para a instauração do apuratório penal. Caso contrário, o delegado de polícia deverá determinar a realização de diligências preliminares visando reunir indícios mínimos sobre a autoria e materialidade delituosa ou simplesmente devolver o expediente à autoridade requisitante explicitando as razões que impossibilitaram o seu cumprimento. Pelas mesmas razões, se do conteúdo da requisição for verificado que os fatos narrados não constituem ilícito penal, o procedimento também não deverá ser instaurado.

Nos termos do magistério de Guilherme Nucci,

Requisições dirigidas à autoridade policial, exigindo a instauração de inquérito contra determinada pessoa, ainda que aponte o crime, em tese, necessitam conter dados suficientes que possibilitem ao delegado tomar providências e ter um rumo a seguir. Não é cabível um ofício genérico, requisitando a instauração de inquérito contra Fulano, apenas apontando a prática de um delito em tese[9].

De maneira ilustrativa, citamos os casos em que o crime objeto de requisição é atingido por alguma causa extintiva da punibilidade, como a prescrição, por exemplo. Parece-nos que a instauração do procedimento nessas circunstâncias constitui claro constrangimento ilegal. Questão mais tormentosa envolve a situação em que o delegado de polícia entender que o fato objeto da requisição Ministerial seja atípico. Nesse contexto, pode a autoridade policial deixar de instaurar o inquérito?

Para responder essa indagação é preciso lembrar que diversas constituições estaduais asseguram a independência funcional do delegado de polícia nos atos de polícia judiciária[10]. Assim, em respeito a essa prerrogativa funcional, entendemos que a autoridade policial pode deixar de instaurar o procedimento investigativo caso entenda tratar-se de fato atípico. Conforme visto acima, a simples instauração do inquérito policial traz inúmeras consequências ao investigado, razão pela qual o procedimento só tem seu início se houver, ao menos, indícios em relação à existência do crime.

É preciso observar que a Portaria inaugural é um ato jurídico-administrativo de atribuição exclusiva do delegado de polícia. Trata-se de ato jurídico porque a presidência do inquérito policial fica a cargo de uma autoridade com formação jurídica[11], bacharel em direito, sendo tal requisito indispensável justamente porque diversas decisões exaradas pelo delegado de polícia durante a fase de investigação envolvem a aplicação das normas legais a casos concretos, exigindo-se juízos interpretativos que repercutem diretamente em direitos fundamentais dos investigados. Sem embargo, este ato também é administrativo, uma vez que emana de uma autoridade administrativa, no interior de um procedimento administrativo.

Em outras palavras, a Portaria é um ato jurídico-administrativo de conteúdo decisório e que afeta direitos fundamentais, razão pela qual, o delegado de polícia deve expor os substratos fáticos e jurídicos que justificam a instauração do inquérito. Aliás, a falta de fundamentação neste ato pode se combatida através de habeas corpus impetrado pelo sujeito passivo da investigação.

Portanto, cabe ao delegado de polícia constar na Portaria inaugural do inquérito os fatos aparentemente delituosos e, na sequência, realizar um juízo preliminar acerca da tipicidade, indicando, se possível, o provável autor do crime e os elementos indiciários sobre a autoria.

No Estado de São Paulo este ato é normatizado pela Portaria DGP 18/98, que nos seus artigos 1º e 2º estabelecem o seguinte:

Art.1º: A instauração de inquérito policial, quando legalmente possível, dependerá, sempre, de prévia e pertinente decisão da autoridade policial que, com essa finalidade, expedirá, em ato fundamentado, portaria na qual fará constar descrição objetiva do fato considerado ilícito, com a preliminar indicação de autoria ou da momentânea impossibilidade de apontá-la, e ainda a classificação provisória do tipo penal alusivo aos fatos, consignando, por último, as providências preliminarmente necessárias para a eficiente apuração do caso.

Art.2º: A autoridade policial não instaurará inquérito quando os fatos levados à sua consideração não figurarem, manifestamente, qualquer ilícito penal.

Diante do contexto apresentado, reiteramos que se o delegado de polícia entender que os fatos constantes na requisição Ministerial não caracterizam qualquer crime, ele pode deixar de instaurar o inquérito policial, expondo, para tanto, suas motivações jurídicas. Após, deve encaminhar o expediente ao juiz competente para que ele resolva o caso.

Advirta-se, todavia, que se o magistrado determinar a instauração do inquérito policial, em respeito a independência funcional do delegado de polícia, o caso deve ser encaminhado ao superior hierárquico da autoridade que se manifestou preliminarmente sobre os fatos. Esse, por sua vez, deverá providenciar a redistribuição do expediente a outro delegado de polícia, para que instaure o inquérito e presida a investigação como uma espécie de longa manus, numa analogia com o artigo 28, do Código de Processo Penal.

Em tais situações, ainda que a autoridade policial que recebeu o expediente também entenda que não há justa causa para o início do inquérito, o procedimento deve ser instaurado, fazendo-se constar na Portaria inaugural os argumentos expostos na requisição Ministerial, que servirão de fundamento jurídico para justificar a deflagração da investigação. Nessa hipótese, eventual habeas corpus para trancar o inquérito policial deve ser ajuizado perante o Tribunal, figurando o representante do Ministério Público ou o magistrado como autoridade coatora[12].

Outra questão que merece abordagem nesse estudo se refere às requisições Ministeriais que trazem no seu conteúdo a indicação de diligências a serem realizadas durante a investigação. Uma vez mais, lembramos que o inquérito policial é presidido pelo delegado de polícia de maneira discricionária, observando-se, por óbvio, as previsões legais e regulamentares.

Desse modo, entendemos que o delegado de polícia deve analisar essas requisições de diligências como uma espécie de sugestão[13]. Isto, pois, do contrário, a investigação acabaria sendo conduzida pelo Ministério Público, o que fere o princípio da igualdade e o próprio sistema acusatório. Demais disso, não podemos olvidar que a autoridade policial tem a investigação criminal como sua função principal, sendo preparado nas Academias ou Escolas de Polícia para o exercício desse mister que, na verdade, constitui uma ciência.

Por estar mais próximo da investigação, o delegado de polícia é a autoridade que melhor compreende as suas necessidades, razão pela qual a lei lhe confere a prerrogativa da sua condução. Portanto, eventuais diligências requisitadas pelo Ministério Público não precisam ser concretizadas de maneira imediata, podendo a autoridade policial postergá-las para um momento mais oportuno de acordo com o seu entendimento. Destaque-se, porém, que tais requisições deverão ser cumpridas antes do encerramento das investigações.

E nos casos em que a vítima requer a instauração do inquérito policial? Aqui, da mesma forma, o requerimento da vítima servirá como notícia crime de cognição mediata. Destarte, havendo elementos indiciários sobre autoria e materialidade, o delegado de polícia deve instaurar o inquérito policial em respeito ao princípio da legalidade.

Sobre o autor
Francisco Sannini Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini Neto. Portaria inaugural do inquérito policial: teoria e prática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4866, 27 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53187. Acesso em: 19 dez. 2024.

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