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O tratado constitucional para a Europa e o futuro da União Européia

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Agenda 27/06/2004 às 00:00

4.Aspectos essenciais do Texto Constitucional

O projeto de tratado pelo qual se institui uma Constituição para a Europa está dividido em 3 partes, sub-divididos em títulos e artigos, cada uma composta de conteúdos bem diversificados e relativos à arquitetura a ser assumida pela UE.

A Parte I está distribuído em cinco títulos referentes à definição e aos objetivos da União, aos direitos fundamentais e do cidadão europeu, à competência da UE, ao papel e composição das instituições comunitárias e ao exercício das competências tanto por parte da própria UE como por parte dos Estados-membros. Nesta Parte I, especificamente no Título I, podemos destacar os seguintes aspectos essenciais:

- A descrição dos objetivos da União é enfatizada através a confirmação de que a UE sempre esteve vinculada à promoção da paz, seus valores e o bem-estar dos povos. Caracteriza-se assim, a finalidade primeira do processo de integração europeu que determinou até mesmo o próprio nascimento desta união, e que foi justamente evitar a ameaça de novos conflitos, como as dois grandes Guerras Mundiais.

- A relação entre a UE e os estados-membros deverá desenvolver-se em um plano de cooperação leal, ou seja, a União respeitará a identidade nacional dos estados-membros.

-A adoção de personalidade jurídica, conforme o arte. 6º, é o ponto-chave do Título I, já que até então a UE não era considerada como sujeito de direitos e deveres na esfera internacional.

O Título II trata dos direitos fundamentais reconhecidos pela União, fixados tanto pelo convênios Europeu para a proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais quanto pelas Constituições dos Estados-membros. A Carta dos Direitos Fundamentais estabelecida em Niza não tem ainda eficácia jurídica, já que foi apenas proclamada pelos países, sem que tenha havido, até o presente momento, uma transposição jurídica aos ordenamentos nacionais. Porém, o projeto constitucional dedica toda a Parte II à descrição dos postulados de direitos fundamentais que deverão ser garantidos pela UE. Ainda neste Título, podemos encontrar elementos relativos à cidadania européia relacionados principalmente ao direito de livre circulação pelo "espaço europeu"; ao sufrágio ativo e passivo nas eleições do Parlamento Europeu; à proteção diplomática e consular em qualquer território de terceiro país nas mesmas condições que os nacionais de este mesmo Estado, etc.

No Título III podemos vislumbrar aspectos referentes às competências a serem desenvolvidas e exercidas pela UE. Está dividido em 9 artigos que dispõem justamente sobre os limites máximos e mínimos que deverão ser observados pelas instituições comunitárias. Logo no arte. 9º declara-se que a delimitação das competências está intrinsecamente ligada aos princípios de atribuição, e que o exercício destas competências se fará mediante rigorosa observância dos princípios de subsidiariedade e proporcionalidade [12]. Vale ressaltar que ambos os princípios foram objeto de maior detalhamento em um Protocolo anexo ao projeto constitucional. Com relação à divisão de competências entre a UE, o Título determina quais serão as competências exclusivas, as competências compartidas e quais serão os âmbitos onde a União poderá atuar como ponto de apoio ou de complemento às atividades dos estados nacionais. Serão de competência exclusiva da UE: todas as medidas necessárias para o bom funcionamento do mercado interior; a política monetária dos Estados-membros que hajam adotado o euro; a política comercial comum; a união aduaneira, etc. A título exemplificativo serão competências compartidas entre a UE e os países: a agricultura e a pesca; a energia; o meio ambiente; a proteção dos consumidores; o transporte e as redes transeuropéias, etc. Já as ações de apoio devem ser entendidas como aquelas matérias onde não há uma normativa comunitária e onde os países têm competência exclusiva mas que podem exigir atividades de suporte por parte da UE como a política educacional; a cultura; a proteção e melhora da saúde humana, etc.

Uma novidades importante e que está disposta neste Título é a adoção da chamada cláusula de flexibilidade que permite à UE ampliar o âmbito de competência inicialmente dado, quando seja necessário implementar os objetivos fixados pela Constituição. Tal se dará através de proposta da Comissão (e prévia aprovação do Parlamento) votada por unanimidade pelo Conselho de Ministros. Contudo, as disposições adotadas em virtude desta cláusula não poderão resultar em uma harmonização forçada das disposições legislativas e regulamentárias dos Estados nacionais, nos caso em que a própria Constituição excluir dita harmonização.

Os Títulos IV e V referem-se respectivamente às instituições comunitárias e aos instrumentos jurídicos necessários para o perfeito exercício das competências comunitárias. Com relação às instituições não há grandes novidades, salvo as seguintes modificaçoes:

-A adoçao da ponderação de votos por maioria qualificada como exposto no apartado anterior.

- A formação de uma Comissão Européia com apenas 15 comissários, num sistema de representatividade por rotaçao e onde cada país deverá ser tratado em condições de igualdade, levando-se em consideraçao as dimensoes geográficas e demográficas do Estados-membros (arte 25.3).

- A criaçao da figura de Ministro de Assuntos Exteriores da UE, que será nomeado pelo Conselho Europeu, prévia aprovação do Presidente da Comissão. Este dispositivo parece ser o primeiro passo dado em direçao à elaboração de uma política exterior comum.

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Já com relação ao direito comunitário, o projeto constitucional prevê a reformulação do direito derivado da UE. De fato, no Tratado da União Européia (arts. 249 e seguintes) o nível derivado está dividido em regulamentos, diretivas e decisões (todos com caráter obrigatório), além das recomendações e pareceres, todos eles atos jurídicos que serão adotados pelo Conselho, Comissão e Parlamento para o perfeito cumprimento dos objetivos comunitários. Na proposta de Constituição o Título V assim dispõe em seu art. 32 "no exercício das competências que lhe são atribuídas pela Constituição, a União utilizará os seguintes instrumentos jurídicos, conforme o disposto na Parte III: a lei europea, a lei marco européia, o regulamento europeu, a decisão européia, as recomendações e os pareceres." A lei européia é equivalente ao regulamento fixado pelo TUE e a lei marco está próxima à diretiva. Já o regulamento é um ato administrativo singular, de carácter geral, mas que não tem um conteúdo legislativo estrito senso. A mudança é mais de forma do que de conteúdo, já que em verdade os atos jurídicos continuam com o mesmo alcance e aplicabilidade que os atos dos outros Tratados fundacionais.

Além disso, o art. 37.1 deste mesmo Título determina que as instituições decidirão qual o tipo de ato que deverá ser adotado em cada caso, salvo nas matérias disciplinadas pela própria Constituição. Outra novidade foi a introdução de disposições particulares específicas aos chamados segundo e terceiros pilares da UE, quais sejam, os temas relacionados com a política exterior e de segurança comum e com o espaço de liberdade, segurança e justiça. O que se pretende é alcançar uma aproximação das posições nacionais mediante o estabelecimento de uma política comum nas citadas matérias. A criação de um exército comunitário não foi tratada de maneira explícita, mas o art. 40.3 possibilita que a União possa contar com a capacidade civil e militar dos países-membros para efeitos de uma política comum de segurança e defesa. Por fim, o art. 42 trata da clásula de solidariedade, que como o próprio nome diz, trata da cooperação comunitária entre todos os Estados, quando qualquer um deles for objeto de ataque terrorista ou sofrer alguma catástrofe natural.

A cooperação reforçada também encontra guarida no texto constitucional, ao prever-se a possibilidade de que um grupo de países possam avançar em temas pertinentes ao desiderato comum. A possibilidade de que seja adotada uma Europa de duas velocidades deverá ser decicida pelo Conselho Europeu, por votação unânime. [13]

Os princípios democráticos que nortearão a UE encontram-se no Título VI e que são: o princípio da igualdade democrática; o princípio da democracia representativa, o princípio da democracia participativa, a proteção dos dados pessoais, a transparência nas atividades das instituições, etc. O elemento mais importante deste Título, em nosso entendimento, é a instauração de um procedimento de iniciativa popular (art. 46.4). neste contexto, desde que haja a manifestação de ao menos um milhão de habitantes de um número significativo de Estados-membros, se poderá solicitar à Comissão que proponha um ato jurídico comunitário sobre dada matéria. Ainda que carente de maior eficácia jurídica, já que o preceito não estabelece o procedimento exata pelo qual se dará a iniciativa, é sem dúvida um grande passo para o fortalecimento da participação dos cidadãos na arquitetura comunitária.

Os assuntos relativos ao orçamento e às questões financeiras da UE estão no Título VII e não apresentam maiores novidades quando comparados com os demais Tratados. Porém, a luta contra a fraude está devidamente destacada no art. 52.7 que fixa como atividade principal da União, em conjunto com os países, o combate à fraude e às atividades ilegais que afetem os interesses financeiros desta mesma União.

O Título IX trata dos requisitos necessários para que um país possa pertencer à UE bem como os casos em que se dará a suspensão do direito de pertencer à mesma. A decisão de suspensão poderá partir tanto do Conselho de Ministros, mediante a maioria de quatro quintas partes dos seus membros, quanto do Conselho Europeu, caso em que o sistema de votação exigirá ao menos um terço do total de Estados-membros. No art. 58 se determina o procedimento para proposta e votação de suspensão. Caso oposto, é o art. 59 que prevê a possibilidade de um país retirar-se do "clube europeu", depois que aquele proceder a uma prévia notificação à UE.

Em termos gerais, a Parte I contém os dispositivos mais relevantes do projeto constitucional já que fixa os aspectos principais do direito comunitário.

A Parte II é a transcrição da Carta de Direitos Fundamentais proclamada em Niza, e como comentamos anteriormente carece de maior eficácia jurídica por não haver sido incorporada ao Tratado de Niza. Está dividida em 7 Títulos, todos eles referentes aos direitos fundamentais, tanto de primeiro quanto de segundo grau, e que deverão ser respeitados tanto pela União quanto pelos Estados-membros.

Finalmente, a Parte III trata de las políticas comunitárias e do funcionamento da UE. Por absoluta falta de espaço, e mesmo porque este não é o objetivo do presente trabalho, não nos detenderemos demasiadamente nesta Parte, já que refere-se aos elementos de caráter instrumental para que o projeto comunitário possa seguir adiante. Devemos ressaltar, entretanto, que tal Parte estabelece justamente os aspectos práticos de condução da política monetária, da política financeira, econômica, comercial, os temas relativos ao mercado comum, entre outros. Na última Parte podemos encontrar todos os Protocolos que estão anexos ao texto constitucional, como por exemplo, o Protocolo sobre o Grupo do Euro, o Protocolo sobre a ampliação, etc.


5. CONCLUSÃO

O projeto de Tratado que pretende instituir uma Constituição para a Europa representa um marco decisivo na história do processo de integração europeu. A evolução dos ideais propostos por Schuman em 1950 alcançaram um patamar coroado de êxitos, sem desconsiderar os obstáculos surgidos durante este período. O projeto constitucional é o passo definitivo que irá configurar o futuro da União Européia, mediante a confirmação absoluta da supremacia do direito comunitário sobre o direito interno dos países-membros. A implantação de um sistema constitucional europeu comunitário irá propiciar à UE a reflexão necessária para que decida qual o tipo de formação associativa que deverá prevalecer para os próximos anos.

As dificuldades encontradas para a criação de uma Carta Constitucional para Europa não são distintas daquelas encontradas para a implementação das políticas comuns o mesmo para a incorporação do euro. Destarte, as negociações acerca da adoção de uma moeda única persistem até mesmo nos dias atuais. Mas, o projeto de formar uma União monetária, econômica e social sempre prevaleceu sobre todos os percalços e obstáculos existentes. E assim deverá ser feito com o Texto Constitucional.

Enfim, independentemente dos problemas surgidos durante a elaboração e implantação da Constituição para Europa, os países-membros da UE deverão ser capazes de avançar no projeto de formação de uma integração consolidada e baseada em laços fortes e indissolúveis.


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Sobre a autora
Jamile B. Mata Diz

Professora do Departamento de Direito da Universidade Federal de Viçosa, Doutoranda em Direito Público/Direito Comunitário da Universidade de Alcalá de Henares-Espanha, Bolsista CAPES, Membro do IELEPI- Instituto Eurolatinoamericano de Estudios para la Integración, Autora de inúmeras artigos e do livro Processo de integração e ampliação da UE – Um modelo para o Mercosul, Ed.Juruá, Curitiba/PR, 2003.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIZ, Jamile B. Mata. O tratado constitucional para a Europa e o futuro da União Européia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 355, 27 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5375. Acesso em: 16 mai. 2024.

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