Introdução
A região do Cariri no Estado do Ceará, assim como o restante do nordeste brasileiro, é uma região que preza por sua cultura. O histórico de sofrimento é marca do povo sertanejo, que desde o início de sua história vem buscando todos os meios necessários a sua sobrevivência.
Intimamente ligada com a cultura caririense, a vaquejada é verdadeira expressão do imaginário popular, sendo uma dentre várias expressões culturais existentes nessa região.
A vaquejada além de expressão cultural do povo caririense, é um meio de vida, fonte de renda e subsistência de diversas famílias. Apesar de hoje ser considerada uma prática esportiva por lei estadual, a origem da vaquejada foi uma necessidade em virtude das dificuldades vividas pelos sertanejos.
Diante da necessidade de encontrar terras para criação de gado para abastecer grandes centros urbanos como Salvador e Olinda, desde a época colonial, foi necessário explorar o interior nordestino. A importância da figura do vaqueiro foi aumentando na medida em que a quantidade de gado crescia. Como esse gado era criado livremente, o vaqueiro era o responsável por reunir a boiada.
Na caatinga árida, de sol escaldante e vegetação espinhosa, desenvolveu-se toda a vestimenta do vaqueiro como é conhecida hoje. A vestimenta de couro reforçado, não é meramente ilustrativa, e sim criada diante da árdua realidade vivenciada pelo vaqueiro.
Conforme caracterizou Celestino Alves:
“(...) a vaquejada surge como esporte arriscado, selvagem, considerado por muitos como esporte bárbaro, ou melhor, como esporte de cabra-macho (…) Não é um esporte de técnicos. As maiores regras da vaquejada são: sangue frio, coragem, rapidez e concentração. O mais velho ensina o mais moço. Começou a vaquejada com as apartações, na terra do gado, nas fazendas. Quem nasce vaqueiro permanece vaqueiro, vem do sangue, vem do berço” (cf. Vaqueiros e vaquejadas. Natal: UFRN, 1986).
O que se iniciou apenas como uma forma de perseguição do gado evoluiu no decorrer do tempo e, aos poucos, foram sendo criados espécies de festejos pelos fazendeiros com o intuito de juntar vaqueiros para realizarem verdadeiras excursões pela caatinga para tentar capturar o gado perdido.
O touro largado ou o garrote vadio em geral refoge à revista. Afunda na caatinga. Segue- o vaqueiro. Cose-lhe no rastro. Vai com ele até às últimas bibocas. Não o larga; até que surja o ensejo para um ato decisivo: alcançar repentinamente o fugitivo, de arranco; cair logo para o lado da sela, suspenso num estribo e uma das mãos presas às crinas do cavalo; agarrar com a outra a cauda do boi em disparada e com um repelão fortíssimo, de banda, derribá-lo pesadamente em terra. (CUNHA,1998, p.123).
A partir da década de 40 a vaquejada tornou-se mais pública e divulgada:
[...]em meados de 1940, alguns vaqueiros nordestinos começaram a tornar públicas suas habilidades, na Corrida do Mourão, que começou a ser uma prática popular na região. A partir daí, coronéis e senhores de engenho passaram a organizar torneios de vaquejadas, onde os participantes eram os vaqueiros. Estes recebiam apenas um agrado dos coronéis, pois ainda não havia premiações. Os anos foram passando e alguns fazendeiros nordestinos passaram a promover um tipo de vaquejada onde os vaqueiros tinham de pagar uma taxa para participar da disputa. O montante era revertido para a premiação dos vencedores, bem como para a organização do evento. Assim a vaquejada se popularizou. Atualmente, existem clubes e associações de vaqueiros em todos os estados do Nordeste, calendários de eventos e patrocinadores famosos. Todos relacionados a essa competição. Os torneios foram sendo aprimorados. As montarias, formadas por cavalos nativos da região, foram sendo substituídas por animais de melhor linhagem. Da mesma forma, o chão batido deu lugar a uma superfície de areia, com limites definidos e regulamento. Agora cada dupla tinha direito a correr três bois. No final da vaquejada, era feita a contagem de pontos, a dupla que somasse mais pontos era campeã, recebendo um valor em dinheiro. Esse tipo de vaquejada é denominado até hoje de “bolão”. OLIVEIRA (2016)
A região do Cariri além de possuir um grande centro religioso como a cidade de Juazeiro do Norte, onde anualmente milhares de pessoas comparecem às famosas romarias, atestando sua fé à figura religiosa do Padre Cícero, é também, região de destaque no Ceará por seus grandes eventos e festejos onde ocorrem competições de vaquejada.
Municípios como Missão Velha e Brejo Santo, possuem competições de vaquejada grandiosas, que movimentam a economia desses municípios, gerando emprego e renda para centenas de cidadãos.
Hoje, a vaquejada existe como forma de entretenimento, inclusive sendo reconhecida como esporte pela lei estadual nº 15.229/2013. Entretanto, nos últimos meses de 2016 iniciou-se uma árdua discussão a nível nacional, a respeito da constitucionalidade da vaquejada.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Ceará) nº 4.983, por 6 votos a 5, considerou que a atividade impõe sofrimento aos animais e, portanto, fere princípios constitucionais de preservação do meio ambiente. O julgamento da matéria teve início em agosto de 2015, quando o relator, ao votar pela procedência da ação, afirmou que o dever de proteção ao meio ambiente (artigo 225 da Constituição Federal) sobrepõe-se aos valores culturais da atividade desportiva.
Atualmente o cenário é de preocupação e sofrimento de diversas famílias que sobrevivem diretamente ou indiretamente da vaquejada, e estão apreensivos diante de uma eventual proibição deste esporte e tradição cultural nordestina.
O governo do Estado do Ceará manifestou-se a respeito de tal imbróglio ressaltando a importância histórica da vaquejada, defendendo a constitucionalidade da norma atacada, porquanto, ao regulamentar o esporte, teria protegido os bens constitucionais ditos violados, impondo a prática adequada do evento e estabelecendo sanções às condutas de maus-tratos aos bovinos.
Além disso, afirmou que a lei estadual obriga a adoção de medidas protetivas da integridade física e da saúde dos animais, e que a prática da vaquejada é direito cultural amparado pelo artigo 215 da Carta da República, além de servir de incentivo ao turismo e fonte de empregos sazonais, de alta relevância para a economia local.
Percebe-se que a decisão do STF não buscou apurar todo o cuidado e preparo adotado pelos profissionais da vaquejada. Além disso, ao existir o conflito entre o direito dos animais e o direito à manifestação cultural, o estado deve buscar meios diversos para regulamentar e fiscalizar toda a questão dos maus tratos, e não adotar uma medida tão drástica, proibindo a prática da vaquejada e afetando diretamente toda a economia de uma região e população.
Diante do exposto, percebe-se a relevância do tema tratado pelo presente artigo, posto que existe um expresso conflito de direitos e que a interpretação para solucionar esse conflito não pode ignorar uma manifestação cultural nordestina e verdadeira expressão do imaginário popular.
Objetivos
O objetivo principal desse artigo é, portanto, demonstrar a importância da vaquejada na região do Cariri e no restante do nordeste brasileiro, através de sua caracterização como manifestação e tradição cultural.
Além disso, faz-se necessário a abordagem do impacto da prática da vaquejada na economia da região do cariri, junto ao impacto que uma eventual proibição dessa prática traria a diversas famílias que garantem o sustento de forma direta ou indireta através da vaquejada.
Metodologia
Para efetivar tal propósito, a metodologia utilizada foi bastante variada. Assim, utilizou-se uma abordagem qualitativa, onde através de pesquisas teóricas e de campo, foram apuradas diversas informações a respeito da prática da vaquejada e de sua importância na cultura caririense. A pesquisa de campo foi realizada nos municípios de Missão Velha e Juazeiro do Norte, sendo entrevistados vaqueiros, profissionais da área, além de consultar a opinião pública.
Foram obtidas informações através de entrevistas com vaqueiros, que apresentaram sua opinião a respeito da história da vaquejada na região do cariri, além de esclarecer questões acerca da necessidade da manutenção da prática da vaquejada nessa região. Junto a isso, foram coletados depoimentos com opiniões pessoais dos vaqueiros sobre o atual conflito jurídico existente no Brasil envolvendo a prática da vaquejada, bem como opiniões sobre o impacto negativo econômico que poderia ocorrer diante da proibição da prática da vaquejada.
Resultados
É inegável que a prática da vaquejada é uma manifestação cultural caririense. As pesquisas realizadas para elaboração do presente artigo atestam sem dúvida a força da vaquejada nessa região.
Os vaqueiros e profissionais da área afirmaram a importância desse esporte culturalmente e economicamente. Conforme as palavras do vaqueiro e entrevistado Sr. Charles:
Eu acredito que a vaquejada é importante pois vem de geração em geração, o filho aprende com o pai, é como se estivesse no sangue, e também todos gostam de cavalo, quando se fala em vaquejada é o mesmo que falar em cavalo. Todos gostam, até as crianças de 5 anos como o meu filho; é algo que está no sangue, está nas veias, a criança cresce vendo o pai cuidar de cavalo, vendo a natureza e não tem como não gostar. (informação verbal)
Percebeu-se ainda através das diversas entrevistas realizadas, a extrema preocupação sofrida pelos entrevistados com relação à possibilidade de ser proibida a prática da vaquejada:
Hoje essa questão da vaquejada de querer interditar é errado, pois é uma cultura e tradição do nordeste. A vaquejada não é importante só pra mim, mas para nação, pois todos se divertem em uma vaquejada, eu me criei em vaquejada, criei meus filhos e não quero que acabe. NONATO. (informação verbal)
Com relação aos cuidados e tratamentos dos animais, foi unânime a opinião dos entrevistados, no sentido de que todos os animais são bem tratados, demonstrando insatisfação com a decisão do STF e entendendo que esta decisão foi tomada sem buscar pesquisar a fundo como são os procedimentos de segurança dos animais adotados para a prática da vaquejada. Conforme afirma a entrevistada e esposa de um vaqueiro, Sra Doriana, a respeito dos cuidados com os animais:
A vaquejada proporciona muita renda, os tratadores e o vaqueiro que vão montar se preocupam com os arreios, os tratadores se preocupam com a ração, com o capim, só em ele ser o tratador gera uma renda; na vaquejada muitas pessoas lucram, os tratadores que também vão e também ganham, também tem a renda que é gerada pelas barracas. Em relação ao tratamento dos animais, os cavalos por dia comem 3 rações balanceadas, fora o capim verde e seco. Tem que limpar as baias por conta de micoses, o casco tem que ser cortado com o material próprio, pra não cair caso o casco esteja grande. Tem dentista, pois os dentes de trás estavam crescendo e teve que fazer uma raspagem, os exames de morno e anemia que tem que fazer a cada 60 dias, o animal é muito bem cuidado, quando adoece é dado caixas de soro, vários remédios para dor. (Informação verbal).
É importante destacar os argumentos apresentados pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin:
O que se entende por processo civilizatório, com a devida vênia, não me parece ser o apagar de manifestações que sejam insculpidas como tradição cultural. Ao contrário, numa sociedade aberta e plural, como a sociedade brasileira, a noção de cultura é uma noção construída, não é um a priori, (...) e não há, em nosso modo de ver, razão para se proibir o evento e a competição, que reproduzem e avaliam tecnicamente a atividade de captura própria de trabalho de vaqueiros e peões, desenvolvida na zona rural deste grande país. Ao contrário, tal atividade constitui-se modo de criar, fazer e viver da população sertaneja.
O ministro do STF Dias Toffoli compactuando da mesma opinião do ministro Edson Fachin, entendeu que:
[...]não há prova cabal de que os animais, de modo sistemático, sejam vítimas de abusos, de crueldade e de maus tratos. Anote-se, além disso, que a própria lei que ora se ataca faz a defesa dos animais contra essas ações; ou seja, a própria lei exige o respeito aos animais e não institucionaliza a tortura, o que impede, data venia, que se admita a colisão da lei ora atacada com o art. 32 da Lei nº 9.605/98, definidora dos crimes ambientais.
Dias Toffoli ainda sobre a vaquejada afirmou:
A “Vaquejada”, expressão cultural oriunda da denominada “Festa da Apartação” é, como demonstrou o Estado do Ceará, um dos grandes acontecimentos do calendário dos vaqueiros do nordeste, o qual, além de manter sua tradição, tem trazido desenvolvimento social e econômico. Portanto, vejo com clareza solar que a atividade – hoje esportiva e festiva - pertence à cultura do povo nordestino deste país, é secular e há de ser preservada dentro de parâmetros e regras aceitáveis para o atual momento cultural de nossa vivência.
Foram ainda entrevistados dois profissionais do direito. O professor André Dantas manifestou-se sobre o conflito envolvendo a vaquejada da seguinte forma:
[...] a vaquejada como nós sabemos principalmente na região do nordeste e no Brasil é o esporte que gera obviamente toda uma questão cultural, que exige participação maciça da população, assim como também exige uma questão econômica.
É um esporte que produz renda para muitas cidades, existem municípios que vivem exclusivamente disso, esse é o primeiro ponto. O segundo ponto é que foi feita uma tentativa legitima do poder legislativo de regulamentar o esporte e isso acabou sendo declarada inconstitucional pelo STF , então o STF por ser órgão judiciário, ele é ator inerte, ele não deveria se intervir em manifestações legitimas dos congressistas que são os representantes legítimos do povo. O terceiro ponto é que para o bem ou para o mal é um esporte que gera tanto questão cultural (que tem séculos) e como questão econômica, a questão patrimonial que existem pessoas que vive direto do mercado então nesse ponto eu acho que a decisão do STF é no mínimo infeliz porque ela é na verdade retira a legitimidade de uma de decisão que foi feita pelos representantes do povo, então bastasse regulamentar estabelecer formas de evitar maus tratos , evitar qualquer tipo de dano ambiental aos animais que participem da vaquejada e a atividade poderia ser exercida regulamente , é por isso que eu sou contra a decisão do STF. (informação verbal)
Sobre a mesma questão declarou o professor Alex Gonçalves:
[...]existe uma discussão muito grande em torno da legitimidade agora da vaquejada, especialmente uma decisão do STF agora nesse ano já, há dois meses atrás e que concederam por inconstitucional a lei que regulamentava a vaquejada aqui no estado do Ceará. Dentro do aspecto econômico nós podemos compreender que a vaquejada além de ser considerada por alguns como esporte ela também é considerada por muitos uma manifestação cultural e não deixa de ser , é sim manifestação cultural. Quanto há ser esporte há divergências se é ou não mas boa parte se entende também que é esporte e quer seja esporte ou quer ser simplesmente manifestação cultural importa dizer que a vaquejada é um fenômeno muito importante na região do nordeste e em outras partes do Brasil. Não se tem vaquejada somente no nordeste é importante lembrar que a vaquejada quer seja de forma direta ou indireta gera muitos empregos , gera renda e é as vezes a principal festividade nas menores cidades que nós temos aqui em nosso país. Agora a discussão que se faz hoje é a respeito da sua legalidade ou não, há legitimidade para isso ou não há, juridicamente o que é que nós podemos falar, há uma lei chamada Lei de Crimes Ambientais de nº 905/98 cuja lei determina em seu artigo 32 que “causar maus tratos aos animais é considerado crime’’ que o entendimento do STF foi exatamente dentro dessa linha , de que há crime em relação a prática da vaquejada. Então vê, não é pratica da vaquejada em si que é crime é o mau trato ao animal que é considerado crime, em relação a esse mau trato sempre que há você pode buscar na jurisprudência do STF, sempre que há conflitos de princípios há um sopesamento de princípios em que é levado em consideração primeiro a preservação ambiental , o principio do meio ambiente ele é levado sempre em consideração em detrimento de outros princípios quer seja culturais, artísticos , não importa, prevalece sempre a questão ambiental. Para mim, não foi nenhuma surpresa que o STF tenha decidido nesse sentido , minha opinião difícil falar sobre isso que sou um ambientalista nato acredito sim que a vaquejada causa maus tratos aos animais e acredito também que deve haver uma regulamentação pra vaquejada como ocorre nos rodeios , por exemplo, há uma lei de Rodeios de 2002 e 2003 salvo me engano em que regulamenta a atividade do rodeio, eu acredito que a atividade da vaquejada deveria ser regulamentada utilizando-se através de critérios mais técnicos em que não se pudesse trazer maus tratos aos animais para que a partir de então ela gozasse de uma legitimidade jurídica e se permitisse também a sua prática de geração de empregos e renda. (informação verbal)
Conclusões
A vaquejada deve ser declarada constitucional, e cabe ao Estado fiscalizar tais eventos, para atestar que não está havendo maus tratos aos animais ou outra irregularidade qualquer, pois se houver, que o Estado aplique a devida multa e penalidade aos responsáveis, pois o que está em cheque é uma tradição cultural de toda uma região e encontra-se em jogo o emprego de milhares de famílias
O STF deve levar em consideração o aspecto cultural que a atividade representa, e que, sem dúvida, desenvolveu-se, ao longo dos anos como cultura e verdadeira expressão do imaginário popular do povo sertanejo, manifestando-se em músicas, poesias, cordéis e na própria atividade/prática em si.
Referências bibliográficas
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