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O aborto de uma tragédia

Agenda 20/07/2004 às 00:00

O Código Penal admite dois tipos de aborto praticado por médico: a) se não há outro meio de salvar a vida da gestante; b) quando a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido do consentimento da gestante ou, sendo incapaz, de seu representante legal (art. 128). O primeiro é chamado necessário; o segundo, sentimental.

O aborto necessário é a interrupção artificial da gravidez para afastar perigo certo e inevitável à vida da gestante. Ele pode ser terapêutico (curativo) ou profilático (preventivo).

Durante a gestação podem surgir complicações mórbidas em face de doença da mulher ou de enfermidade intercorrente, pondo em risco a sua vida. Em tal situação, o médico é quem deve decidir sobre a continuidade ou não da gravidez. A ele incumbe averiguar se a incompatibilidade entre a moléstia e a gestação pode acarretar a morte. Em caso afirmativo, é lícita a intervenção com o sacrifício do feto. Essa é a opinião de cientistas como Nélson Hungria.

A outra espécie de aborto legalmente autorizado é o da mulher que engravida em conseqüência de estupro. Este é um grave crime de violência sexual, punido com prisão de 6 a 10 anos. Sobre o aborto sentimental, Hungria pondera: "Nada justifica que se obrigue a mulher estuprada a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará perpetuamente o horrível episódio da violência sofrida" (Comentários ao Código Penal, RJ, ed. Forense, 1955, vol. V, p. 304).

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Um anteprojeto de lei, elaborado em 1983 por uma comissão de juristas nomeada pelo ministro da Justiça para a reforma do Código Penal, indicou mais um fundamento para a interrupção da gravidez. A proposta, após debates públicos e pareceres de especialistas da saúde, declarava não constituir crime "o aborto praticado por médico se há fundada probabilidade, atestada por dois médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais". Em tal caso, a intervenção deveria ser precedida de consentimento da gestante, ou quando incapaz, do representante legal e, se casada, do cônjuge (art. 128 e parág. único).

Quinze anos mais tarde outro disegno di legge, também redigido por estudiosos do assunto, manteve aquela orientação. Esse projeto foi igualmente arquivado. Como se percebe, a lei está sempre em mora com os fatos sociais.

Com o acento indelével de uma jurisprudência humanitária surge a decisão do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, autorizando a interrupção de gravidez num caso de anencefalia do feto. Trata-se de malformação congênita, caracterizada pela falta total ou parcial do encéfalo, isto é, do conjunto dos órgãos do sistema nervoso central contidos na cavidade craniana. A anomalia, que não tem cura, é incompatível com a vida extra-uterina.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), atendendo à súplica de gestantes que decidem realizar a intervenção terapêutica de fetos anencefálicos, bateu às portas do mais importante tribunal brasileiro. E foi atendida pelo intimorato, culto e sensível magistrado, que ponderou: "Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar".

Há resistências à decisão que ainda depende de exame pelo plenário do STF. Mas, desde logo, o poder e a lição da Justiça se afirmaram para interromper uma tragédia pessoal.

Não pode haver preceito legal, princípio ético ou mandamento religioso que obrigue uma desditosa mulher a acalentar no ventre e na alma o fruto de uma dolorosa concepção definida pelo dicionário como "monstruosidade em que não há abóbada craniana e os hemisférios cerebrais ou não existem, ou se apresentam como pequenas formações aderidas à base do crânio".

Afinal, do parto deve surgir a vida e não a morte.

Sobre o autor
René Ariel Dotti

advogado e professor universitário no Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOTTI, René Ariel. O aborto de uma tragédia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 378, 20 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5452. Acesso em: 27 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho originalmente publicado no jornal "Gazeta do Povo", de Curitiba, em 08/07/2004.

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