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O princípio da primazia da norma mais favorável à pessoa humana no direito brasileiro:

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Agenda 24/01/2017 às 16:00

Busca-se compreender e explicar o princípio da primazia da norma mais favorável à pessoa humana e analisar as teses discutidas nos principais precedentes do STF sobre o tema.

RESUMO: Os objetivos principais deste trabalho são: a) compreender e explicar o princípio da primazia da norma mais favorável à pessoa humana; b) analisar as teses discutidas nos principais precedentes do STF sobre o tema (Recurso Extraordinário nº 466.343, no qual se fixou a ilicitude da prisão civil do depositário infiel, e outros); c) investigar a adoção do princípio enunciado no ponto “a” pelos julgados referidos no item “b”. Realizadas os estudos e as análises, concluiu-se, em síntese, com base principalmente no julgamento do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 466.343, que, mesmo sem perceber ou reconhecer expressamente, o próprio STF, a despeito de normalmente enfocar mais na questão hierárquica das normas internacionais sobre direitos humanos, reconhece e aplica o “princípio da primazia da norma mais favorável à pessoa humana”. É essa a única explicação que torna compatível o art. 7º, item “7”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) com o art. 5º, LXVII, da Constituição Federal. É esse o fundamento que justifica a ilicitude da prisão civil do depositário infiel. Portanto, após testar a hipótese formulada e atingir todos os objetivos pretendidos, pode-se concluir que sim, o Supremo Tribunal Federal acolhe o princípio da primazia da norma mais favorável à pessoa humana, apesar de tal tese não restar clara na fundamentação dos julgados do STF.

Palavras-chave: Direito Internacional Público. Direito Constitucional. Direitos Humanos. Norma Mais Favorável à Pessoa Humana. Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência.


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo parte do seguinte problema: o Supremo Tribunal Federal acolhe a tese da primazia da norma mais favorável à pessoa humana?

Diante do questionamento levantado, formula-se a seguinte hipótese: sim, apesar de tal tese não restar clara na fundamentação dos julgados do STF.

Nessa trilha, podemos especificar que o objetivo geral será analisar os principais e mais recentes precedentes do Supremo Tribunal Federal que apreciaram a questão da hierarquia ou do critério de prevalência da norma de direito humano.

Partindo do objetivo geral, os objetivos específicos da pesquisa serão os seguintes:

a) Compreender e explicar o princípio da primazia da norma mais favorável à pessoa humana;

b) Analisar as teses discutidas nos principais precedentes do STF sobre o tema (Recurso Extraordinário nº 466.343, no qual se fixou a ilicitude da prisão civil do depositário infiel, e outros);

c) Investigar a adoção do princípio enunciado no ponto “a” pelos julgados referidos no item “b”.

Ramos (2014, p. 24-25) define e apresenta as características dos chamados “direitos humanos”:

Os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna.

Não há um rol predeterminado desse conjunto mínimo de direitos essenciais a uma vida digna. As necessidades humanas variam e, de acordo com o contexto histórico de uma época, novas demandas sociais são traduzidas juridicamente e inseridas na lista dos direitos humanos.

(…)

Os direitos humanos representam valores essenciais, que são explicitamente ou implicitamente retratados nas Constituições ou nos tratados internacionais. A fundamentalidade dos direitos humanos pode ser formal, por meio da inscrição desses direitos no rol de direitos protegidos nas Constituições e tratados, ou pode ser material, sendo considerado parte integrante dos direitos humanos aquele que – mesmo não expresso – é indispensável para a promoção da dignidade humana.

Mazzuoli (2015, p. 896-897) traça relevante distinção doutrinária entre termos aparentemente similares:

a)Direitos do homem - é expressão de cunho mais naturalista (rectius: jusnaturalista) do que jurídico-positivo. Conota a série de direitos naturais (ou, ainda não positivados) aptos à proteção global do homem e válidos em todos os tempos. São direitos que, em tese, ainda não se encontram nos textos constitucionais ou nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. Contudo, nos dias atuais, salvo raros exemplos, é muito difícil existir uma gama significativa de direitos conhecíveis que ainda não constem de algum documento escrito, seja interno ou de índole internacional. De qualquer forma, a expressão direitos do homem mantém-se ainda reservada àqueles direitos que se sabe ter, mas não por que se tem, cuja existência se justifica apenas no plano do Direito Natural.

b) Direitos fundamentais - é expressão mais afeta à proteção constitucional dos direitos dos cidadãos. Liga-se, assim, aos aspectos ou matizes constitucionais (internos) de proteção, no sentido de já se encontrarem positivados nas Constituições contemporâneas. São direitos garantidos e limitados no tempo e no espaço, objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. Tais direitos devem constar de todos os textos constitucionais, sob pena de o instrumento chamado Constituição perder totalmente o sentido de sua existência, tal como já asseverava o conhecido art. 16 da Declaração (francesa) dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: "A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição".

c) Direitos humanos - são, por sua vez, direitos inscritos (positivados) em tratados ou decorrentes de costumes internacionais. Trata-se daqueles direitos que já ascenderam ao patamar do Direito Internacional Público. Dizer que os "direitos fundamentais" são mais facilmente visualizáveis que os "direitos humanos", pelo fato de estarem positivados no ordenamento jurídico interno (Constituição) de determinado Estado, é afirmação falsa. Basta compulsar os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos (tanto do sistema global, como dos sistemas regionais) para se visualizar nitidamente quantos e quais são os direitos protegidos. Deve-se destacar aqui a importante atuação do Conselho de Direitos Humanos (antiga Comissão de Direitos Humanos) das Nações Unidas, no que tange à redação e às negociações de vários dos mais importantes tratados de direitos humanos (do sistema global) concluídos até os dias de hoje.

Diante da fundamentalidade da proteção ao ser humano, um dos grandes desafios globais é dar eficácia concreta e máxima proteção jurídica aos indivíduos, ora por meio de políticas públicas, ora por meio da tutela jurisdicional, ora por meio da edição de leis, tratados e outras normas jurídicas.

Assim, a apreciação em torno do melhor critério para sanar eventuais aparentes antinomias entre as normas de direitos humanos é questão que merece aprofundamento e investigação.

Este trabalho tem natureza qualitativa, descritiva e explicativa. A pesquisa seguirá os métodos dedutivo, indutivo e sistêmico.

A pesquisa será, ainda:

a) Bibliográfica: buscando compreender o problema e encontrar soluções a partir da análise da literatura já publicada em livros, artigos de revistas especializadas e publicações avulsas.

b) Documental: Constituição Federal do Brasil de 1988, Decreto nº 678/1992 (Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica -, de 22 de novembro de 1969.) e outras leis.

c) Jurisprudencial: julgados do Supremo Tribunal Federal.

Avancemos.


2. A POSIÇÃO HIERÁRQUICA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS SOBRE DIREITOS HUMANOS E OS CRITÉRIOS PARA SOLUÇÃO DE ANTINOMIAS JURÍDICAS

A relevância da discussão acerca da hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos somente faz sentido se entendermos que eventual conflito entre estas normas e o direito interno necessariamente precisam se resolver pelos critérios clássicos de solução de antinomias jurídicas (hierarquia, temporalidade e especialidade).

Isso porque, sob essa lógica, caso consideremos, por exemplo, que os tratados internacionais sobre direitos humanos possuam a mesma hierarquia que a legislação interna ordinária, eventual lei ordinária sobre o mesmo tema, ainda que extinguidora de direitos, revogaria, ao menos no âmbito interno, as disposições contidas na norma internacional.

Nesse mesmo sentido, fácil perceber que, diante do exemplo dado no parágrafo anterior, tudo mudaria caso se considerasse que os tratados internacionais sobre direitos humanos possuem status supralegal (e infraconstitucional), constitucional ou supraconstitucional.

Essa breve explicação será aprofundada quando da análise do Recurso Extraordinário nº 466.343. Tal exposição, entretanto, é suficiente para revelar que os critérios clássicos são manifestamente insuficientes para melhor resguardar juridicamente o ser humano. Prejudicar a eficácia de uma norma essencial por conta de aspectos puramente formais e sem considerar a relevância do conteúdo normativo é, realmente, uma visão excessivamente limitada e incompatível com a proteção do indivíduo.

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Solucionando tal impasse, temos o chamado “princípio da primazia da norma mais favorável à pessoa humana”, também chamado, segundo Portela (2016, p. 997) de “princípio da primazia da norma mais favorável ao indivíduo” ou de “princípio da primazia da norma mais favorável à vítima”, o qual indica que, diante de conflitos normativos, deve ser buscada sempre a solução que mais favoreça a proteção ao indivíduo. Piovesan (2013, p. 156-157) tece interessantes ponderações a respeito do referido postulado:

(…) Contudo, ainda se faz possível uma terceira hipótese no campo jurídico: eventual conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno. Esta terceira hipótese é a que encerra maior problemática, suscitando a seguinte indagação: como solucionar eventual conflito entre a Constituição e determinado tratado internacional de proteção dos direitos humanos?

Poder-se-ia imaginar, como primeira alternativa, a adoção do critério “lei posterior revoga lei anterior com ela incompatível”, considerando a natureza constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Contudo, exame mais cauteloso da matéria aponta para um critério de solução diferenciado, absolutamente peculiar ao conflito em tela, que se situa no plano dos direitos fundamentais. E o critério a ser adotado se orienta pela escolha da norma mais favorável à vítima. Vale dizer, prevalece a norma mais benéfica ao indivíduo, titular do direito. O critério ou princípio da aplicação do dispositivo mais favorável à vítima não é apenas consagrado pelos próprios tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, mas também encontra apoio na prática ou jurisprudência dos órgãos de supervisão internacionais. Na lição lapidar de Antônio Augusto Cançado Trindade, “desvencilhamo-nos das amarras da velha e ociosa polêmica entre monistas e dualistas; neste campo de proteção, não se trata de primazia do Direito Internacional ou do Direito interno, aqui em constante interação: a primazia é, no presente domínio, da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos consagrados da pessoa humana, seja ela uma norma de Direito Internacional ou de Direito interno”. Isto é, no plano de proteção dos direitos humanos interagem o Direito Internacional e o Direito interno movidos pelas mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as normas que melhor protejam o ser humano, tendo em vista que a primazia é da pessoa humana. Os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional.

Logo, na hipótese de eventual conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno, adota-se o critério da prevalência da norma mais favorável à vítima. Em outras palavras, a primazia é da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos da pessoa humana. (...)

Construídos tais alicerces básicos, avancemos.


3. ANÁLISE DOS PRINCIPAIS E ATUAIS PRECEDENTES DO STF SOBRE HIERARQUIA E PREVALÊNCIA DAS NORMAS DE DIREITOS HUMANOS

O Supremo Tribunal Federal, em sua composição plenária, decidiu no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343 pela ilicitude da prisão civil do depositário infiel (BRASIL, 2009a). A ementa pode ser conferida a seguir:

EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. (RE 466343, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 RTJ VOL-00210-02 PP-00745 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p. 29-165)

Para o âmbito do corrente escrito, importante destacar que, neste julgado, foi reinaugurada na Corte Máxima Trabalhista, apesar das divergências, a tese da supralegalidade (e infraconstitucionalidade) dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, conforme se infere de trecho do voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes:

"Se não existem maiores controvérsias sobre a legitimidade constitucional da prisão civil do devedor de alimentos, assim não ocorre em relação à prisão do depositário infiel. As legislações mais avançadas em matérias de direitos humanos proíbem expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente. O art. 7º (n.º 7) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe desta forma: 'Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.' Com a adesão do Brasil a essa convenção, assim como ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, sem qualquer reserva, ambos no ano de 1992, iniciou-se um amplo debate sobre a possibilidade de revogação, por tais diplomas internacionais, da parte final do inciso LXVII do art. 5º da Constituição brasileira de 1988, especificamente, da expressão 'depositário infiel', e, por consequência, de toda a legislação infraconstitucional que nele possui fundamento direto ou indireto. (...) Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (...) deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (...). Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. (...) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos 'Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal par aplicação da parte final do art.5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel."

Seguiram essa forma de pensar os Ministros: Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Carlos Britto e Menezes Direito. Os Ministros Celso de Mello e Cézar Peluso sustentaram a natureza materialmente constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos. O Ministro Joaquim Barbosa defendeu a prevalência da norma favorável à pessoa humana. Ministro Marco Aurélio entendeu ser desnecessário avançar nessa controvérsia para julgar o caso.

Em outro caso, a Corte, com a mesma composição plenária, reafirmou a tese da supralegalidade. A ementa, mesmo que não muito elucidativa, é a que segue:

DEPOSITÁRIO INFIEL - PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel. (HC 87585, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-118 DIVULG 25-06-2009 PUBLIC 26-06-2009 EMENT VOL-02366-02 PP-00237)

A fim de dar um panorama geral da visão do STF em 2009, relevante pontuar que, neste feito, a Ministra Ellen Gracie se manifestou em prol da tese de que os tratados internacionais de direitos humanos teriam natureza materialmente constitucional.

Frise-se que, em recente julgado, a fim de afastar qualquer dúvida que ainda pairasse, o Pleno do STF (BRASIL, 2016) deixou claro que a jurisprudência considerada prevalecente na Corte é a de que os tratados internacionais sobre direitos humanos ostentam status supralegal (e infraconstitucional):

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTO CONJUNTO 03/2015 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. 1. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem, que dispõe, em seu artigo 7º, item 5, que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, posto ostentar o status jurídico supralegal que os tratados internacionais sobre direitos humanos têm no ordenamento jurídico brasileiro, legitima a denominada “audiência de custódia”, cuja denominação sugere-se “audiência de apresentação”. 2. O direito convencional de apresentação do preso ao Juiz, consectariamente, deflagra o procedimento legal de habeas corpus, no qual o Juiz apreciará a legalidade da prisão, à vista do preso que lhe é apresentado, procedimento esse instituído pelo Código de Processo Penal, nos seus artigos 647 e seguintes. 3. O habeas corpus ad subjiciendum, em sua origem remota, consistia na determinação do juiz de apresentação do preso para aferição da legalidade da sua prisão, o que ainda se faz presente na legislação processual penal (artigo 656 do CPP). 4. O ato normativo sob o crivo da fiscalização abstrata de constitucionalidade contempla, em seus artigos 1º, 3º, 5º, 6º e 7º normas estritamente regulamentadoras do procedimento legal de habeas corpus instaurado perante o Juiz de primeira instância, em nada exorbitando ou contrariando a lei processual vigente, restando, assim, inexistência de conflito com a lei, o que torna inadmissível o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade para a sua impugnação, porquanto o status do CPP não gera violação constitucional, posto legislação infraconstitucional. 5. As disposições administrativas do ato impugnado (artigos 2º, 4° 8°, 9º, 10 e 11), sobre a organização do funcionamento das unidades jurisdicionais do Tribunal de Justiça, situam-se dentro dos limites da sua autogestão (artigo 96, inciso I, alínea a, da CRFB). Fundada diretamente na Constituição Federal, admitindo ad argumentandum impugnação pela via da ação direta de inconstitucionalidade, mercê de materialmente inviável a demanda. 6. In casu, a parte do ato impugnado que versa sobre as rotinas cartorárias e providências administrativas ligadas à audiência de custódia em nada ofende a reserva de lei ou norma constitucional. 7. Os artigos 5º, inciso II, e 22, inciso I, da Constituição Federal não foram violados, na medida em que há legislação federal em sentido estrito legitimando a audiência de apresentação. 8. A Convenção Americana sobre Direitos do Homem e o Código de Processo Penal, posto ostentarem eficácia geral e erga omnes, atingem a esfera de atuação dos Delegados de Polícia, conjurando a alegação de violação da cláusula pétrea de separação de poderes. 9. A Associação Nacional dos Delegados de Polícia – ADEPOL, entidade de classe de âmbito nacional, que congrega a totalidade da categoria dos Delegados de Polícia (civis e federais), tem legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade (artigo 103, inciso IX, da CRFB). Precedentes. 10. A pertinência temática entre os objetivos da associação autora e o objeto da ação direta de inconstitucionalidade é inequívoca, uma vez que a realização das audiências de custódia repercute na atividade dos Delegados de Polícia, encarregados da apresentação do preso em Juízo. 11. Ação direta de inconstitucionalidade PARCIALMENTE CONHECIDA e, nessa parte, JULGADA IMPROCEDENTE, indicando a adoção da referida prática da audiência de apresentação por todos os tribunais do país. (ADI 5240, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG 29-01-2016 PUBLIC 01-02-2016) (sublinhei e grifei)

O Ministro Luís Roberto Barroso, nos debates, chegou a defender que o melhor critério seria o da primazia da norma mais favorável ao indivíduo. Outros ministros tecerem breves comentários defendendo o status constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos. Eventual rediscussão da matéria, entretanto, foi deixada para outra oportunidade, optando o colegiado por seguir a jurisprudência considerada dominante no STF.

Pois bem.

O Supremo Tribunal Federal, quando considerou ilícita a prisão civil do depositário infiel, fundamentou sua tese, majoritariamente, no argumento de que o Pacto de São José da Costa Rica (BRASIL, 1992) ostentaria caráter supralegal (e infraconstitucional), uma vez que tal diploma versa sobre direitos humanos.

E, no caso, o item 7 do artigo 7º da referida Convenção estabeleceu que “Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedido em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”, em contraste com o art. 5º, LXVII, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), que definiu ser possível a prisão civil por dívida não só na hipótese de inadimplemento de obrigação alimentar, mas também no caso do depositário infiel.

Prosseguindo no raciocínio, o STF entendeu que a legislação brasileira ordinária, que regulava a prisão civil do depositário infiel, por ser incompatível com a norma estipulada no Pacto de São José da Costa Rica, teria tido “sua eficácia paralisada”. Por consequência, não sendo o art. 5º, LXVII, da Constituição Federal, autoaplicável na parte em que diz serem possíveis as prisões civis já citadas e tendo sido “paralisada” a legislação ordinária que regulava a matéria, restou naturalmente esvaziada a possibilidade de prisão civil do depositário infiel.

O STF só esqueceu de enfrentar um pequeno problema: como uma norma (Pacto de São José da Costa Rica) de natureza infraconstitucional (apesar de supralegal) poderia, validamente, limitar a regra insculpida no art. 5º, LXVII, da Constituição Federal? A norma supralegal somente poderia “paralisar a eficácia” da legislação ordinária caso, obviamente, fosse compatível com a Carta Magna.

Não há dúvidas de que, se a convenção internacional autorizasse uma modalidade nova, não prevista no texto constitucional, de prisão civil por dívida, seria declarada incompatível com a Constituição da República neste ponto. Do mesmo modo, via de regra, não pode uma norma de hierarquia inferior “esvaziar” o conteúdo de uma disposição constitucional. Pensando classicamente, se a Constituição diz que pode a prisão civil do depositário infiel e a Convenção Internacional diz que não pode, deve ser esta declarada parcialmente inconstitucional no ponto ou interpretada conforme a Lei das Leis. Não haveria que se falar em “eficácia paralisante” da legislação ordinária por norma de caráter supralegal violadora da própria Constituição Federal.

Com tudo isso, quer se deixar claro que somente um fundamento respalda a conclusão do STF: o de que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) deve ser entendida como compatível com a Constituição por trazer norma mais favorável ao ser humano do que aquela contida no próprio texto constitucional. A convenção internacional, na hipótese, estaria garantindo a máxima amplitude e eficácia aos direitos humanos, em total harmonia com a Constituição da República, haja vista que esta não pretendeu impor rol taxativo e intocável de direitos fundamentais, mas sim assegurar garantias humanas mínimas, sempre passíveis de ampliação e cada vez mais intensa concretização.

Observa-se, inclusive, que a prevalência da norma mais favorável ao ser humano é extraível de variados pilares constitucionais (artigos 1º, III, 4º, II, e 5º, §2º, CF), que estimulam e obtemperam a intensa proteção humana, na maior medida possível:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(…)

III - a dignidade da pessoa humana;

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

(...)

II - prevalência dos direitos humanos;

Art. 5º (…)

§2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Assim, mesmo sem perceber ou reconhecer expressamente, percebe-se que o próprio STF, a despeito de normalmente enfocar mais na questão hierárquica das normas internacionais sobre direitos humanos, reconhece e aplica o “princípio da primazia da norma mais favorável à pessoa humana”.

Sobre o autor
Charles da Costa Bruxel

Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Direito na área de concentração de Constituição, Sociedade e Pensamento Jurídico pela Universidade Federal do Ceará (2021). Especialista em Direito Processual Civil pela Damásio Educacional (2018). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Gama Filho (2013). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2016). Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Ceará (2011). Analista Judiciário - Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (CE), exercendo atualmente a função de Assistente em Gabinete de Desembargador. Explora pesquisas principalmente o Direito Processual do Trabalho, Direito do Trabalho, Direito Processual Civil e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUXEL, Charles Costa. O princípio da primazia da norma mais favorável à pessoa humana no direito brasileiro:: análise dos principais precedentes do STF sobre o tema. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4955, 24 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55116. Acesso em: 22 nov. 2024.

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