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A concepção tomista de pessoa

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Agenda 01/09/2000 às 00:00

3 – O PENSAMENTO CRISTÃO

Walter Moraes, em sua obra, já citada, afirma que um célebre professor de Harvard, criticou aquilo que denominava "estreiteza das concepções psicológicas" que reduzem o homem a um ser reativo, objeto da observação e análise de pequenos fenômenos, sob condições controladas. Tal professor ensina que, "uma concepção exclusivamente psicológica da pessoa humana é um sonho em vão. É preciso conhecer, também, a sua natureza metafísica e seu lugar no plano cósmico. A sabedoria antiga, tanto filosófica, quanto teológica, deveria ser consultada e incorporada, se não quisermos lidar com superficialidades complexas."

Dessa forma, podemos afirmar, que não existe nenhuma corrente científica ou filosófica que tenha dedicado tanto tempo, e com tanto empenho, em investigar a pessoa, quanto o pensamento cristão.

Desde os primeiros séculos, os sábios do Cristianismo buscaram elucidar dois pontos fundamentais da doutrina: o mistério da encarnação e o mistério da Trindade.

A doutrina cristã ensinava que Deus é um só, de forma que a natureza divina é una. Entretanto, essa unidade é da divindade, porque as pessoas mesmo, são três, ou seja, a trindade é das pessoas. Neste caso, pode-se afirmar que há uma só natureza (um só espírito) e três pessoas.

Por outro lado, a segunda pessoa, que é "o Verbo", encarnou-se e assumiu a natureza humana, de modo que, uma só pessoa, passou a sustentar duas unidades de natureza (uma humana e outra divina). Esses dogmas sugerem, dessa forma, que existe uma distinção real entre a pessoa e a substância natural personalizada e, apesar de reconhecerem tratar-se de verdades que não são passíveis de serem alcançadas pela razão humana, não admitiram, entretanto, que algum mistério de fé pudesse representar um absurdo ou algo irracional, fora da realidade, conforme salienta Walter Moraes.

Para o cristianismo, a noção de pessoa apresentou-se útil quando foi preciso expressar as relações entre Deus e o Cristo, e entre ambos e o Espírito, no entanto, ao mesmo tempo, foi fonte de mal entendidos e heresias. Por um lado, essa relação parecia ter sido somada à substância da coisa (e esse era o seu conceito na filosofia tradicional, em particular, na aristotélica). Por outro lado, a palavra pessoa, lembrando máscara de teatro, parecia implicar o caráter de algo meramente aparente e não substancial. Foi daí que nasceram as disputas trinitárias que caracterizam a história dos primeiros séculos do Cristianismo.

Com o objetivo de se evitar a associação entre a noção de pessoa e a de máscara, os filósofos gregos adotaram a palavra hypóstasis, que significava "suporte", revelando, dessa forma, as preocupações que sugeriram tal escolha. Muitos padres porém, na época, entenderam ser melhor simplesmente negar que a pessoa fosse relação, insistindo na sua substancialidade. Esse era o pensamento de S. Agostinho, que afirmava significar pessoa, simplesmente, uma substância e que, dessa forma, o Pai é pessoa em relação a si mesmo, e não em relação ao filho, e assim por diante. Baseado nisso, Boécio definiu pessoa como "a substância individual de natureza racional". Veremos, mais à frente, que esse não foi o pensamento de S. Tomás de Aquino.


4 – SÃO TOMÁS DE AQUINO

O maior e mais importante filósofo da Baixa Idade Média foi S. Tomás de Aquino, que viveu entre 1225 e 1274. Chamamo-lo de filósofo, no entanto, ele foi, igualmente, um teólogo. Naquela época não existia uma nítida divisão entre filosofia e teologia.

Da mesma forma que vários outro teólogos de sua época, S. Tomás de Aquino começou escrevendo um vasto Comentário aos Quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, obra que, já continha a arquitetura da futura Summa Theologiae.

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No período entre os seus trinta anos, quando escreveu o Comentário às Sentenças, e os cinqüenta, quando terminava a Summa, S. Tomás ocupou-se em comentar quase todos os livros das Sagradas Escrituras, o melhor da obra de Boécio e de Dioniso Areopagita e, praticamente, toda a obra de Aristóteles.

Podemos afirmar que S. Tomás de Aquino "cristanizou" Aristóteles, da mesma forma que S. Agostinho fizera com Platão no início da Idade Média, e aqui, entende-se por "cristanizar", o fato desses dois filósofos terem sido interpretados e entendidos de modo a deixarem de significar uma ameaça para a doutrina cristã.

S. Tomás de Aquino está entre os que tentaram conciliar a filosofia de Aristóteles com o cristianismo. E o que se atribui à ele é o mérito de ter conseguido a grande síntese entre a fé e o conhecimento. Ele não acreditava em um paradoxo, irreconciliável entre aquilo que nos diz a filosofia ou a razão, de um lado, e a revelação ou a fé cristã, do outro. Muito freqüentemente, o cristianismo e a filosofia falam da mesma coisa.

S. Tomás de Aquino acreditava que, ao lado do que ele chamou
"verdades de fé"
(como afirmar, por exemplo que Deus criou o mundo em seis dias), existiam as chamadas "verdades naturais teológicas", ou seja, aquelas verdades às quais podemos chegar tanto pela fé cristã, quanto pela nossa própria razão natural, inata. Para ele, um exemplo desse tipo de verdade seria o fato de que existe um Deus.

Tudo isto, aliado à uma vida espiritual de grande intensidade, culminou, no final de sua vida, para a elaboração da Summa Theologiae, que foi a sua principal obra.

          4.1 – A VIDA DE SÃO TOMÁS DE AQUINO

São Tomás de Aquino nasceu na Itália, em Rocasecca, cidade próxima a Nápoles, entre os anos de 1225 e 1227. Era filho do Conde Landolfo e da Condessa Teodora, que viviam no castelo de Rocasecca, aparentados com a nobreza alemã. A data do seu nascimento, no entanto, provoca uma certa divergência entre os estudiosos, sendo mais aceita, a definida por P. Mandonnet em um estudo publicado na Revue Thomiste em 1914, segundo o qual, S. Tomás teria nascido em 1225, em alguma data anterior ao dia 7 de março.

Aos cinco anos de idade, São Tomás foi confiado à custódia dos beneditinos de Monte Cassino, que, já naquela época, tinham fama universal, lá permanecendo por nove anos, até que, com cerca de 14 anos, a abadia foi ocupada pelas tropas de Frederico II, sendo S. Tomás, devolvido ao castelo da família, para logo em seguida, ser encaminhado à Universidade de Nápoles.

Seguindo a orientação pedagógica da época, consagrou-se, São Tomás de Aquino, ao estudo das Artes Liberais, que eram divididas em dois grupos: o primeiro grupo era formado pelo, chamado, Trivium, ou seja, a gramática, a retórica e a dialética, enquanto que o segundo grupo constituía o Quadrivium, isto é, a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.

São Tomás teve como mestre no Quadrivium, Pedro da Irlanda, célebre por seus comentários a algumas obras de Aristóteles que, na época, começavam a ser descobertas pelo ocidente cristão. Esse professor influenciou profundamente S. Tomás de Aquino, uma vez que foi ele quem atraiu, pela primeira vez, a atenção de Tomás para o nome e a obra de Aristóteles. Este simples fato, marca um lugar a Pedro da Irlanda na história do pensamento humano, por ter sido, provavelmente, o instrumento do encontro inicial entre S. Tomás de Aquino e Aristóteles.

Foi durante sua estadia em Nápoles, enquanto estudava o Trivium e o Quadrivium, que Tomás ficou conhecendo os padres dominicanos, sacerdotes que pertenciam a uma ordem, recém fundada na Igreja, por São Domingos. Por volta de seus 20 anos, S. Tomás ingressou na Ordem dos Dominicanos, sendo logo, enviado à Paris e, em seguida, para Colônia, no Império Germânico. Lá, Alberto Magno, ou Albertus Magnus, empreendia um trabalho de interpretação e assimilação de toda a obra de Aristóteles. O encontro de S. Tomás de Aquino com Alberto Magno representa um fato de extraordinária transcendência na história do pensamento. São muitos os estudiosos que afirmam que, se a visão de S. Tomás não tivesse sido, de início, estimulada pelo mestre e, logo após, ampliada nos mais diferentes sentidos, talvez o monumento tomista não alcançasse a majestade soberana a que se elevou.

Foi em Colônia, que Tomás de Aquino começou a ensinar, sob a direção de Alberto e, ainda nesta cidade, foi ordenado sacerdote. Alguns estudiosos entendem que, provavelmente, foi também, em Colônia, que ele escreveu a obra De Ente et Essentia e que iniciou os comentários dos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo.

Em 1252, Tomás de Aquino foi transferido para Paris, para lecionar na famosa Universidade Francesa e ali permaneceu até 1259, quando já devia contar com 34 anos de idade. Foi nesta época que ele escreveu o Comentário aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo e as Quaestiones Disputatae De Veritate.

Dos 34 aos 44 anos, S. Tomás de Aquino lecionou em vários centros de estudos da Itália e, durante três anos foi professor em uma escola de Teologia, que era anexa à Cúria Romana, além de ser teólogo consultor do Papa. São desta época que datam os principais comentários aos livros de Aristóteles. Também desta época, datam a obra Summa contra Gentiles, que representou para S. Tomás de Aquino uma espécie de preparação para que, posteriormente, pudesse escrever a monumental Summa Theologiae. Aliás, foi, também nesta época, que se iniciou a concepção e o planejamento da Summa Theologiae, bem como a redação da primeira das três partes em que se divide tal obra.

Dos 44 aos 47 anos, voltou, S. Tomás, a lecionar na Universidade de Paris. Neste período escreveu outros comentários a Aristóteles, como, por exemplo, o Comentário ao Livro da Interpretação, o Comentário aos Segundos Analíticos, o Comentários ao De Anima e o Comentário à Política, este último, incompleto, tendo sido terminado por seu discípulo, Pedro de Alverria. Da Summa Theologiae, redigiu a segunda de suas três partes.

Na Páscoa de 1247, com aproximadamente, 47 anos, S. Tomás retornou à Itália, onde lecionou, na Universidade de Nápoles, durante dois anos. Época em que escreveu o Comentário ao Livro De Causis e a terceira e última parte da Summa Theologiae, da qual completou as questões referentes a Cristo e a maior parte das referentes ao Sacramento; preparava-se para escrever, talvez aquela que seria a parte mais sublime da Summa Theologiae, parte esta, em que descreveria o Paraíso, quando, durante a Missa que celebrava na capela de São Nicolau, na manhã de 6 de dezembro de 1273, recebeu uma revelação que proibiu-o de continuar escrevendo e determinou que aguardasse o seu breve trânsito para a "vida eterna". Algumas semanas mais tarde, Tomás de Aquino foi convocado pelo Papa para se apresentar ao Segundo Concílio Ecumênico de Lião e, juntamente com o seu secretário, empreendeu uma viagem até a França. No caminho, próximo a Fossa Nova, S. Tomás ficou doente, sendo acolhido no mosteiro cisterciense daquela cidade, onde faleceu, em 7 de março de 1274, quando contava com 49 anos de idade. (XII)

          4.2 – A CONCEPÇÃO DE PESSOA DE ACORDO COM O PENSAMENTO DE SÃO TOMÁS DE AQUINO

Foi S. Tomás de Aquino que restabeleceu o significado do conceito de pessoa como relação, mesmo afirmando, de maneira simultânea, a substancialidade da relação in divinis.

S. Tomás afirma que o próprio Boécio, citado no item 3, admitia que "todo atinente às pessoas, significa uma relação". Além disso, entendia ele, que não havia outra forma de se esclarecer o significado das pessoas divinas, senão a de esclarecer as relações entre elas, com o mundo e com os homens. Afirmava que: "Não há distinção em Deus, a não ser em virtude das relações de origem. Contudo, em Deus a relação não é como um acidente inerente ao sujeito, mas é a própria essência divina, de tal modo que a subsiste do mesmo modo como subsiste a essência divina. Assim como a divindade é Deus, a paternidade divina é Deus Pai, que é a pessoa divina: portanto, a pessoa divina significa a relação enquanto subsistente, isto é, significa a relação na forma da substância, que é a hipóstase subsistente na natureza divina, embora aquilo que subsiste na natureza divina outra coisa não seja senão a natureza divina".

No que diz respeito às pessoas em geral, S. Tomás de Aquino afirmava que, à diferença do indivíduo, que por si é indistinto, "a pessoa, numa natureza qualquer, significa o que é distinto nessa natureza, assim como na natureza humana significa a carne, os ossos e a alma que são os princípios que individualizam o homem". Para ele, portanto, mesmo no sentido comum, a pessoa é distinção e relação.

A questão da pessoa, para os tomistas, é assunto eminentemente metafísico. Apenas eles, os tomistas, é que trataram, de forma psicológica e moral, a pessoa e a personalidade, ao avançarem alguns aspectos sistemáticos da disciplina de Aristóteles.

Walter Moraes ensina que, do ponto de vista da Metafísica, a relação entre personalidade e pessoa é a de subsistência e substância. Substância seria "o que é em si e não em outra coisa", ou seja, aquilo que existe por si, e não carece de outro fundamento. Essa independência, própria da substância, chama-se subsistência.

          Subsistência vem a ser, portanto, a aptidão para "ser" sem dependência. Quando a substância for perfeitamente subsistente, ela se chamará suposto (em latim "suppositum", em grego "hypóstasis"). O suposto é o que existe de mais completo, no gênero da substância e é, a tal ponto, independente, que não pode estar ou comunicar-se com outra. Dessa forma, define-se como a "substância singular perfeitamente subsistente e incomunicável".

O suposto da natureza racional se diz "pessoa". Essa noção explica a clássica definição de Boécio, acatada e sustentada por S. Tomás de Aquino: "substância indivídua de natureza racional". Onde o termo "indivídua", vale como indivisa em si e separada de qualquer outra substância incomunicável.

          À subsistência do suposto, diz-se também, supositalidade. E a subsistência da pessoa, "personalidade".

Sobre a autora
Daniela Paes Moreira Samaniego

professora de Direito na Universidade de Cuiabá (UNIC), mestranda em Direito pela UNIC/UNESP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAMANIEGO, Daniela Paes Moreira. A concepção tomista de pessoa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/560. Acesso em: 24 dez. 2024.

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