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Do cumprimento imperfeito ao inadimplemento escasso.

Aplicação prática do adimplemento substancial e tutela dos interesses negociais

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Agenda 21/02/2017 às 19:15

5.     Crítica à aplicação prática da doutrina do adimplemento substancial pelos tribunais brasileiros

O adimplemento substancial, no contexto do ordenamento jurídico brasileiro, embora sua possibilidade de existência devido a operações hermenêuticas realizadas por parte da doutrina e jurisprudência em prol da utilização de mecanismos para se efetivar a justiça social nos contratos e a garantia da isonomia material das partes. Deve este instituto resguardar um caráter criterioso de objetividade no que tange a sua aplicação prática. Evitando, portanto, um poder discricionário imbuído com o argumento principiológico enquanto fonte legitimadora de decisões judiciais sem qualquer critério, metodologia ou limites de intervenção sobre os contratos ou as obrigações das partes. Cabendo a definição, por parte da própria jurisprudência e doutrina, de critérios objetivos e estáveis aptos a definir a “substancialidade” do adimplemento ou a “insignificância” do inadimplemento.

O interesse do credor pode ser compreendido como uma relação entre a necessidade deste e o bem ou fato do devedor. Sendo então o ponto médio entre a necessidade do credor e o que possui, pode fazer ou deixar de fazer o devedor, preenchendo-se tal espaço entre as partes através da realização do adimplemento. Nota-se que a adoção de um critério subjetivo para se determinar a satisfação do interesse através de regras de suposições e determinações de standards de vontades hipotéticas entre as partes torna a problemática ainda mais complexa, não sendo capaz, portanto, de se solucionar devidamente o problema. Deve ser evitada a adoção pura e única do interesse subjetivo do credor, buscando-se, então, um critério que se enfoque sobre a justificação objetiva para a perda subjetiva de interesse. O interesse deve ser abordado segundo parâmetros objetivos, todavia, não se pode desconsiderar em absoluto seu aspecto subjetivo. Posto que a análise objetiva ao considerar as circunstâncias que permeiam a relação contratual deve conferir relevância para a condição pessoal do lesado pelo inadimplemento em vista de precisar sua expectativa legítima em relação ao contrato.[57]

Portanto, para se concretizar adequadamente a tutela jurídica das legítimas expectativas provenientes do interesse do credor, é preferível a adoção de um critério misto em prol de parâmetros que avaliem o “interesse objetivado” da relação jurídica, não se resumindo apenas sobre o interesse objetivo ou subjetivo. Deve se averiguar os elementos subjetivos mediante argumentos racionalmente verificáveis e controláveis para se chegar não ao interesse unilateral de apenas uma das partes do contrato, mas sim ao interesse da relação jurídica em si. O interesse sobre a prestação decorreria, então, do próprio sinalagma, da reciprocidade em equivalência das prestações, sendo possível, através da natureza de determinada prestação, estabelecer objetivamente o interesse ou necessidade que ela estaria apta a satisfazer.[58]

A partir das considerações acima feitas, cabe analisar o entendimento jurisprudencial dos tribunais superiores brasileiros. A começar pelo Supremo Tribunal Federal quanto ao critério de definição da substancialidade do adimplemento:

“Trata-se de agravo contra decisão que negou seguimento a recurso extraordinário interposto de acórdão, cuja segue transcrita: EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. CONSÓRCIO. ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL ATUA COMO INSTRUMENTO DE EQUIDADE, IMPONDO QUE, NAS HIPÓTESES EM QUE A EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO PELO PAGAMENTO ESTEJA MUITO PRÓXIMA DO FINAL, EXCLUA-SE A POSSIBILIDADE DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO, PERMITINDO-SE TÃO-SOMENTE A PROPOSITURA DA AÇÃO DE COBRANÇA DO SALDO EM ABERTO. O ADIMPLEMENTO DE MAIS DE 80% DAS PARCELAS AVENÇADAS NO CONTRATO NÃO ADMITE O DEFERIMENTO DA BUSCA E APREENSÃO DO BEM ALIENADO FIDUCIARIAMENTE. EMBARGOS DESACOLHIDOS, POR MAIORIA. No RE, fundado no art. 102, III, a, da Constituição, alegou-se violação ao art. 5º, LIV, da mesma Carta. O agravo não merece acolhida. Como tem consignado o Tribunal, por meio de remansosa jurisprudência, em regra, a alegação de ofensa ao princípio do devido processo legal, quando dependente de exame prévio de normas infraconstitucionais, configura situação de ofensa reflexa ao texto constitucional, o que inviabiliza o conhecimento do recurso extraordinário. Nesse sentido, menciono as seguintes decisões, entre outras: AI 663.125-AgR/PE, Rel. Min. Cármen Lúcia; AI 806.313-AgR/RN, Rel. Min. Ayres Britto; AI 756.336-AgR/MG, Rel. Min. Ellen Gracie; AI 634.217-AgR/GO, Rel. Min. Joaquim Barbosa; AI 764.042-AgR/MA, Rel. Min. Eros Grau; AI 508.047-AgR/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso; AI 643.180-AgR/BA, Rel. Min. Gilmar Mendes; AI 787.991-AgR/DF, de minha relatoria. Isso posto, nego seguimento ao recurso (CPC, art. 557, caput). Publique-se. Brasília, 20 de junho de 2012.Ministro RICARDO LEWANDOWSKI- Relator.”

(STF - ARE: 683464 RS, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 20/06/2012, Data de Publicação: DJe-123 DIVULG 22/06/2012 PUBLIC 25/06/2012)              

Paralelamente a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça vem apresentando um grande leque de decisões cujos parâmetros de análise da substancialidade do adimplemento concordam entre si no que diz respeito a escolha de um critério de definição, exemplificando-se, por meio deste julgado:

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL PARA AQUISIÇÃO DEVEÍCULO (LEASING). PAGAMENTO DE TRINTA E UMA DAS TRINTA E SEIS PARCELAS DEVIDAS. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. DESCABIMENTO. MEDIDAS DESPROPORCIONAIS DIANTE DO DÉBITO REMANESCENTE. APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. 1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual "[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". 2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato. 3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: "31 das 36prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido". O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante o substancial adimplemento da avença. 4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título. 5. Recurso especial não conhecido.”

(STJ - REsp: 1051270 RS 2008/0089345-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 04/08/2011, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/09/2011)                       

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Em consonância com o julgado acima referido, o Superior Tribunal de Justiça continuamente reconheceu a doutrina do adimplemento substancial em situações tais como, por exemplo, a falta de uma última prestação no cumprimento de contrato de financiamento[59], o pagamento de 29 das 32 parcelas da prestação[60] ou o adimplemento de 82,50% da prestação de um contrato de financiamento[61]. Bem como também deixou de aplicar a teoria do adimplemento substancial em situações tais como a do devedor que, mesmo cumprindo ¾ (três quartos) da prestação principal, não foram reconhecidos os 24% restantes da totalidade do adimplemento não cumprida enquanto inadimplemento insignificante[62], ou o reconhecimento de que a falta das 05 (cinco) ultimas prestações de financiamento não seriam consideradas enquanto valor irrisório[63].

No âmbito dos Tribunais de Justiça, percebe-se um alinhamento de acordo com os julgados dos tribunais superiores, de modo que os critérios geralmente apresentados para se identificar a aplicação da teoria do adimplemento substancial pairem sob situações tais como o pagamento de 41 das 48 parcelas contratadas[64], havendo, por continuamente, situações cujo cumprimento de 89%[65]{C}, 85%{C}[66]{C} ou 90%{C}[67] das obrigações contratuais principais ensejaram a aplicação da teoria do adimplemento substancial.

Não obstante a imensa variedade de situações aptas a serem tuteladas no caso concreto pela doutrina do adimplemento substancial, percebe-se que a jurisprudência brasileira como um todo, tanto as cortes superiores como os tribunais de justiça, plasmaram em seus contínuos julgados um critério enviesado puramente segundo a teoria objetiva da satisfação do interesse do credor, mediante parâmetros quantitativos de mensuração da potencialidade da prestação do devedor em ainda ser apta a concretizar a finalidade inerente ao vínculo obrigacional. Havendo, inclusive, um consenso no que diz respeito a um “valor mínimo” à partir do qual possa se determinar a substancialidade do adimplemento, tendo, desta feita, sido admitido o valor do cumprimento mínimo de 80%[68] da prestação enquanto gatilho automático que dispensa qualquer exame ulterior a respeito de outros elementos relevantes para com a relação obrigacional como a qualidade ou utilidade da prestação ou a possibilidade de satisfação do credor.

Embora a teoria do adimplemento substancial tenha surgido baseada na aferição do inadimplemento insignificante, ou seja, a relação mensurada entre o valor da parte não cumprida em relação ao todo da prestação. Ater-se puramente ao critério quantitativo sem qualquer outro parâmetro de verificação da substancialidade do adimplemento pode gerar situações de desvio da própria finalidade responsável pelo surgimento desta doutrina.

Já que um critério tão estrito e adstrito a parâmetros de objetivação da relação obrigacional podem reconhecer o adimplemento substancial em prestações que, embora cumprido o mínimo de 80%, não estão mais aptas a satisfazer o interesse do credor, ou até mesmo, não se realizando seus 100% por descumprimento de algum dever geral de conduta por parte do devedor, ensejando, do contrário, um cumprimento imperfeito mediante violação positiva do contrato em vez de adimplemento substancial. Como também, tal critério matemático pode negar o reconhecimento da substancialidade para com prestações que podem não ter exatamente alcançado o mínimo quantum fixado, porém, dadas as circunstâncias e a sua utilidade concreta para com o credor, poderiam ainda ser plenamente realizadas.

Cabe, então, uma leitura mais temperada sobre a doutrina do adimplemento substancial, em vista de que a formação de critérios extremamente rigorosos e herméticos não desvirtuem sua razão de existir, ou seja, a justiça contratual e o equilíbrio material entre as partes.

Deve ser reservado ao adimplemento substancial um âmbito de abrangência mais largo, de modo que, a resolução contratual e outras consequências prejudiciais que surgem à partir do inadimplemento sejam inibidas em razão de uma ponderação judicial entre a utilidade da extinção da relação obrigacional para o credor e o prejuízo que ocorreria para com o devedor e para terceiros a partir da resolução.  O adimplemento substancial, desta feita, não importa no puro impedimento do exercício do direito de resolução do credor baseado em um cumprimento que pode ser apenas formalmente considerado como imperfeito. Mas sim, sua razão de ser se assenta no controle judicial da legitimidade no remédio invocado para o inadimplemento, especialmente por meio do balanceamento, de um lado, entre os efeitos do exercício da resolução para o devedor e eventuais terceiros, e do outro, os efeitos do seu não exercício para com o credor.[69]

Sobre o autor
Rodrigo Tenório

Graduando da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Informações sobre o texto

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