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Notas sobre o auxílio-doença e as Medidas Provisórias nº 739/2016 e nº 767/2017

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Agenda 23/03/2017 às 10:10

Analisa-se o papel das recentes Medidas Provisórias n. 739/2016 e 767/2017 na atual disciplina do benefício previdenciário de auxílio-doença.

1. INTRODUÇÃO

No exercício da prerrogativa que lhe confere o art. 62 da Constituição Federal de 1988, o Presidente da República editou a Medida Provisória n. 739, de 07 de junho de 2016, por meio de que, entre outras medidas, alterou a disciplina do auxílio-doença na Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Resumidamente, a MP n. 739/2016 cuidava de questões como (a) carência e duração do benefício, (b) ônus e deveres do beneficiário.

Ocorre que a MP n. 739/2016 não foi convertida em lei pelo Congresso Nacional, perdendo sua eficácia por aplicação do art. 62, §3º, da Constituição Federal de 1988, cabendo ao poder legislativo disciplinar as situações jurídicas nascidas e modificadas no período em que tivera “força de lei”. A ausência do decreto legislativo disciplinar das situações jurídicas referidas implica na consolidação de seu regramento pela extinta medida provisória (CF, art. 62, §11).

Valendo-se de autorização constitucional implícita na disciplina do art. 62, §10, da Constituição Federal, já nos primeiros dias de 2017, o Presidente da República editou e publicou a Medida Provisória n. 767, de 06 de janeiro de 2017, por meio de que reestabeleceu praticamente tudo que fora instituído com a MP n. 739/2016 em matéria de auxílio-doença. A MP n. 767/2017 está atualmente em vigor, regendo a disciplina do auxílio-doença e ainda não fora, a exemplo de sua antecessora, convertida em lei.

Tais medidas provisórias marcam o início do esforço governamental de contenção da crise que assoma o Instituto Nacional da Seguridade Social, ameaçando-lhe a aptidão para o pagamento dos benefícios devidos a milhares de segurados e beneficiários. Embora não se trate da almejada solução definitiva (o que viria com a reforma da previdência na Constituição Federal), representa um ponto de partida de execução imediata.

O que desponta à primeira vista, em nossa opinião, é a circunstância de que a MP n. 767/2017 vem a lume, em substituição à MP n. 739/2016, numa situação de não adesão pelo Congresso Nacional, o que bem poderia ser interpretado (e haveria base para isso a partir de uma leitura séria da Constituição Federal) como rejeição da proposta governamental cristalizada na medida provisória anterior.

Em termos mais simples, poderíamos racionalizar a situação da seguinte maneira: se o Presidente da República edita uma medida provisória com força de lei, confiando em sua conversão pelo poder legislativo, mas essa conversão é implicitamente rejeitada pela não conversão no prazo constitucional, caber-lhe-ia respeitar a vontade popular (representada pelo parlamento), abstendo-se de insistir na estratégia já rejeitada. Apesar disso, o governo brasileiro repetiu, quase que integralmente, o texto da medida provisória anterior, desconsiderando inteiramente a rejeição da medida anterior como ato de vontade do parlamento.

De qualquer maneira, a Medida Provisória n. 767/2017, como dissemos, está atualmente em vigor e o governo espera, dessa vez, obter sua conversão em lei. Vamos examinar sua disciplina, em tudo e por tudo idêntica àquela instaurada pela MP n. 739/2016.


2. MANUTENÇÃO, PERDA E REAQUISIÇÃO DA QUALIDADE DE SEGURADO

De acordo com o art. 27-A da Lei n. 8.213/91, com redação dada pela MP n. 767/2017:

“Art. 27-A.  No caso de perda da qualidade de segurado, para efeito de carência para a concessão dos benefícios de auxílio-doença, de aposentadoria por invalidez e de salário-maternidade, o segurado deverá contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com os períodos previstos nos incisos I e III do caput do art. 25”.

Chama-se período de carência o tempo de contribuição (melhor ainda: a quantidade de contribuições mensais ou, no caso do segurado especial, o tempo de exercício da atividade) exigível para que o segurado tenha direito à percepção de determinado benefício (CASTRO; LAZZARI: 2016, 543). Na exata dicção da Lei n. 8.213/91 (art. 24), é “o número mínimo de contribuições mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao benefício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competências”. De acordo com o art. 25, os benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez tem períodos de carência fixados em 12 (doze) contribuições mensais (inciso I); no caso do salário-maternidade, a carência será, em regra, de 10 (dez) contribuições mensais (inciso III).

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Ao exercer atividade laborativa remunerada, o trabalhador se insere automaticamente no Regime Geral da Previdência Social (DUARTE: 2008, 38), tornando-se devedor das respectivas contribuições sociais (Lei n. 8.213/91, art. 11) (CASTRO; LAZZARI: 2016, 189). Em alguns casos, o dever instrumental de recolhimentos das contribuições é atribuído a terceiro, como no caso do segurado empregado (seu empregador é quem deve recolher as contribuições e repassar aos cofres do INSS). Em outros, cabe ao próprio segurado pagar suas contribuições (como no caso do segurado individual). Há ainda situações em que, conquanto não exerça atividade remunerada, o sujeito voluntariamente recolhe contribuições para fazer jus à cobertura securitária (segurado facultativo). Em todas essas situações, pode-se afirmar que ocorre a aquisição e a manutenção da qualidade de segurado.

Cessando seja a atividade laborativa remunerada, sejam os pagamentos mensais a título de contribuições devidas pelo trabalhador ou segurado facultativo, inicia-se um intervalo de tempo durante o qual o segurado mantém essa condição, ainda que sem contribuições. Trata-se do “período de graça”: lapso temporal durante o qual se mantém a qualidade de segurado, ainda que sem contribuições ou trabalho. As hipóteses e prazos estão previstos nos incisos do art. 15 do Plano de Benefícios da Previdência Social (Lei n. 8.213/91), trazendo seus parágrafos regras específicas de extensão desses prazos.

Superado o período de graça sem que o sujeito volte a exercer atividade que o qualifique como segurado obrigatório ou que volte a contribuir voluntariamente para a cobertura securitária, ocorre o fenômeno da “perda da qualidade de segurado”, perdendo o titular e seus dependentes toda a cobertura securitária, deixando de fazer jus, em regra, a quaisquer benefícios da previdência social cujo fato jurígeno ainda não tenha ocorrido. De acordo com o Plano de Benefícios, esse evento ocorrerá, precisamente, “no dia seguinte ao do término do prazo fixado no Plano de Custeio da Seguridade Social para recolhimento da contribuição referente ao mês imediatamente posterior ao do final dos prazos fixados neste artigo e seus parágrafos”.

Após a perda da qualidade de segurado, poderá o indivíduo recuperá-la, bastando voltar a desempenhar atividade remunerada que o qualifique como segurado obrigatório, ou mesmo recolher contribuições para a previdência social na condição de segurado obrigatório (individual, por exemplo) ou facultativo. É nesse ponto que surge nosso interesse sobre a regra da MP n. 767/2017, repetida a partir da redação da MP n. 739/2016.

Na sistemática anterior às Medidas Provisórias, bastava ao segurado que houvesse perdido a qualidade de segurado preencher 1/3 (um terço) da carência de um determinado benefício para “recuperar” as contribuições vertidas anteriormente à perda. Isso lhe permitiria obter o benefício em questão se a soma das contribuições anteriores (à perda) e posteriores  (à recuperação da qualidade de segurado) preenchesse integralmente o período legal de carência.

Na exata redação do dispositivo com eficácia suspensa pela MP n. 767/2017 (art. 24, parágrafo único):

“Havendo perda da qualidade de segurado, as contribuições anteriores a essa data só serão computadas para efeito de carência depois que o segurado contar, a partir da nova filiação à Previdência Social, com, no mínimo, 1/3 (um terço) do número de contribuições exigidas para o cumprimento da carência definida para o benefício a ser requerido“.

No caso do auxílio-doença e da aposentadoria por invalidez (que têm prazo de carência de 12 meses), imaginando-se que o segurado houvesse vertido dez contribuições antes da perda da qualidade de segurado, bastaria que, em sua nova filiação ao RGPS, recolhesse quatro contribuições para que pudesse somá-las às dez anteriores, perfazendo assim mais de 12 contribuições e se credenciando à percepção do benefício. Em suma, desde que tivesse pelo menos oito contribuições anteriores, suas quatro contribuições posteriores lhe seriam suficientes ao recebimento de um auxílio-doença ou de uma aposentadoria por invalidez (considerando, obviamente, que preencha os demais requisitos legais, a exemplo da incapacidade laborativa).

As MPs n. 739/2016 e n. 767/2017 estabeleceram que a regra da recuperação das contribuições anteriores à perda da qualidade de segurado – com o recolhimento de apenas 1/3 (um terço) do período de carência a partir da nova filiação – não mais se aplicaria aos benefícios de auxílio-doença (12 meses), aposentadoria por invalidez (12 meses) e salário-maternidade (10 meses). Nesses casos, de acordo com as Medidas Provisórias em questão, caberá ao segurado preencher integralmente o período de carência a partir da nova filiação.

Conquanto possa não ter sido esse o objetivo da equipe técnica governamental (acreditamos que tenha sido...), a nova regra tende a dificultar a prática ilícita levada a efeito por pessoas que perderam a qualidade de segurado e, tempos depois, viram-se acometidas de doença ou deficiência incapacitante. Uma vez que perderam a qualidade de segurado, a superveniência da incapacidade laborativa não lhes bastava à obtenção do direito ao benefício, de modo que, retardando o requerimento ao INSS, tais pessoas apressavam-se em recolher quatro contribuições (para recuperar as contribuições anteriores), pleiteando em seguida o auxílio-doença na via administrativa.

Com a MP n. 767/2012, essas pessoas deverão recolher doze contribuições durante não menos que doze meses, já que não se admite, para fins de carência, o recolhimento de contribuições em atraso na condição de segurado individual (pelo que seria muito fácil pagar, num só mês, as doze contribuições referentes aos doze meses anteriores, pedindo em seguida o benefício), como também o INSS tende a dificultar a validação de contribuições não contemporâneas (ou seja, recolhidas em atraso) vertidas em nome de segurado com vínculo empregatício, dada a possibilidade de fraude.


3. FIXAÇÃO DE PRAZO DE DURAÇÃO DO AUXÍLIO-DOENÇA PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA OU JUDICIAL

O auxílio-doença é um benefício previdenciário de caráter temporário, destinado a substituir os rendimentos do trabalhador acometido de doença ou deficiência que lhe cause uma situação de incapacidade laborativa não permanente. A partir do deferimento do benefício, duas são as possibilidades: se recuperar a capacidade laborativa, o benefício é cessado e o trabalhador volta ao trabalho; se não puder mais recuperar sua capacidade, o benefício poderá ser convertido em aposentadoria por invalidez. Assim, nos termos do que diz o art. 60, caput, da Lei n. 8.213/91, a ideia é que o segurado acometido de incapacidade transitória receba o benefício enquanto permanecer incapaz.

Em alguns casos, a perícia médica chegava à conclusão de que a incapacidade de determinado trabalhador seria provisória, sendo igualmente possível estimar o tempo de recuperação, fixando-o em dias ou meses. A partir daí, a autoridade administrativa concedia o benefício e desde já utilizava a estimativa do perito para fixar seu prazo de fruição, definindo a data de cessação, independentemente de nova perícia que confirmasse o restabelecimento do beneficiário. Em tais situações, o trabalhador sequer tinha dinheiro a requerer uma nova perícia médica junto ao INSS, vendo seu benefício ser extinto automaticamente. Trata-se do que se convencionou chamar de “alta programada” administrativa. Quando essa fixação era feita pelo juiz no âmbito de uma ação judicial, tornava-se uma “alta programada” judicial.

A “alta programada” foi impiedosamente caçada (sim, com “ç”) nas instâncias superiores do poder judiciário, que cassou (agora com “ss”) inúmeras decisões judiciais que admitiam-na. Chegou-se à conclusão de que, nem a autoridade administrativa, nem o juiz poderiam precisar o tempo necessário à recuperação do trabalhador, considerando assim indispensável a realização de uma nova perícia antes da cessação do benefício. Caberia, portanto, ao INSS convocar o beneficiário para submeter-se a novo exame, a partir de que lhe seria permitido interromper os pagamentos.

Entre vários bons exemplos de decisões nesse sentido, podemos citar o PEDILEF n. 05013043320144058302, de relatoria do eminente Juiz Federal Frederico Augusto Leopoldino Koehler (TNU, DOU 18/12/2015, pp. 142-87).

Parece-nos que a ideia subjacente a esse entendimento é a de que só o perito médico teria aptidão para constatar a recuperação da saúde do trabalhador. Respeitosamente, temos que divergir. Há alguém ainda mais credenciado que o perito para dizer se determinado trabalhador recuperou ou não sua capacidade para o trabalho: o próprio trabalhador. Sentindo-se plenamente recuperado e pronto para trabalhar, bem pode o segurado que vinha recebendo um auxílio-doença voltar a suas atividades normais, dando sequência a sua vida, independentemente do que o perito do INSS lhe pudesse dizer.

E essa é a deixa por via da qual entram em cena as Medidas Provisórias n. 739/2016 e 767/2017.

De acordo com o art. 60, §11, da Lei n. 8.213/91, com redação dada pela MP n. 767/2017 (mesmo texto da MP n. 739/2016): ”Sempre que possível, o ato de concessão ou de reativação de auxílio-doença, judicial ou administrativo, deverá fixar o prazo estimado para a duração do benefício”.

À primeira vista, seria a “legalização” da famigerada alta programada: o legislador estaria autorizando, aliás, determinando ao INSS e ao poder judiciário fixar o prazo de duração do auxílio-doença. A locução “sempre que possível” remeteria aos casos em que o próprio perito mérito do INSS, na primeira avaliação, faria uma estimativa objetiva do prazo de recuperação do trabalhador. Sendo assim, uma vez registrada no laudo a estimativa do perito sobre o tempo de duração da incapacidade, caberá à autoridade administrativa ou judicial definir um prazo de cessação automática do benefício.

O §12 do mesmo art. 60 da Lei n. 8.213/91, também com redação dada pela MP n. 7676/2017, estabelece em sua primeira parte que “na ausência de fixação do prazo de que trata o §11, o benefício cessará após o prazo de cento e vinte dias, contado da data de concessão ou de reativação”. O legislador se utiliza de uma ficção legal para estabelecer que a omissão da decisão administrativa ou judicial sobre o prazo de vigência do benefício implicará em que seja considerado como de cento e vinte dias.

Ocorre que a parte final desse art. 60, §12, da Lei n. 8.213/91, com redação da MP n. 767/2017, traz uma disposição que nos parece derrubar por terra as pretensões de associação da novel disciplina à antiga e famigerada alta programada. De fato, estabelece a disposição normativa a cessação do benefício ao final do prazo de cento e vinte dias, “exceto se o segurado requerer a sua prorrogação junto ao INSS, na forma do regulamento, observado o disposto no art. 62”.

A ideia é muito simples: se, no curso do prazo de vigência do auxílio-doença, o beneficiário requerer ao INSS sua prorrogação, a cessação do benefício dependerá da realização de perícia médica que confirme a recuperação da capacidade laborativa pelo trabalhador, ficando sem efeito a fixação administrativa ou judicial do prazo de extinção automática. Uma vez que o legislador estabeleceu esse requerimento de prorrogação como uma exceção à regra da cessação automática, a única conclusão possível é que caberá ao INSS conferir a atual aptidão do trabalhador, o que somente poderá ser feito através de um exame médico pericial.

Embora alocada no final do §12, não temos dúvida em afirmar que esse interessante enunciado normativo se aplica igualmente à disposição do §11, eis que ambos tratam do mesmo assunto: a possibilidade de automática cessação da vigência de um auxílio-doença concedido administrativa ou judicialmente com prazo certo. Trata-se, portanto, de uma exceção à disciplina geral da cessação automática, seja o prazo definido por expressa decisão judicial ou administrativa, seja por meio de ficção legal.

Ora, se a própria lei disponibiliza ao segurado um instrumento por meio do qual pode compelir o INSS a submetê-lo a um exame médico pericial como condição para que seu benefício possa ser cancelado, não se pode, nem de longe, equiparar uma tal disciplina à sistemática da “alta programada”. As decisões judiciais anteriores às MPs n. 739/2016 e 767/2017 se baseavam na compreensão de que a alta programada era incompatível com a Lei n. 8.213/91 porque essa última determinava a permanência do benefício enquanto durasse a incapacidade, ao passo que a cessação automática, pura e simples, permitia que um segurado ainda incapaz ficasse desamparado. A proibição dirigida ao INSS de cancelar o benefício antes da perícia, à vista de um requerimento nesse sentido do segurado, distingue radicalmente as duas situações.

Sobre o autor
Rogério Roberto Abreu

Doutorando no PPGD da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Mestre em Direito Econômico (UFPB). Professor no Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ/PB). Juiz Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABREU, Rogério Roberto. Notas sobre o auxílio-doença e as Medidas Provisórias nº 739/2016 e nº 767/2017. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5013, 23 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56604. Acesso em: 23 dez. 2024.

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