Um dos argumentos mais vistos em defesas feitas pelo Estado – seja município, estado ou União Federal – é o argumento de que “não haveria recursos aptos a resguardar a saúde de todos; e que, se conceder tratamento para um, tirará o direito de outro, devendo ser respeitado aquilo que, em tese, seria possível”.
Trata-se de argumento equivocado, falacioso.
Em primeiro lugar, negar um tratamento que é comprovadamente indispensável no caso concreto, para “preservar o direito de todos” não é um argumento válido, pois se defende direito abstrato e que nunca foi comprovado por números ou no papel. Isto é: não é aceitável negar um caso de uma pessoa que comprovadamente precisa, por supostamente precisar defender o “todo” de forma a não comprovar quem é esse todo, e comprovar realmente a falta de recursos.
Em segundo plano, note-se que a saúde é um direito fundamental, mas não somente um direito: é uma garantia. Explico: garantia fundamental é um direito que o Poder Público possui obrigação constitucional de fazer valer, não podendo ficar somente escrito na Constituição Federal. Ou seja: se há um direito comprovado à saúde, não pode o Estado deixar de garanti-lo, caso seja indispensável para resguardar os direitos fundamentais do doente.
Além disso, se um julgador possui em sua frente um doente grave, com risco de complicações ou morte, ele não poderá agir como o “Pôncio Pilatos” da lei, escolhendo que a pessoa deverá morrer, para economizar bens do Estado. Não. Isto não está nas mãos do julgador, assim como não está nas mãos de médicos. Trata-se do mais importante direito que possuímos. Em suma, não há escolha entre salvar uma vida ou não, ainda mais quando o magistrado possui em sua frente todas as provas de que o tratamento de saúde é indispensável.
Um médico, tendo um mendigo e um rico acidentados, deverá atender ambos da mesma forma, preconizando a vida. Um juiz, tendo ambos como autores processuais precisando de tratamento de saúde, deverá fazer o mesmo. Não pode o médico entender que não vai salvar o mendigo pois o mendigo seria menos importante para a sociedade, e que o rico mereceria mais atenção por ser mais relevante. Não, pois toda a vida é importante da mesma forma, na mesma medida. Não poderá também o juiz dizer que a vida da pessoa que se perde no meio do processo é menos importante, pois poderia prejudicar a “sociedade” concedendo-se um tratamento: não sem provas desse prejuízo, o que nunca se viu comprovar no caso concreto.
Vejamos uma ilustração de decisão judicial, comprovando que a falta de recursos do Estado é algo extremamente abstrato e falacioso, demonstrando o juiz federal que nunca ficou comprovada a suposta falta de recursos da ré mas, pelo contrário, havia elementos inequívocos de que a ré teria todos os recursos para adquirir o tratamento do doente:
SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO PUBLICAÇÕES JUDICIAIS I - INTERIOR SP E MS SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE BRAGANCA PAULISTA 1ª VARA DE BRAGANÇA PAULISTA
0001210-69.2016.403.6123 – J.M.M.S. - INCAPAZ X D.A.M.S –
UNIAO FEDERAL SENTENÇA
“(...) Com efeito, dispõe o artigo 1º da Lei nº 13.255/2016:Art. 1º Esta Lei estima a receita da União para o exercício financeiro de 2016 no montante de R$ 3.050.613.438.544,00 (três trilhões, cinquenta bilhões, seiscentos e treze milhões, quatrocentos e trinta e oito mil e quinhentos e quarenta e quatro reais) e fixa a despesa em igual valor, compreendendo, nos termos do art. 165, 5º , da Constituição: (...) A União, por óbvio, há de gerir esta soma com eficiência (CF, artigo 37, caput), estabelecendo prioridades para os gastos públicos, sendo indiscutível que uma das mais importantes é a saúde das pessoas. O medicamento pretendido pelo requerente, segundo pesquisas do perito judicial, custa R$ 115.000,00 por ano para dosagem de 25mg.Ora, apenas para a construção do centro de convenções do município de Mata de São João, na Bahia, foi empenhado, em 30.06.2016, o montante de R$ 1.950.000,00, conforme nota de empenho nº 2016NE800896, a conferir em http://www.portaltransparencia.gov.br/despesasdiarias/empenho? documento=540007000012016NE800896 A construção de centro de convenção não é prioritária relativamente à atividade de prolongar uma vida humana. Como se não bastasse, para a prestação de serviços de publicidade institucional por parte do Ministério do Turismo, foi empenhado, em 09.06.2016, conforme nota de empenho nº 2016NE800453, o valor de R$ 10.000.000,00, a conferir em http://www.portaltransparencia.gov.br/despesasdiarias/empenho?documento=185001182032016NE800453.O que é mais republicano? Salvar vidas ou fazer certas divulgações publicitárias?Finalmente, não ficou provado nestes autos que o custo do medicamento pretendido pelo requerente repercutirá negativamente no orçamento do Ministério da Saúde, de modo a prejudicar a execução das políticas públicas na área, com repercussão negativa relativamente aos que delas necessitam. O estabelecimento de contracautela não se faz necessário, dado que ausentes hipóteses que a poderiam ensejar. Ante o exposto, julgo procedente o pedido, com resolução de mérito. – grifos aditados.
Pode-se perceber, nitidamente, através do portal da transparência, que a questão é a aplicação dos recursos que deveriam ser aplicados na saúde, em áreas secundárias, o que demonstra que o Poder Público não tem priorizado os direitos e garantias fundamentais à vida e saúde.
Percebe-se também que as decisões judiciais que negam o tratamento no caso concreto dizendo sobre “o interesse da coletividade” possui notório viés político, de maneira a não querer o juiz suprir a falha constitucional dos Poderes Legislativo e Executivo – que é sua obrigação legal – para não causar atritos de ordem política e de carreira. Ora: tem-se uma vida se esvaindo no processo, e tem-se que, há orçamento farto para garantir a saúde do doente. Por que o magistrado negaria dizendo que conceder para um, prejudicaria a coletividade, mesmo sem provas? Temos que o Judiciário tem se mostrado algumas vezes temeroso e pusilânime para definir questões de cunho fundamental, o que demonstra a instabilidade do único Poder que possui a decisão final das questões da grande maioria dos mortais.
Suprir as omissões do Legislativo e Executivo é não só um direito, mas antes um dever, preconizado pelo Barão de Montesquieu, através do chamado “Sistema dos Freios e Contrapesos”, segundo o qual, deverá cada poder agir de forma a suprir as omissões e conter os excessos dos demais Poderes, de maneira a impedir qualquer abuso de quaisquer deles e complementar sua atuação quando insuficiente.
Assim, contraditória a alegação da “reserva do possível” ou “universalização à saúde”, quando vemos que há trilhões de orçamento, e gastos escancarados em setores infinitamente menos importantes, como publicidade e monumentos sociais.
Em síntese, esperamos que a tendência futura continue sendo – em sua maioria – a priorização da saúde nas demandas judiciais, em prol do caso concreto -, quando demonstrado com todas as provas possíveis que o tratamento é indispensável para resguardar a saúde ou evitar a morte do doente. Por outro lado, temos esperança de que os juízes não aleguem a defesa da coletividade em abstrato, mesmo quando comprovada a fartura de recursos em setores insignificantes quando comparados à vida humana, e, caso venham alegar possível “perigo à sociedade em garantir uma vida humana”, que comprovem exatamente o montante de recursos financeiros do Estado para a saúde, e que este montante é insuficiente para garanti-lá, providência esta que ainda não se viu como tomada em diversos processos judiciais.