1 INTRODUÇÃO
A aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado de Polícia é tema ainda controverso, tanto no âmbito doutrinário quanto no jurisprudencial. A própria aplicação do referido princípio, independente de quem faça a análise jurídica de cabimento ou não, ainda não se encontra pacificada tendo em vista os critérios de admissibilidade elencados pelas cortes superiores serem eivados de excessiva subjetividade.
A corrente que defende a aplicação do princípio supracitado pelo Delegado de Polícia ao analisar a tipicidade do fato concreto, vem ganhando força nos últimos tempos podendo inclusive já ser determinada como entendimento majoritário mesmo que ainda não pacificado.
Este artigo terá por objetivo expor, através da metodologia da pesquisa de fontes bibliográficas, argumentos técnicos embasados na lei, jurisprudência e doutrina, os motivos que levam ao entendimento pela admissibilidade da análise da tipicidade conglobante pelo Delegado de Polícia ao analisar o fato no caso concreto, de acordo com o conceito de crime da Teoria Tripartida, possibilitando ao mesmo aplicar o Princípio da Insignificância e, consequentemente, reconhecer a atipicidade do fato pela ausência de lesão, ou perigo de lesão, ao bem jurídico tutelado pela norma.
No item 2.1 será explicitado o surgimento do Princípio da Insignificância para o Direito Penal. Em seguida, no subitem 2.1.1 tratar-se-á da análise do princípio supracitado dentro do conceito analítico de crime pela Teoria Tripartida adotada pelo direito brasileiro. Posteriormente no item 2.2 será conceituada a definição do Princípio da Insignificância e na sequência, no subitem 2.2.1, examinados os pressupostos exigidos pelos tribunais superiores para seu reconhecimento e aplicação. A seguir, no subitem 2.2.2 o tema será a análise da reincidência, ou reiteração criminosa, e dos maus antecedentes, assim como suas consequências na aplicação do Princípio da Insignificância. O item 2.3 abordará a função e o dever do Delegado de Polícia diante de fato penalmente insignificante. Por fim, o item 2.4 tratará da possibilidade de incidência do Princípio da Insignificância nos crimes em espécie.
Ao final, se pretende demonstrar que deve sim ser concedida ao Delegado de Polícia a viabilidade de realizar a análise técnica e jurídica do caso reconhecendo a atipicidade do fato quando ausente a tipicidade material que se encontra dentro da análise da tipicidade conglobante.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 O SURGIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O Princípio da Insignificância teve sua origem no Direito Romano, com raízes no brocardo civil minimis non curat pratetor (o judiciário não cuida de coisas pequenas), sendo introduzido no Direito Penal na Alemanha após a segunda guerra mundial. Naquele momento histórico do pós-guerra, a sociedade alemã encontrava-se devastada com grande escassez de bens, inclusive os mais básicos. Entendeu-se então que pequenas lesões a bens, comida, vestuário entre outros considerados de pequena monta, não mereciam a tutela do Direito Penal em face daquele momento social específico.
Destarte, nasceu a ideia de que o Direito Penal não deveria se preocupar com pequenas lesões consideradas insignificantes, vindo a ser introduzido o Princípio da Insignificância ou Bagatela em 1964 pelo doutrinador e jurista alemão Claus Roxin, sendo tal instituto ligado essencialmente à análise da atipicidade material do fato.
2.1.1 Análise do Princípio da Insignificância dentro do conceito analítico de crime
O Brasil adotou como conceito analítico de crime a Teoria Tripartida na qual se considera criminosa a conduta quando o fato for típico, ilícito (anti-jurídico) e culpável. Tais critérios são cumulativos devendo ser analisados obrigatoriamente na ordem supracitada. Para que se compreenda onde se enquadra a análise do Princípio da Insignificância é necessário um estudo pormenorizado da Teoria Tripartida.
O fato para ser típico exige: uma conduta, um resultado, um nexo de causalidade entre a conduta e o resultado e, por fim, a tipicidade penal.
A conduta pode ser definida como comportamento doloso ou culposo do agente, podendo ser exteriorizada por uma ação (conduta comissiva) ou omissão (conduta omissiva), sendo esta última ainda subdividida em própria (por exemplo, no crime de omissão de socorro nos moldes do artigo 135 do Código Penal) ou imprópria (na forma das alíneas presentes no artigo 13 § 2º do Código Penal).
Entende-se por resultado seja o chamado resultado naturalístico, compreendido como aquele capaz de provocar uma modificação no mundo exterior (além da representação mental do agente), ou o resultado jurídico conceituado como lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado pela lei penal.
O nexo causal é a relação de causalidade entre a conduta e o resultado. Sem o referido vínculo de causalidade torna-se impossível atribuir o resultado ao agente visto não ser este o causador. Apenas para ilustrar, já que não é o objetivo deste trabalho, cabe dizer que é neste momento que se faz a análise das concausas relativamente e absolutamente independentes sejam elas preexistentes, concomitantes ou supervenientes.
Quanto à tipicidade penal, quarto elemento a compor o fato típico, devemos analisá-la sobre dois enfoques:
O primeiro diz respeito à tipicidade penal formal sendo esta definida como a adequação da conduta, ou seja, sua mera subsunção, ao modelo abstrato do tipo penal. Esta adequação típica de subordinação pode ser imediata ou direta, vindo a ocorrer quando houver a consumação na forma do artigo 14 I do Código Penal, ou ainda ser mediata ou indireta conforme ocorre na tentativa explicitada pelo indigitado artigo 14 II do Código Penal.
O segundo elemento a ser analisado dentro da tipicidade penal é a chamada tipicidade conglobante. Esta se subdivide em conduta antinormativa sendo definida como aquela que não é imposta nem fomentada pelo Estado, ou seja, conduta contrária à norma, e ainda em fato materialmente típico.
Entende-se por fato materialmente típico, também chamado de tipicidade material, a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, sendo justamente na análise deste ponto da teoria tripartida do crime que poderá ser verificada a incidência, ou não, do Princípio da Insignificância no caso concreto. Como afirma Greco "se não há tipicidade material, não há tipicidade conglobante; por conseguinte, se não há tipicidade penal, não haverá fato típico; e, como consequência lógica, se não há o fato típico, não haverá crime"[1].
O Princípio da Insignificância, também chamado de Bagatela Própria, não deve ser confundido com o da Bagatela Imprópria também chamada de Princípio da Desnecessidade da Pena ou da Irrelevância Penal do Fato. Neste a análise da aplicação do princípio não está ligada à questões que versam sobre a tipicidade do fato e sim à necessidade ou não de aplicação da pena no caso concreto analisado, enquanto naquele a tipicidade material da conduta é afastada em face da irrelevância ou ausência de lesão causada ao bem jurídico tutelado.
Nas palavras de Moraes e Fontes, "...a bagatela própria não encontra previsão no Código Penal Brasileiro, sendo considerada uma causa supralegal de exclusão da tipicidade...[2]". De forma distinta ao Princípio da Insignificância, a Bagatela Imprópria não é extralegal visto que encontra previsão expressa em nosso ordenamento jurídico pátrio à luz do artigo 59 do Código Penal quando cita que a pena deve ser necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Na Bagatela Imprópria o fato é penalmente relevante porém o juiz poderá valorar, no momento de aplicar a pena, que a mesma seja considerada desnecessária ou insuficiente diante de o agente já ter experimentado no caso em tela uma pena natural[3].
Apenas a título de informação por não ser o objetivo deste estudo cabe ainda dizer, quanto ao restante da análise do fato diante da Teoria Tripartida, que após a análise do fato típico (a sequência de análise deve ser obrigatoriamente respeitada) segue-se a análise da ilicitude na qual poderão incidir causas justificantes a saber: estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular de direito e ainda a hipótese de ocorrência da causa supralegal quando houver consentimento do ofendido devendo este possuir capacidade civil, ser válido o consentimento (sem violência, ameaça, coação ou fraude), ser o bem jurídico disponível e que o mesmo ocorra anteriormente, ou ao menos simultaneamente, à conduta. Tais aspectos se evidenciados afastam a ilicitude tornando o fato atípico.
Por último, após analisar se o fato é típico e ilícito, deve verificar se o mesmo é culpável. Afastam a culpabilidade sendo denominadas causas exculpantes: a imputabilidade do agente, a potencial falta de conhecimento da ilicitude do fato e a ausência de exigibilidade de conduta diversa. Incidindo qualquer das hipóteses mencionadas afasta-se a culpabilidade e consequentemente a tipicidade do fato supostamente criminoso.
2.2 A DEFINIÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Em sua essência, o Direito Penal só deve preocupar-se com a proteção dos bens mais importantes e necessários à vida em sociedade. O legislador através de um critério político, o qual varia de acordo com o momento social e histórico, elege quais bens e condutas merecem a tutela do Direito Penal e quais podem ser garantidos por outros ramos do Direito.
Assim tem-se a máxima de o Direito Penal ser a ultima ratio conforme aduz o Princípio da Intervenção Mínima. Deduz-se, então, ser o Princípio da Insignificância uma ramificação ou consequência do Princípio da Intervenção Mínima assim como também o é o Princípio da Fragmentariedade. Além disso, apenas a título de informação, cabe dizer que o Princípio da Insignificância também se correlaciona diretamente aos Princípios da Subsidiariedade, Proporcionalidade, Lesividade, Razoabilidade e Dignidade da Pessoa Humana.
Aduz o Princípio da Insignificância que não sendo o fato materialmente típico, ou seja, não havendo de fato uma lesão significante ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, restar-se-á afastada a tipicidade da conduta e consequentemente do crime, ainda que presente a tipicidade formal, ora aquela de pura subsunção ao modelo abstrato da conduta tipificada como crime.
O sistema jurídico deverá sempre considerar a relevância circunstancial de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam, quando de fato forem necessárias para a proteção das demais pessoas da sociedade e aos demais bens jurídicos considerados essenciais. É bom lembrar que a constituição vigente é pautada fundamentadamente pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, com fulcro em seu artigo 1° III CRFB, de onde se pode inferir que o desnecessário cerceamento da liberdade do indivíduo fere diretamente tal pressuposto, podendo inclusive incorrer num eventual crime de abuso de autoridade.
Conclui-se desta forma ser o Princípio da Insignificância uma criação doutrinária e jurisprudencial com natureza jurídica de causa supralegal de exclusão da tipicidade material.
O princípio da insignificância, que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material[4].
Uma parte da doutrina entende que há previsão expressa da insignificância no Código Penal Militar nos seus artigos 209 § 6° e 240 § 1°.
Em um eventual processo penal, diante da constatação da ocorrência de um fato criminoso e insignificante, restará ao juiz absolver o réu por não constituir o fato infração penal nos moldes do artigo 386 III do Código de Processo Penal.
2.2.1 Pressupostos exigidos pelos tribunais superiores para aplicação do Princípio da Insignificância
Nossos tribunais superiores, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, têm admitido o Princípio da Insignificância desde que presentes de forma concomitante os quatro vetores que serão explicitados a seguir.
O primeiro deles é denominado como a mínima ofensividade da conduta do agente. A ofensividade da conduta pode ser interpretada como o grau de nocividade, ou seja, o nível de agressividade na conduta do agente, relacionada à situação específica da pessoa atingida, devendo ser analisada de forma subjetiva em cada caso concreto.
O segundo vetor é a ausência de periculosidade social da ação. A periculosidade social da ação pode ser definida como o grau de risco para a sociedade de determinada conduta, o clamor social que a prática de uma conduta ensejará na sociedade. A conduta do agente não pode trazer risco para a sociedade, cabe aqui mais uma vez a análise subjetiva caso a caso.
O terceiro vetor, ou pressuposto, é o chamado reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento. O grau de reprovabilidade do comportamento se aproxima muito da mínima ofensividade da conduta. Se há uma conduta pouco ofensiva, por lógica será de reduzida reprovabilidade, podendo ser especificado por valores éticos, escolhidos pelo legislador, baseado em critérios jurídicos à luz do Direito Penal, mas ainda assim recobertos de certa subjetividade;
Por fim, como quarto e último pressuposto se tem a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Esta se refere ao dano de fato causado ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, a danosidade, o quanto aquela conduta foi capaz de desfalcar o bem jurídico. Correlaciona-se com o resultado naturalístico da conduta. Entre os quatro critérios é o que mais se aproxima de um conceito objetivo para sua aplicação, se afastando um pouco do subjetivismo exacerbado dos demais.
Por mais que tais critérios sejam eivados de relativa subjetividade, ensejando a interpretações distintas pelas cortes à luz de cada caso concreto, hodiernamente em nosso sistema jurídico, são os utilizados pelos tribunais superiores como filtro de admissibilidade da aplicação do instituto do Princípio da Insignificância.
2.2.2 A questão da reincidência ou reiteração criminosa e dos maus antecedentes na aplicação do Princípio da Insignificância
Inicialmente o STF e STJ proferiram julgados no sentido de que presentes a reincidência ou os maus antecedentes, não impediam o reconhecimento da insignificância alegando que a mesma afeta a tipicidade material, não podendo deixar de aplicá-la diante de condições pessoais desfavoráveis que não dizem respeito à tipicidade material. Além disso, deve-se analisar o direito penal do fato e não direito penal do autor o qual não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.
Segundo a teoria da reiteração não cumulativa de condutas de gêneros distintos, já adotada pelo Supremo Tribunal Federal, se um indivíduo pratica um crime patrimonial e ele possui em seu histórico criminal outras anotações de natureza diversa (um crime contra a pessoa, por exemplo), cabe a aplicação do Princípio da Insignificância conforme HC 114723 do STF.
Posteriormente, o STJ e STF passaram a proferir julgados no sentido oposto, alegando que a insignificância não pode ser utilizada como estímulo à criminalidade diante do criminoso habitual quando presentes maus antecedentes e reincidência.
Recentemente, a Terceira Seção do STJ e o Plenário do STF uniformizaram o entendimento. No HC 123.734 o plenário do STF fixou a tese de que a reincidência, por si só, não impede a aplicação do Princípio da Insignificância. Isto não quer dizer que se deva aplicar obrigatoriamente a insignificância no caso de reincidência, dependendo da análise do caso concreto.
O STF entende que mesmo reincidente, ao agente em caso de furto simples insignificante, poderá ainda ser fixado o regime inicial aberto de cumprimento de pena, com base no Princípio da Proporcionalidade, contrariando o texto expresso do artigo 33 do Código Penal que vedaria tal forma de regime inicial.
A Terceira Seção do STJ no EAResp 221.999/RS decidiu que, em regra, a reiteração delitiva não permite a aplicação do benefício da insignificância, objetivando evitar o fortalecimento da criminalidade, para que o crime não receba incentivos, salvo, se no caso concreto restar comprovado que a aplicação da insignificância seja socialmente recomendável. A bagatela não pode ser banalizada, não pode ser um instrumento de impunidade do agente. A dogmática deve estar ligada à questões de política criminal. A insignificância não se presta ao criminoso habitual, caso contrário estaria se descriminalizando o furto de bens considerados insignificantes.
Resumindo, a jurisprudência pátria dos tribunais superiores era uníssona até meados do ano de 2014 no sentido de que, observada a reincidência (reiteração criminosa) no caso concreto, restar-se-ia afastada a aplicação do Princípio da Insignificância, ainda que presentes os quatro requisitos de admissibilidade já citados anteriormente, a saber: a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Neste sentido foram os julgados AgRg no Resp 1.483.580/RS (STJ) e HC 113.411/PR (STF) argumentando basicamente quanto à hipótese da não aplicação do princípio em situação de multirreincidência ou reiteração não cumulativa de condutas do mesmo gênero (embora não, necessariamente, pertencente a idêntico tipo legal). O intuito dessas decisões era coibir os casos nos quais o agente fazia da prática reiterada de diversos fatos penalmente insignificantes um meio de sustento de vida, sendo moralmente e socialmente reprovável.
Concluindo, se a consequência do reconhecimento da insignificância é justamente o reconhecimento da atipicidade da conduta pela ausência de tipicidade material, não faz sentido que sua concessão seja condicionada à situação jurídica pretérita. Se em outros casos de atipicidade não se leva em conta a situação jurídica anterior do agente para o afastamento da conduta criminosa, seja pela atipicidade do fato ou pela presença de causas justificantes ou exculpantes, seria um contrassenso ao Estado Democrático de Direito que na situação de atipicidade material, por insignificância da lesão ao bem jurídico tutelado, tal situação pretérita fosse valorada.
Tal pensamento condicionado retroage a um estado de direito penal do autor ou direito penal do inimigo, flagrantemente contrário à um Estado Garantista no qual se deve analisar o direito penal do fato, tornando-se portanto inconstitucional aos princípios insculpidos tanto no artigo 1º III como em diversos incisos do artigo 5º da CRFB. Não há possibilidade de uma conduta atípica se tornar típica simplesmente porque o agente é reincidente.
Felizmente o informativo 548 de 22 de outubro de 2014, o STJ, passou a mitigar tal entendimento reconhecendo a aplicação do Princípio da Insignificância no HC 299.185/SP em um caso no qual o agente tentou furtar chocolates avaliados em R$28,00 de um supermercado possuindo o mesmo uma condenação transitada em julgado por crime da mesma natureza. No caso supracitado o Superior Tribunal de Justiça agiu como verdadeiro guardião da democracia, no entanto esse ainda não é um entendimento consolidado nas Cortes Superiores incidindo ainda majoritariamente condenações quando presente a reincidência em casos penalmente insignificantes.
2.3 A FUNÇÃO E O DEVER DO DELEGADO DE POLÍCIA DIANTE DE FATO PENALMENTE INSIGNIFICANTE
Em primeiro lugar deve ser esclarecido que o Garantismo Integral, justo e equilibrado é o modelo criminal que deve ser aplicado pela nossa constituição vigente. O Garantismo é o conjunto de princípios, axiomas, que buscam minimizar o arbítrio do Estado, em prol das liberdades públicas. As liberdades públicas devem ser maximizadas diminuindo-se o poder estatal.
O Garantismo Integral, do equilíbrio, observa o Princípio da Proporcionalidade sendo uma tendência atualmente no Brasil devendo ser analisado sob dois enfoques: a proibição de excesso, ora Garantismo Negativo, o qual significa que o Estado deve observar certos limites na sua atuação. Por outro lado a proibição de proteção deficiente, ora Garantismo Positivo, está ligada à proteção social significando que os cidadãos devem ser livres para exercer seus direito livremente sem a interferência nociva de terceiros.
O Brasil vive uma onda de interesse referente somente ao Garantismo Negativo, culminando num Garantismo Hiperbólico Monocular que se afasta do conceito de Garantismo justo e equilibrado buscado pelo Garantismo Integral o qual consegue conciliar a brandura e o rigor que devem ser aplicados de acordo com cada caso concreto.
Após já definido o que é o Princípio da Insignificância e em que momento da teoria tripartida do crime ele pode incidir, cabe efetuar a análise do que deve fazer o delegado de polícia diante de tal situação.
Conforme aduz a lei 12.830/2013, a qual versa sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, em seu caput do artigo 2º e no artigo 2º § 6º, há a previsão expressa no sentido de que as funções do Delegado de Polícia Judiciária são de natureza jurídica, essenciais ao Estado, sendo o indiciamento ato privativo do delegado ao qual cabe fundamentar, mediante análise técnico-jurídica, a indicação de autoria e materialidade.
Ora, a previsão expressa do termo "análise técnico-jurídica" já deixa claro que a função do Delegado de Polícia não é meramente administrativa e sim pré-processual, não se trata de procedimento que se exaure no âmbito administrativo. O Inquérito Policial, ainda que dispensável para proposição da denúncia pelo Ministério Público, objetiva reunir elementos mínimos de autoria e materialidade com a finalidade de lastrear a denúncia face ao indiciado.
Quanto ao termo correto na fase de investigação diz-se acusado ou indiciado, na fase processual denomina-se denunciado ou querelado (no caso de ação privada) e após a condenação determina-se como condenado.
A fase do Inquérito Policial ainda que puramente inquisitorial, permite inclusive que o advogado assista seu cliente investigado durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração apresentar razões e quesitos, visando reunir elementos de informação para a fase processual, na forma do artigo 7º XXI da Lei 8.906/94 incluído pela Lei 13.245/16 no rol de direitos do advogado previstos no Estatuto da OAB.
Pelo exposto, pode-se concluir que o trabalho do delegado de polícia é sim de natureza pré-processual, e não meramente administrativo.
O Delegado de Polícia Judiciária, mais corretamente denominado de Delegado de Garantias[5], visto ser ele o primeiro a realizar a análise técnico-jurídica do caso concreto sendo responsável por resguardar os direitos e garantias individuais do cidadão previstos na Constituição Federal de 1988, tem o dever, seja diante de situação de estado flagrancial ou de comunicação de notitia criminis, de avaliar juridicamente o caso concreto antes de optar, ou não, pela instauração de Inquérito Policial.
Parte da doutrina vincula ser o Inquérito Policial como de característica unidirecional sendo sua função única e exclusivamente direcionada à ajudar a formar a opinio delicti do Ministério Público sobre propor ou não a denúncia deflagrando a ação penal.
O entendimento desta corrente doutrinária é no sentido de não poder o Delegado de Polícia fazer juízo de valor no Inquérito Policial, argumentando com fulcro no artigo 17 do Código de Processo Penal que a autoridade policial judiciária não poderá mandar arquivar autos de inquérito, aduzindo o disposto no artigo 28 do CPP o qual determina que o requerimento de arquivamento do Inquérito Policial cabe ao Ministério Público, remetendo-o ao juiz que poderá concordar ou, considerando improcedentes as razões invocadas, remeter ao Procurador Geral de Justiça o qual ofertará a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual, aí sim, estará o magistrado obrigado a atender.
Esta corrente suscita ainda a possibilidade de incorrer em crime de prevaricação, se motivado para satisfazer sentimento de interesse pessoal, deixar o delegado de lavrar o APF mesmo que presentes os vetores da insignificância.
Para Távora e Alencar, não cabe ao Delegado de Polícia invocar o Princípio da Insignificância, pois este é movido pelo Princípio da Obrigatoriedade do Inquérito Policial e restrito à análise da tipicidade formal não havendo mecanismos para controlar a avaliação subjetiva do delegado. Para esta corrente, ainda que o fato seja insignificante, o Delegado deverá instaurar Inquérito Policial restando ao Ministério Público avaliar e manifestar sua opinio delicti. Rogério Greco, promotor de justiça do MP-MG, também se coaduna a esta opinião. A análise crítica quanto à insignificância da conduta caberia ao titular da ação penal, ora Ministério Público[6].
No entanto, não se pode concordar com tal entendimento demasiadamente positivista. O Delegado de Garantias ao lavrar o auto de prisão em flagrante delito, por exemplo, diante da existência de indícios de autoria e materialidade, faz sim juízo de valor já que verifica a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade do agente. Se assim não o fosse não poderia considerar a condição de menoridade penal do agente e deveria lavrar APF ou, ainda pior, lavrar o APF diante de clara atipicidade material por incidir o Princípio da Insignificância[7].
Nas palavras do professor e delegado de polícia Hoffman segue a crítica no sentido de que:
A função investigativa formalizada pela Polícia Judiciária está longe de se resumir a um suporte da acusação, não possuindo um caráter unidirecional. A finalidade do procedimento preliminar não deve ser vislumbrada sob a ótica exclusiva da preparação do processo penal, mas principalmente à luz de uma barreira contra acusações infundadas e temerárias, além de um mecanismo de salvaguarda da sociedade, assegurando a paz e a tranquilidade sociais[8].
O entendimento doutrinário neste sentido é corroborado por nomes como, por exemplo, Cleber Masson promotor de justiça do MP-SP, Guilherme de Sousa Nucci desembargador do TJ-SP, Luiz Flávio Gomes magistrado aposentado, Alexandre Morais da Rosa magistrado no RS, Aury Lopes Junior jurista do RS, Marcio Andrade Juiz Federal, Fernando Capez promotor de justiça do MP-SP, André Nicolitt magistrado do RJ, Bruno Gilaberte delegado de polícia do RJ dentre outros. A seguir serão expostos os principais argumentos no sentido da admissibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado de Polícia.
Tratando-se de fato manifestamente atípico, pela ausência de tipicidade material diante da ausência de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, o enclausuramento de alguém nesta situação, com o cerceamento indevido de sua liberdade de locomoção mediante abuso de poder, poderia em tese configurar para o Delegado de Polícia o crime de abuso de autoridade com previsão legal nos artigos 3º alínea "a" e 4° alínea "a" da Lei 4.898/1965. É imperioso dizer que a simples instauração de procedimento policial já configura atentado ao status dignitatis do investigado[9]. O inquérito policial representa um constrangimento ao investigado, devendo haver justa causa a motivar a instauração do procedimento para que não seja eivado de ilegalidade, devendo existir a possibilidade de se reunir minimamente elementos para se estabelecer a autoria e materialidade da infração penal. O Superior Tribunal de Justiça entende possível o trancamento de Inquérito Policial por Habeas Corpus quando constatada a insignificância, entendendo pela ilegalidade e possível abuso de autoridade face ao delegado (STJ Resp 1.175.490/PR, DJe 29/10/15).
Comprovada a insignificância o STJ e o STF admitem Habeas Corpus para: relaxamento de prisão em flagrante ilegal decorrente de fato insignificante lavrada pelo delegado. O Juiz poderá rejeitar a inicial acusatória não recebendo a denúncia, se recebê-la poderá absolver com base na insignificância. Se transitar em julgado a condenação caberá HC para desconstituí-la se presente a insignificância não sendo obrigatória a Revisão Criminal. Cabe Habeas Corpus tanto no Inquérito Policial quanto na Ação Penal.
É dever de quem faz a análise jurídica do caso em concreto evitar a arbitrariedade de se colocar no cárcere alguém que não violou materialmente a lei penal. Não se pode esquecer o contexto brasileiro de superlotação carcerária[10], onde existem mais de 570 mil pessoas segregadas, sendo quase a metade por prisões provisórias, cenário este que se agravaria caso autoridade policial judiciária se visse obrigada a efetuar a prisão dos responsáveis por condutas penalmente insignificantes. Deve ser levado em conta o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, artigo 1º III da CRFB, diante das condições desumanas do sistema carcerário pátrio que mitigam o objetivo de ressocialização do indivíduo segregado.
Ainda que o Delegado de Polícia não possa arquivar Inquéritos Policiais, poderá arquivar a notitia criminis se não hover justa causa para a instauração do Inquérito Policial. "Diante da notícia de uma infração penal, o Delegado de Polícia não está obrigado a instaurar o Inquérito Policial, devendo antes verificar a procedência das informações, assim como aferir a própria tipicidade da conduta noticiada"[11]. Neste sentido também é Capez quando afirma "faltando a justa causa, a autoridade policial pode (aliás, deve) deixar de instaurar o inquérito...[12]". O autor aduz ainda que
o auto somente não será lavrado se o fato for manifestamente atípico, insignificante ou se estiver presente, com clarividência, uma das hipóteses de exclusão de antijuridicidade, devendo-se atentar que, nessa fase, vigora o princípio do in dubio pro societate, não podendo o delegado de polícia embrenhar-se em questões doutrinárias de alta indagação, sob pena de antecipar indevidamente a fase judicial de apreciação de provas, permanecendo a dúvida ou diante de fatos aparentemente criminosos, deverá ser formalizada a prisão em flagrante.
Em relação à delatio criminis prevista no artigo 5° II segunda parte do Código de Processo Penal, pode haver indeferimento por despacho da Autoridade Policial, cabendo recurso dessa decisão para o chefe de polícia nos termos do indigitado artigo 5° § 2° do CPP, o que demonstra mais uma vez que o Delegado de polícia pode deixar de instaurar inquérito em certos casos, mediante sua análise técnico-jurídica, inclusive por expressa previsão do texto legal. Conforme interpretação do artigo 5° § 3° do Código de Processo Penal, a autoridade policial instaurará inquérito somente após verificada a procedência das informações.
A autoridade de polícia judiciária como já dissemos é o primeiro garantidor da dignidade da pessoa humana pois ainda que a prisão captura seja realizada por agente estatal distinto, o Delegado de Garantias é de fato o primeiro a realizar a análise técnico jurídica do caso concreto. O reconhecimento da insignificância no caso concreto demanda que se suscite a atipicidade da conduta. Se há notoriamente a presença da insignificância não há crime.
O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Félix Fischer, uma das maiores autoridades em Direito Penal no país na época do julgado do HC 154.949 no ano de 2010, proferiu em seu voto: "cumpre asseverar que a observância do Princípio da Insignificância no caso concreto é realizada a posteriori, pelo Poder Judiciário, analisando as circunstâncias peculiares de cada caso"[13]. A interpretação correta do inteiro teor do HC supracitado é no sentido de que se trata de um HC que busca trancar um procedimento investigatório por suposto abuso de autoridade, afirmando que na dúvida o delegado possui discricionariedade para autuar ou não o acusado, ficando a análise do mérito de possível reconhecimento da insignificância para ser discutida em juízo. O ministro não se posicionou contrariamente ao delegado aplicar ou não o Princípio da Insignificância.
Há de se expor, ainda, que o artigo 302 do Código de Processo Penal, ao tratar das hipóteses de flagrante delito, cita de forma expressa em seus incisos a expressão infração penal. Se a lavratura do auto de prisão em flagrante pressupõe a existência do próprio flagrante, não poderá o delegado ser obrigado a lavrar o APF quando presente a insignificância visto que deixaria de existir a infração penal pelo conceito da Teoria Tripartida.
Concluindo, pelo exposto, constatada pelo Delegado de Polícia a presença do instituto do Princípio da Insignificância no caso concreto, deverá: deixar de instaurar o Auto de Prisão em Flagrante Delito face ao agente acusado, registrar as declarações e encaminhar ao Ministério Público, pois a análise do delegado não pode ser peremptória, ou seja, não cabe ao delegado a decisão definitiva podendo o MP, caso entenda de forma distinta, oferecer a denúncia. Nas palavras de Pacelli, "O código de Processo Penal permite à autoridade policial a recusa de instauração de Inquérito Policial quando...ou quando o fato não ostentar contornos de criminalidade, isto é, faltar a ele quaisquer dos elementos constitutivos do crime"[14].
Na prática o que se observa nos casos em que se faz presente o crime insignificante são três hipóteses: na primeira o delegado lavra um registro de ocorrência não criminal sem necessidade de envio ao judiciário. Na segunda, o delegado não prende em flagrante, lavra o registro de ocorrência e envia para análise do judiciário.
Por fim, a terceira e mais recomendada opção, por alguns delegados, é aquele em que o delegado adota todos os trâmites e medidas de praxe, instaura o Inquérito Policial sem indiciamento tão somente para facilitar o registro da ocorrência e o controle da organização de todas as peças, sem adotar atos constritivos ou de constrangimento ao suposto agente, não prende em flagrante e envia para o judiciário para que analise em conjunto com o MP para que adotem as providências que julgarem cabíveis.
Em caso recente, na cidade do Rio de Janeiro, uma mulher foi presa em flagrante por tentativa de furto de cosméticos em uma farmácia que totalizavam a quantia de R$77,09 (setenta e sete reais e nove centavos). Na delegacia de polícia, a Autoridade Policial deixou de lavrar o APF com base no Princípio da Insignificância seguindo a peça de informação para o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o qual optou por oferecer a denúncia. Contudo, o juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto da 37ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, reconheceu a tese do Delegado de Polícia, aplicando no caso o Princípio da Insignificância e absolvendo sumariamente a ré com fulcro no art. 386 III do Código de Processo Penal, com sentença transitada em julgado em 26 de Setembro de 2016[15].
O 1° Congresso Jurídico dos Delegados de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, realizado em Novembro de 2104, aprovou o enunciado número 10 que determina que: "o Delegado de Polícia pode, mediante decisão fundamentada, deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante, justificando o afastamento da tipicidade material com base no princípio da insignificância, sem prejuízo de eventual controle externo"[16].
O seminário integrado de polícia judiciária da União e do estado de São Paulo, realizado em 2014, aprovou a súmula número 6 que aduz "é lícito ao Delegado de Polícia reconhecer, no instante do indiciamento ou da deliberação quanto à subsistência da prisão-captura em flagrante delito, a incidência de eventual princípio constitucional penal acarretador da atipicidade material, da exclusão de antijuridicidade ou da inexigibilidade de conduta diversa"[17]. E por fim, no II Encontro Nacional dos Delegados sobre Aperfeiçoamento da Democracia e Direitos Humanos, realizado em 2015, foi editado o enunciado de número 8 com a seguinte redação: "O Delegado de Polícia pode aplicar o princípio da insignificância e deixar de lavrar auto de prisão ou apreensão em flagrante, sem prejuízo da instauração de investigação policial e do controle interno e externo"[18].
2.4 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNFICÂNCIA NOS CRIMES EM ESPÉCIE
Como já informado, a constatação da existência do Princípio da Insignificância no caso concreto demanda uma análise da tríade objeto, autor e vítima. A partir de agora serão verificadas as hipóteses de incidência do princípio supracitado nos crimes em espécie:
No crime de furto simples, com fulcro no artigo 155 caput do CP, a jurisprudência majoritária admite a incidência para aplicação do Princípio da Insignificância, porém não se aplica para a hipótese de incidência do furto qualificado do artigo 155 §§ 4º, 5º e 6º CP em razão da maior ofensividade da conduta, apesar de existirem julgados pretéritos no sentido da aplicação.
Embora esta seja a posição majoritária, a partir do julgamento do EResp 1.609.444/SP no dia 26 de outubro de 2016, a Terceira Seção do STJ passou a entender que o furto qualificado pelo concurso de agentes previsto no art. 155 § 4° IV CP, por si só, não afasta a incidência da insignificância. O magistrado deverá observar se no caso concreto houve ou não maior reprovabilidade da conduta observando, por exemplo, como critérios a ausência de reincidência, ausência de violência, incidência do instituto da tentativa não se consumando o crime e recuperação da rés furtiva.
O furto insignificante difere do furto privilegiado, ou de pequeno valor do artigo 155 § 2° CP, neste a doutrina utiliza como referência o valor de até um salário, enquanto naquele, existem jurisprudências variando da ordem de 10% a 25% do valor de um salário mínimo para o bem subtraído.
No crime de roubo a jurisprudência majoritária não aplica a insignificância, isto porque o roubo é um crime complexo atingindo mais de um bem jurídico. Além disso, nenhuma violência ou grave ameaça poderá ser considerada insignificante, neste sentido HC 310.298 STJ.
Nos Crimes contra a administração pública, em regra a jurisprudência majoritária não aplica o princípio, visto que o bem jurídico tutelado é a moralidade administrativa. Neste sentido STJ AgRg no Resp 1.195.566, porém o STF entendeu em alguns julgados pela aplicação.
O crime de descaminho é um crime contra a administração pública, eminentemente fiscal (tributário), no qual a jurisprudência reconhece a incidência do Princípio da Insignificância sendo exceção à regra geral dos crimes contra administração pública. O critério baseia-se no valor sonegado do imposto e não no da mercadoria importada ou exportada.
Para o STF incide a aplicação se o valor não ultrapassar 20 mil reais com fundamento na portaria 75/2012 do Ministério da Fazenda conforme o informativo 739 STF. Para o STJ o valor considerado para incidência do princípio é até 10 mil reais com base no artigo 20 da lei 10.522/2002, aplicando a lei pois entende que portaria não tem força normativa para revogar uma lei conforma informativo 551 STJ.
No crime de Contrabando há entendimento pacífico do STF, STJ e TRF's pela não aplicabilidade visto que não é um crime apenas fiscal, já que o produto é proibido no Brasil. Neste sentido AgRg no Resp 330.323 STJ e AgRg no Resp 1.309.952. Nos Crimes contra a ordem tributária: aplica-se o mesmo critério do descaminho com base na lei 8.137/1990.
Nos Crimes ambientais: o bem jurídico tutelado é difuso não sendo identificado em uma única pessoa, porém aplica-se o Princípio da Insignificância, em regra, se no caso concreto ficar demonstrado que não houve potencialidade lesiva da coletividade do meio-ambiente, neste sentido AgRg no Resp 1.430.848 STJ e informativo 676 STF.
Quanto à posse de drogas praticadas por militar: A jurisprudência majoritária não aplica com fulcro no artigo 290 do CPM pela relevância da função militar. Neste sentido HC 107688 STF.
No crime de moeda falsa: não se aplica visto que o bem jurídico tutelado é a fé pública e nenhuma lesão a esta pode ser considerada de pequena monta. Neste sentido HC 108.193 STF e AgRg no AResp 595.323 STJ.
A posse de drogas para uso pessoal praticada por civil: o STJ não aplica por entender como crime de perigo abstrato onde o bem tutelado é a saúde pública de interesse supraindividual, neste sentido RHC 35.072 STJ. Cabe ressaltar que o MP-RJ tem arquivado e não oferecido denúncia para posse de maconha inferior a quantidade de 1 (uma) grama. O STF possui julgado favorável à aplicação da insignificância no art. 28 da lei 11.343/06.
No crime de tráfico de drogas se utiliza o mesmo fundamento anterior, ou seja, não se aplica por entender como crime de perigo abstrato onde o bem tutelado é a saúde pública de interesse supra-individual, neste sentido AgRg no AResp 330.958 STJ.
No crime de porte de munição, a jurisprudência majoritária não aplica por entender como crime de perigo abstrato de interesse supraindividual. Há decisão do STF favorável à insignificância num caso de porte de munição, sendo a mesma utilizada como pingente em um cordão.
3 CONCLUSÃO
Como foi demonstrado no decorrer deste artigo, se o Delegado de Polícia não pudesse fazer a análise da tipicidade conglobante no caso concreto, justamente onde se afere a incidência do Princípio da Insignificância diante da ausência de existência de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, e estivesse restrito pura e simplesmente à análise da tipicidade formal, mera análise de subsunção da conduta à norma penal, estaria certamente fadado a cometer injustiças diante de fatos penalmente insignificantes ao ver-se obrigado à indiciar o suspeito desrespeitando direitos e garantias fundamentais, além do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
O direito não é estático e evolui em conjunto com a sociedade, sendo assim, em um Estado Garantista, na vigência da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é imperioso que ao primeiro agente público incumbido da tarefa de analisar o caso concreto de forma técnica e jurídica, com embasamento na lei 12.830 de 2013 a qual versa sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia, seja reconhecida a possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância diante de fato penalmente insignificante.
O tema já ganhou importância inclusive no Projeto de Lei do Senado n° 236, de 2012, que trata da reforma do Código Penal Brasileiro, trazendo de forma expressa a aplicação do princípio sobre qual trata este artigo. Apesar de por um lado ser uma grata evolução no âmbito das garantias fundamentais, o referido texto deverá ser cuidadosamente redigido para que não limite e restrinja demasiadamente a possibilidade de sua aplicação.
Diante de todas as razões expostas neste artigo, não se pode chegar a outra conclusão a não ser pelo reconhecimento da possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância, inclusive pelo Delegado de Polícia, além das demais autoridades já pacificamente competentes.
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