3. A FUNÇÃO E O DEVER DO DELEGADO DE POLÍCIA DIANTE DE FATO PENALMENTE INSIGNIFICANTE
Em primeiro lugar deve ser esclarecido que o Garantismo Integral, justo e equilibrado é o modelo criminal que deve ser aplicado pela nossa constituição vigente. O Garantismo é o conjunto de princípios, axiomas, que buscam minimizar o arbítrio do Estado, em prol das liberdades públicas. As liberdades públicas devem ser maximizadas diminuindo-se o poder estatal.
O Garantismo Integral, do equilíbrio, observa o Princípio da Proporcionalidade sendo uma tendência atualmente no Brasil devendo ser analisado sob dois enfoques: a proibição de excesso, ora Garantismo Negativo, o qual significa que o Estado deve observar certos limites na sua atuação. Por outro lado a proibição de proteção deficiente, ora Garantismo Positivo, está ligada à proteção social significando que os cidadãos devem ser livres para exercer seus direito livremente sem a interferência nociva de terceiros.
O Brasil vive uma onda de interesse referente somente ao Garantismo Negativo, culminando num Garantismo Hiperbólico Monocular que se afasta do conceito de Garantismo justo e equilibrado buscado pelo Garantismo Integral o qual consegue conciliar a brandura e o rigor que devem ser aplicados de acordo com cada caso concreto.
Após já definido o que é o Princípio da Insignificância e em que momento da teoria tripartida do crime ele pode incidir, cabe efetuar a análise do que deve fazer o delegado de polícia diante de tal situação.
Conforme aduz a lei 12.830/2013, a qual versa sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, em seu caput do artigo 2º e no artigo 2º § 6º, há a previsão expressa no sentido de que as funções do Delegado de Polícia Judiciária são de natureza jurídica, essenciais ao Estado, sendo o indiciamento ato privativo do delegado ao qual cabe fundamentar, mediante análise técnico-jurídica, a indicação de autoria e materialidade.
Ora, a previsão expressa do termo "análise técnico-jurídica" já deixa claro que a função do Delegado de Polícia não é meramente administrativa e sim pré-processual, não se trata de procedimento que se exaure no âmbito administrativo. O Inquérito Policial, ainda que dispensável para proposição da denúncia pelo Ministério Público, objetiva reunir elementos mínimos de autoria e materialidade com a finalidade de lastrear a denúncia face ao indiciado.
Quanto ao termo correto na fase de investigação diz-se acusado ou indiciado, na fase processual denomina-se denunciado ou querelado (no caso de ação privada) e após a condenação determina-se como condenado.
A fase do Inquérito Policial ainda que puramente inquisitorial, permite inclusive que o advogado assista seu cliente investigado durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração apresentar razões e quesitos, visando reunir elementos de informação para a fase processual, na forma do artigo 7º XXI da Lei 8.906/94 incluído pela Lei 13.245/16 no rol de direitos do advogado previstos no Estatuto da OAB.
Pelo exposto, pode-se concluir que o trabalho do delegado de polícia é sim de natureza pré-processual, e não meramente administrativo.
O Delegado de Polícia Judiciária, mais corretamente denominado de Delegado de Garantias5, visto ser ele o primeiro a realizar a análise técnico-jurídica do caso concreto sendo responsável por resguardar os direitos e garantias individuais do cidadão previstos na Constituição Federal de 1988, tem o dever, seja diante de situação de estado flagrancial ou de comunicação de notitia criminis, de avaliar juridicamente o caso concreto antes de optar, ou não, pela instauração de Inquérito Policial.
Parte da doutrina vincula ser o Inquérito Policial como de característica unidirecional sendo sua função única e exclusivamente direcionada à ajudar a formar a opinio delicti do Ministério Público sobre propor ou não a denúncia deflagrando a ação penal.
O entendimento desta corrente doutrinária é no sentido de não poder o Delegado de Polícia fazer juízo de valor no Inquérito Policial, argumentando com fulcro no artigo 17 do Código de Processo Penal que a autoridade policial judiciária não poderá mandar arquivar autos de inquérito, aduzindo o disposto no artigo 28 do CPP o qual determina que o requerimento de arquivamento do Inquérito Policial cabe ao Ministério Público, remetendo-o ao juiz que poderá concordar ou, considerando improcedentes as razões invocadas, remeter ao Procurador Geral de Justiça o qual ofertará a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual, aí sim, estará o magistrado obrigado a atender.
Esta corrente suscita ainda a possibilidade de incorrer em crime de prevaricação, se motivado para satisfazer sentimento de interesse pessoal, deixar o delegado de lavrar o APF mesmo que presentes os vetores da insignificância.
Para Távora e Alencar, não cabe ao Delegado de Polícia invocar o Princípio da Insignificância, pois este é movido pelo Princípio da Obrigatoriedade do Inquérito Policial e restrito à análise da tipicidade formal não havendo mecanismos para controlar a avaliação subjetiva do delegado. Para esta corrente, ainda que o fato seja insignificante, o Delegado deverá instaurar Inquérito Policial restando ao Ministério Público avaliar e manifestar sua opinio delicti. Rogério Greco, promotor de justiça do MP-MG, também se coaduna a esta opinião. A análise crítica quanto à insignificância da conduta caberia ao titular da ação penal, ora Ministério Público6.
No entanto, não se pode concordar com tal entendimento demasiadamente positivista. O Delegado de Garantias ao lavrar o auto de prisão em flagrante delito, por exemplo, diante da existência de indícios de autoria e materialidade, faz sim juízo de valor já que verifica a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade do agente. Se assim não o fosse não poderia considerar a condição de menoridade penal do agente e deveria lavrar APF ou, ainda pior, lavrar o APF diante de clara atipicidade material por incidir o Princípio da Insignificância7.
Nas palavras do professor e delegado de polícia Hoffman segue a crítica no sentido de que:
A função investigativa formalizada pela Polícia Judiciária está longe de se resumir a um suporte da acusação, não possuindo um caráter unidirecional. A finalidade do procedimento preliminar não deve ser vislumbrada sob a ótica exclusiva da preparação do processo penal, mas principalmente à luz de uma barreira contra acusações infundadas e temerárias, além de um mecanismo de salvaguarda da sociedade, assegurando a paz e a tranquilidade sociais8.
O entendimento doutrinário neste sentido é corroborado por nomes como, por exemplo, Cleber Masson promotor de justiça do MP-SP, Guilherme de Sousa Nucci desembargador do TJ-SP, Luiz Flávio Gomes magistrado aposentado, Alexandre Morais da Rosa magistrado no RS, Aury Lopes Junior jurista do RS, Marcio Andrade Juiz Federal, Fernando Capez promotor de justiça do MP-SP, André Nicolitt magistrado do RJ, Bruno Gilaberte delegado de polícia do RJ dentre outros. A seguir serão expostos os principais argumentos no sentido da admissibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado de Polícia.
Tratando-se de fato manifestamente atípico, pela ausência de tipicidade material diante da ausência de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, o enclausuramento de alguém nesta situação, com o cerceamento indevido de sua liberdade de locomoção mediante abuso de poder, poderia em tese configurar para o Delegado de Polícia o crime de abuso de autoridade com previsão legal nos artigos 3º alínea "a" e 4° alínea "a" da Lei 4.898/1965. É imperioso dizer que a simples instauração de procedimento policial já configura atentado ao status dignitatis do investigado9. O inquérito policial representa um constrangimento ao investigado, devendo haver justa causa a motivar a instauração do procedimento para que não seja eivado de ilegalidade, devendo existir a possibilidade de se reunir minimamente elementos para se estabelecer a autoria e materialidade da infração penal. O Superior Tribunal de Justiça entende possível o trancamento de Inquérito Policial por Habeas Corpus quando constatada a insignificância, entendendo pela ilegalidade e possível abuso de autoridade face ao delegado (STJ Resp 1.175.490/PR, DJe 29/10/15).
Comprovada a insignificância o STJ e o STF admitem Habeas Corpus para: relaxamento de prisão em flagrante ilegal decorrente de fato insignificante lavrada pelo delegado. O Juiz poderá rejeitar a inicial acusatória não recebendo a denúncia, se recebê-la poderá absolver com base na insignificância. Se transitar em julgado a condenação caberá HC para desconstituí-la se presente a insignificância não sendo obrigatória a Revisão Criminal. Cabe Habeas Corpus tanto no Inquérito Policial quanto na Ação Penal.
É dever de quem faz a análise jurídica do caso em concreto evitar a arbitrariedade de se colocar no cárcere alguém que não violou materialmente a lei penal. Não se pode esquecer o contexto brasileiro de superlotação carcerária10, onde existem mais de 570 mil pessoas segregadas, sendo quase a metade por prisões provisórias, cenário este que se agravaria caso autoridade policial judiciária se visse obrigada a efetuar a prisão dos responsáveis por condutas penalmente insignificantes. Deve ser levado em conta o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, artigo 1º III da CRFB, diante das condições desumanas do sistema carcerário pátrio que mitigam o objetivo de ressocialização do indivíduo segregado.
Ainda que o Delegado de Polícia não possa arquivar Inquéritos Policiais, poderá arquivar a notitia criminis se não houver justa causa para a instauração do Inquérito Policial. "Diante da notícia de uma infração penal, o Delegado de Polícia não está obrigado a instaurar o Inquérito Policial, devendo antes verificar a procedência das informações, assim como aferir a própria tipicidade da conduta noticiada"11. Neste sentido também é Capez quando afirma "faltando a justa causa, a autoridade policial pode (aliás, deve) deixar de instaurar o inquérito...12". O autor aduz ainda que
o auto somente não será lavrado se o fato for manifestamente atípico, insignificante ou se estiver presente, com clarividência, uma das hipóteses de exclusão de antijuridicidade, devendo-se atentar que, nessa fase, vigora o princípio do in dubio pro societate, não podendo o delegado de polícia embrenhar-se em questões doutrinárias de alta indagação, sob pena de antecipar indevidamente a fase judicial de apreciação de provas, permanecendo a dúvida ou diante de fatos aparentemente criminosos, deverá ser formalizada a prisão em flagrante.
Em relação à delatio criminis prevista no artigo 5° II segunda parte do Código de Processo Penal, pode haver indeferimento por despacho da Autoridade Policial, cabendo recurso dessa decisão para o chefe de polícia nos termos do indigitado artigo 5° § 2° do CPP, o que demonstra mais uma vez que o Delegado de polícia pode deixar de instaurar inquérito em certos casos, mediante sua análise técnico-jurídica, inclusive por expressa previsão do texto legal. Conforme interpretação do artigo 5° § 3° do Código de Processo Penal, a autoridade policial instaurará inquérito somente após verificada a procedência das informações.
A autoridade de polícia judiciária como já dissemos é o primeiro garantidor da dignidade da pessoa humana pois ainda que a prisão captura seja realizada por agente estatal distinto, o Delegado de Garantias é de fato o primeiro a realizar a análise técnico jurídica do caso concreto. O reconhecimento da insignificância no caso concreto demanda que se suscite a atipicidade da conduta. Se há notoriamente a presença da insignificância não há crime.
O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Félix Fischer, uma das maiores autoridades em Direito Penal no país na época do julgado do HC 154.949 no ano de 2010, proferiu em seu voto: "cumpre asseverar que a observância do Princípio da Insignificância no caso concreto é realizada a posteriori, pelo Poder Judiciário, analisando as circunstâncias peculiares de cada caso"13. A interpretação correta do inteiro teor do HC supracitado é no sentido de que se trata de um HC que busca trancar um procedimento investigatório por suposto abuso de autoridade, afirmando que na dúvida o delegado possui discricionariedade para autuar ou não o acusado, ficando a análise do mérito de possível reconhecimento da insignificância para ser discutida em juízo. O ministro não se posicionou contrariamente ao delegado aplicar ou não o Princípio da Insignificância.
Há de se expor, ainda, que o artigo 302 do Código de Processo Penal, ao tratar das hipóteses de flagrante delito, cita de forma expressa em seus incisos a expressão infração penal. Se a lavratura do auto de prisão em flagrante pressupõe a existência do próprio flagrante, não poderá o delegado ser obrigado a lavrar o APF quando presente a insignificância visto que deixaria de existir a infração penal pelo conceito da Teoria Tripartida.
Concluindo, pelo exposto, constatada pelo Delegado de Polícia a presença do instituto do Princípio da Insignificância no caso concreto, deverá: deixar de instaurar o Auto de Prisão em Flagrante Delito face ao agente acusado, registrar as declarações e encaminhar ao Ministério Público, pois a análise do delegado não pode ser peremptória, ou seja, não cabe ao delegado a decisão definitiva podendo o MP, caso entenda de forma distinta, oferecer a denúncia. Nas palavras de Pacelli, "O código de Processo Penal permite à autoridade policial a recusa de instauração de Inquérito Policial quando...ou quando o fato não ostentar contornos de criminalidade, isto é, faltar a ele quaisquer dos elementos constitutivos do crime"14.
Na prática o que se observa nos casos em que se faz presente o crime insignificante são três hipóteses: na primeira o delegado lavra um registro de ocorrência não criminal sem necessidade de envio ao judiciário. Na segunda, o delegado não prende em flagrante, lavra o registro de ocorrência e envia para análise do judiciário.
Por fim, a terceira e mais recomendada opção, por alguns delegados, é aquele em que o delegado adota todos os trâmites e medidas de praxe, instaura o Inquérito Policial sem indiciamento tão somente para facilitar o registro da ocorrência e o controle da organização de todas as peças, sem adotar atos constritivos ou de constrangimento ao suposto agente, não prende em flagrante e envia para o judiciário para que analise em conjunto com o MP para que adotem as providências que julgarem cabíveis.
Em caso recente, na cidade do Rio de Janeiro, uma mulher foi presa em flagrante por tentativa de furto de cosméticos em uma farmácia que totalizavam a quantia de R$77,09 (setenta e sete reais e nove centavos). Na delegacia de polícia, a Autoridade Policial deixou de lavrar o APF com base no Princípio da Insignificância seguindo a peça de informação para o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o qual optou por oferecer a denúncia. Contudo, o juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto da 37ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, reconheceu a tese do Delegado de Polícia, aplicando no caso o Princípio da Insignificância e absolvendo sumariamente a ré com fulcro no art. 386. III do Código de Processo Penal, com sentença transitada em julgado em 26 de Setembro de 201615.
O 1° Congresso Jurídico dos Delegados de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, realizado em Novembro de 2104, aprovou o enunciado número 10 que determina que: "o Delegado de Polícia pode, mediante decisão fundamentada, deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante, justificando o afastamento da tipicidade material com base no princípio da insignificância, sem prejuízo de eventual controle externo"16.
O seminário integrado de polícia judiciária da União e do estado de São Paulo, realizado em 2014, aprovou a súmula número 6 que aduz "é lícito ao Delegado de Polícia reconhecer, no instante do indiciamento ou da deliberação quanto à subsistência da prisão-captura em flagrante delito, a incidência de eventual princípio constitucional penal acarretador da atipicidade material, da exclusão de antijuridicidade ou da inexigibilidade de conduta diversa"17. E por fim, no II Encontro Nacional dos Delegados sobre Aperfeiçoamento da Democracia e Direitos Humanos, realizado em 2015, foi editado o enunciado de número 8 com a seguinte redação: "O Delegado de Polícia pode aplicar o princípio da insignificância e deixar de lavrar auto de prisão ou apreensão em flagrante, sem prejuízo da instauração de investigação policial e do controle interno e externo"18.