INTRODUÇÃO
A aplicação do Princípio da Insignificância pelo Delegado de Polícia é tema ainda controverso, tanto no âmbito doutrinário quanto no jurisprudencial. A própria aplicação do referido princípio, independente de quem faça a análise jurídica de cabimento ou não, ainda não se encontra pacificada tendo em vista os critérios de admissibilidade elencados pelas cortes superiores serem eivados de excessiva subjetividade.
A corrente que defende a aplicação do princípio supracitado pelo Delegado de Polícia ao analisar a tipicidade do fato concreto, vem ganhando força nos últimos tempos podendo inclusive já ser determinada como entendimento majoritário mesmo que ainda não pacificado.
Este artigo terá por objetivo expor, através da metodologia da pesquisa de fontes bibliográficas, argumentos técnicos embasados na lei, jurisprudência e doutrina, os motivos que levam ao entendimento pela admissibilidade da análise da tipicidade conglobante pelo Delegado de Polícia ao analisar o fato no caso concreto, de acordo com o conceito de crime da Teoria Tripartida, possibilitando ao mesmo aplicar o Princípio da Insignificância e, consequentemente, reconhecer a atipicidade do fato pela ausência de lesão, ou perigo de lesão, ao bem jurídico tutelado pela norma.
No item 1 será explicitado o surgimento do Princípio da Insignificância para o Direito Penal. Em seguida, no subitem 1.1 tratar-se-á da análise do princípio supracitado dentro do conceito analítico de crime pela Teoria Tripartida adotada pelo direito brasileiro. Posteriormente no item 2 será conceituada a definição do Princípio da Insignificância e na sequência, no subitem 2.1, examinados os pressupostos exigidos pelos tribunais superiores para seu reconhecimento e aplicação. A seguir, no subitem 2.2 o tema será a análise da reincidência, ou reiteração criminosa, e dos maus antecedentes, assim como suas consequências na aplicação do Princípio da Insignificância. O item 3 abordará a função e o dever do Delegado de Polícia diante de fato penalmente insignificante. Por fim, o item 4 tratará da possibilidade de incidência do Princípio da Insignificância nos crimes em espécie.
Ao final, se pretende demonstrar que deve sim ser concedida ao Delegado de Polícia a viabilidade de realizar a análise técnica e jurídica do caso reconhecendo a atipicidade do fato quando ausente a tipicidade material que se encontra dentro da análise da tipicidade conglobante.
1. O SURGIMENTO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O Princípio da Insignificância teve sua origem no Direito Romano, com raízes no brocardo civil minimis non curat pratetor (o judiciário não cuida de coisas pequenas), sendo introduzido no Direito Penal na Alemanha após a segunda guerra mundial. Naquele momento histórico do pós-guerra, a sociedade alemã encontrava-se devastada com grande escassez de bens, inclusive os mais básicos. Entendeu-se então que pequenas lesões a bens, comida, vestuário entre outros considerados de pequena monta, não mereciam a tutela do Direito Penal em face daquele momento social específico.
Destarte, nasceu a ideia de que o Direito Penal não deveria se preocupar com pequenas lesões consideradas insignificantes, vindo a ser introduzido o Princípio da Insignificância ou Bagatela em 1964 pelo doutrinador e jurista alemão Claus Roxin, sendo tal instituto ligado essencialmente à análise da atipicidade material do fato.
1.1. Análise do Princípio da Insignificância dentro do conceito analítico de crime
O Brasil adotou como conceito analítico de crime a Teoria Tripartida na qual se considera criminosa a conduta quando o fato for típico, ilícito (anti-jurídico) e culpável. Tais critérios são cumulativos devendo ser analisados obrigatoriamente na ordem supracitada. Para que se compreenda onde se enquadra a análise do Princípio da Insignificância é necessário um estudo pormenorizado da Teoria Tripartida.
O fato para ser típico exige: uma conduta, um resultado, um nexo de causalidade entre a conduta e o resultado e, por fim, a tipicidade penal.
A conduta pode ser definida como comportamento doloso ou culposo do agente, podendo ser exteriorizada por uma ação (conduta comissiva) ou omissão (conduta omissiva), sendo esta última ainda subdividida em própria (por exemplo, no crime de omissão de socorro nos moldes do artigo 135 do Código Penal) ou imprópria (na forma das alíneas presentes no artigo 13 § 2º do Código Penal).
Entende-se por resultado seja o chamado resultado naturalístico, compreendido como aquele capaz de provocar uma modificação no mundo exterior (além da representação mental do agente), ou o resultado jurídico conceituado como lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado pela lei penal.
O nexo causal é a relação de causalidade entre a conduta e o resultado. Sem o referido vínculo de causalidade torna-se impossível atribuir o resultado ao agente visto não ser este o causador. Apenas para ilustrar, já que não é o objetivo deste trabalho, cabe dizer que é neste momento que se faz a análise das concausas relativamente e absolutamente independentes sejam elas preexistentes, concomitantes ou supervenientes.
Quanto à tipicidade penal, quarto elemento a compor o fato típico, devemos analisá-la sobre dois enfoques:
O primeiro diz respeito à tipicidade penal formal sendo esta definida como a adequação da conduta, ou seja, sua mera subsunção, ao modelo abstrato do tipo penal. Esta adequação típica de subordinação pode ser imediata ou direta, vindo a ocorrer quando houver a consumação na forma do artigo 14 I do Código Penal, ou ainda ser mediata ou indireta conforme ocorre na tentativa explicitada pelo indigitado artigo 14 II do Código Penal.
O segundo elemento a ser analisado dentro da tipicidade penal é a chamada tipicidade conglobante. Esta se subdivide em conduta antinormativa sendo definida como aquela que não é imposta nem fomentada pelo Estado, ou seja, conduta contrária à norma, e ainda em fato materialmente típico.
Entende-se por fato materialmente típico, também chamado de tipicidade material, a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, sendo justamente na análise deste ponto da teoria tripartida do crime que poderá ser verificada a incidência, ou não, do Princípio da Insignificância no caso concreto. Como afirma Greco "se não há tipicidade material, não há tipicidade conglobante; por conseguinte, se não há tipicidade penal, não haverá fato típico; e, como consequência lógica, se não há o fato típico, não haverá crime"1.
O Princípio da Insignificância, também chamado de Bagatela Própria, não deve ser confundido com o da Bagatela Imprópria também chamada de Princípio da Desnecessidade da Pena ou da Irrelevância Penal do Fato. Neste a análise da aplicação do princípio não está ligada à questões que versam sobre a tipicidade do fato e sim à necessidade ou não de aplicação da pena no caso concreto analisado, enquanto naquele a tipicidade material da conduta é afastada em face da irrelevância ou ausência de lesão causada ao bem jurídico tutelado.
Nas palavras de Moraes e Fontes, "...a bagatela própria não encontra previsão no Código Penal Brasileiro, sendo considerada uma causa supralegal de exclusão da tipicidade...2". De forma distinta ao Princípio da Insignificância, a Bagatela Imprópria não é extralegal visto que encontra previsão expressa em nosso ordenamento jurídico pátrio à luz do artigo 59 do Código Penal quando cita que a pena deve ser necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Na Bagatela Imprópria o fato é penalmente relevante porém o juiz poderá valorar, no momento de aplicar a pena, que a mesma seja considerada desnecessária ou insuficiente diante de o agente já ter experimentado no caso em tela uma pena natural3.
Apenas a título de informação por não ser o objetivo deste estudo cabe ainda dizer, quanto ao restante da análise do fato diante da Teoria Tripartida, que após a análise do fato típico (a sequência de análise deve ser obrigatoriamente respeitada) segue-se a análise da ilicitude na qual poderão incidir causas justificantes a saber: estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular de direito e ainda a hipótese de ocorrência da causa supralegal quando houver consentimento do ofendido devendo este possuir capacidade civil, ser válido o consentimento (sem violência, ameaça, coação ou fraude), ser o bem jurídico disponível e que o mesmo ocorra anteriormente, ou ao menos simultaneamente, à conduta. Tais aspectos se evidenciados afastam a ilicitude tornando o fato atípico.
Por último, após analisar se o fato é típico e ilícito, deve verificar se o mesmo é culpável. Afastam a culpabilidade sendo denominadas causas exculpantes: a imputabilidade do agente, a potencial falta de conhecimento da ilicitude do fato e a ausência de exigibilidade de conduta diversa. Incidindo qualquer das hipóteses mencionadas afasta-se a culpabilidade e consequentemente a tipicidade do fato supostamente criminoso.
2. A DEFINIÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
Em sua essência, o Direito Penal só deve preocupar-se com a proteção dos bens mais importantes e necessários à vida em sociedade. O legislador através de um critério político, o qual varia de acordo com o momento social e histórico, elege quais bens e condutas merecem a tutela do Direito Penal e quais podem ser garantidos por outros ramos do Direito.
Assim tem-se a máxima de o Direito Penal ser a ultima ratio conforme aduz o Princípio da Intervenção Mínima. Deduz-se, então, ser o Princípio da Insignificância uma ramificação ou consequência do Princípio da Intervenção Mínima assim como também o é o Princípio da Fragmentariedade. Além disso, apenas a título de informação, cabe dizer que o Princípio da Insignificância também se correlaciona diretamente aos Princípios da Subsidiariedade, Proporcionalidade, Lesividade, Razoabilidade e Dignidade da Pessoa Humana.
Aduz o Princípio da Insignificância que não sendo o fato materialmente típico, ou seja, não havendo de fato uma lesão significante ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, restar-se-á afastada a tipicidade da conduta e consequentemente do crime, ainda que presente a tipicidade formal, ora aquela de pura subsunção ao modelo abstrato da conduta tipificada como crime.
O sistema jurídico deverá sempre considerar a relevância circunstancial de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam, quando de fato forem necessárias para a proteção das demais pessoas da sociedade e aos demais bens jurídicos considerados essenciais. É bom lembrar que a constituição vigente é pautada fundamentadamente pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, com fulcro em seu artigo 1° III CRFB, de onde se pode inferir que o desnecessário cerceamento da liberdade do indivíduo fere diretamente tal pressuposto, podendo inclusive incorrer num eventual crime de abuso de autoridade.
Conclui-se desta forma ser o Princípio da Insignificância uma criação doutrinária e jurisprudencial com natureza jurídica de causa supralegal de exclusão da tipicidade material.
O princípio da insignificância, que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material4.
Uma parte da doutrina entende que há previsão expressa da insignificância no Código Penal Militar nos seus artigos 209 § 6° e 240 § 1°.
Em um eventual processo penal, diante da constatação da ocorrência de um fato criminoso e insignificante, restará ao juiz absolver o réu por não constituir o fato infração penal nos moldes do artigo 386 III do Código de Processo Penal.
2.1. Pressupostos exigidos pelos tribunais superiores para aplicação do Princípio da Insignificância
Nossos tribunais superiores, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, têm admitido o Princípio da Insignificância desde que presentes de forma concomitante os quatro vetores que serão explicitados a seguir.
O primeiro deles é denominado como a mínima ofensividade da conduta do agente. A ofensividade da conduta pode ser interpretada como o grau de nocividade, ou seja, o nível de agressividade na conduta do agente, relacionada à situação específica da pessoa atingida, devendo ser analisada de forma subjetiva em cada caso concreto.
O segundo vetor é a ausência de periculosidade social da ação. A periculosidade social da ação pode ser definida como o grau de risco para a sociedade de determinada conduta, o clamor social que a prática de uma conduta ensejará na sociedade. A conduta do agente não pode trazer risco para a sociedade, cabe aqui mais uma vez a análise subjetiva caso a caso.
O terceiro vetor, ou pressuposto, é o chamado reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento. O grau de reprovabilidade do comportamento se aproxima muito da mínima ofensividade da conduta. Se há uma conduta pouco ofensiva, por lógica será de reduzida reprovabilidade, podendo ser especificado por valores éticos, escolhidos pelo legislador, baseado em critérios jurídicos à luz do Direito Penal, mas ainda assim recobertos de certa subjetividade;
Por fim, como quarto e último pressuposto se tem a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Esta se refere ao dano de fato causado ao bem jurídico tutelado pelo Direito Penal, a danosidade, o quanto aquela conduta foi capaz de desfalcar o bem jurídico. Correlaciona-se com o resultado naturalístico da conduta. Entre os quatro critérios é o que mais se aproxima de um conceito objetivo para sua aplicação, se afastando um pouco do subjetivismo exacerbado dos demais.
Por mais que tais critérios sejam eivados de relativa subjetividade, ensejando a interpretações distintas pelas cortes à luz de cada caso concreto, hodiernamente em nosso sistema jurídico, são os utilizados pelos tribunais superiores como filtro de admissibilidade da aplicação do instituto do Princípio da Insignificância.
2.2. A questão da reincidência ou reiteração criminosa e dos maus antecedentes na aplicação do Princípio da Insignificância
Inicialmente o STF e STJ proferiram julgados no sentido de que presentes a reincidência ou os maus antecedentes, não impediam o reconhecimento da insignificância alegando que a mesma afeta a tipicidade material, não podendo deixar de aplicá-la diante de condições pessoais desfavoráveis que não dizem respeito à tipicidade material. Além disso, deve-se analisar o direito penal do fato e não direito penal do autor o qual não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.
Segundo a teoria da reiteração não cumulativa de condutas de gêneros distintos, já adotada pelo Supremo Tribunal Federal, se um indivíduo pratica um crime patrimonial e ele possui em seu histórico criminal outras anotações de natureza diversa (um crime contra a pessoa, por exemplo), cabe a aplicação do Princípio da Insignificância conforme HC 114723 do STF.
Posteriormente, o STJ e STF passaram a proferir julgados no sentido oposto, alegando que a insignificância não pode ser utilizada como estímulo à criminalidade diante do criminoso habitual quando presentes maus antecedentes e reincidência.
Recentemente, a Terceira Seção do STJ e o Plenário do STF uniformizaram o entendimento. No HC 123.734 o plenário do STF fixou a tese de que a reincidência, por si só, não impede a aplicação do Princípio da Insignificância. Isto não quer dizer que se deva aplicar obrigatoriamente a insignificância no caso de reincidência, dependendo da análise do caso concreto.
O STF entende que mesmo reincidente, ao agente em caso de furto simples insignificante, poderá ainda ser fixado o regime inicial aberto de cumprimento de pena, com base no Princípio da Proporcionalidade, contrariando o texto expresso do artigo 33 do Código Penal que vedaria tal forma de regime inicial.
A Terceira Seção do STJ no EAResp 221.999/RS decidiu que, em regra, a reiteração delitiva não permite a aplicação do benefício da insignificância, objetivando evitar o fortalecimento da criminalidade, para que o crime não receba incentivos, salvo, se no caso concreto restar comprovado que a aplicação da insignificância seja socialmente recomendável. A bagatela não pode ser banalizada, não pode ser um instrumento de impunidade do agente. A dogmática deve estar ligada à questões de política criminal. A insignificância não se presta ao criminoso habitual, caso contrário estaria se descriminalizando o furto de bens considerados insignificantes.
Resumindo, a jurisprudência pátria dos tribunais superiores era uníssona até meados do ano de 2014 no sentido de que, observada a reincidência (reiteração criminosa) no caso concreto, restar-se-ia afastada a aplicação do Princípio da Insignificância, ainda que presentes os quatro requisitos de admissibilidade já citados anteriormente, a saber: a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Neste sentido foram os julgados AgRg no REsp 1.483.580/RS (STJ) e HC 113.411/PR (STF) argumentando basicamente quanto à hipótese da não aplicação do princípio em situação de multirreincidência ou reiteração não cumulativa de condutas do mesmo gênero (embora não, necessariamente, pertencente a idêntico tipo legal). O intuito dessas decisões era coibir os casos nos quais o agente fazia da prática reiterada de diversos fatos penalmente insignificantes um meio de sustento de vida, sendo moralmente e socialmente reprovável.
Concluindo, se a consequência do reconhecimento da insignificância é justamente o reconhecimento da atipicidade da conduta pela ausência de tipicidade material, não faz sentido que sua concessão seja condicionada à situação jurídica pretérita. Se em outros casos de atipicidade não se leva em conta a situação jurídica anterior do agente para o afastamento da conduta criminosa, seja pela atipicidade do fato ou pela presença de causas justificantes ou exculpantes, seria um contrassenso ao Estado Democrático de Direito que na situação de atipicidade material, por insignificância da lesão ao bem jurídico tutelado, tal situação pretérita fosse valorada.
Tal pensamento condicionado retroage a um estado de direito penal do autor ou direito penal do inimigo, flagrantemente contrário à um Estado Garantista no qual se deve analisar o direito penal do fato, tornando-se portanto inconstitucional aos princípios insculpidos tanto no artigo 1º III como em diversos incisos do artigo 5º da CRFB. Não há possibilidade de uma conduta atípica se tornar típica simplesmente porque o agente é reincidente.
Felizmente o informativo 548 de 22 de outubro de 2014, o STJ, passou a mitigar tal entendimento reconhecendo a aplicação do Princípio da Insignificância no HC 299.185/SP em um caso no qual o agente tentou furtar chocolates avaliados em R$28,00 de um supermercado possuindo o mesmo uma condenação transitada em julgado por crime da mesma natureza. No caso supracitado o Superior Tribunal de Justiça agiu como verdadeiro guardião da democracia, no entanto esse ainda não é um entendimento consolidado nas Cortes Superiores incidindo ainda majoritariamente condenações quando presente a reincidência em casos penalmente insignificantes.