Preceito de natureza constitucional, a coisa julgada possui previsão no art. 5º, XXXVI da Carta Magna (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada), tendo status, portanto, de direito e garantia fundamental.
Quando se instala um litígio em âmbito judicial, uma série de normas e princípios básicos são movidos no intuito de obter uma pacificação social, que resta abalada provisoriamente, ante a crise originada pela lide. As partes necessitam de um juízo de certeza quanto a questão que foi levada ao judiciário. Decorrido certo lapso temporal, a situação resolvida por esta esfera de poder não poderá ser novamente averiguada.
Para que tenha aplicação ampla, a coisa julgada, que torna imutável e indiscutível a decisão transitada em julgado, precisa preencher alguns requisitos fundamentais, vejamos:
Decisão relacionada ao mérito e que tem eficácia plena apenas em relação ao dispositivo do julgado; mesmas partes, causa de pedir e pedido idênticos.
O fim primordial visado com o instituto da coisa julgada é impedir o manejo de ação completamente idêntica a uma em que já houve pronunciamento de mérito com trânsito em julgado, condicionado a presença das mesmas partes, mesma fundamentação e mesmo pedido. Não havendo esta correlação cumulativa (tríplice identidade), estaremos diante de um novo processo.
Como todo direito, a garantia da coisa julgada como estabilizadora das relações postas em juízo não é dotada de caráter absoluto, podendo sofrer mitigações, o que a doutrina há muito denomina “relativização da coisa julgada”. Esta possibilidade tem alicerce de índole superior, pois a alegação de tal imutabilidade não pode servir como manto protetor capaz de proteger ilegalidades aviltantes ou injustiças processuais, causadas com dolo ou culpa grave.
Decisão de mérito que atenta contra interesse público indisponível
Quando se litiga contra os entes federativos, dois tipos de situações podem ser ocasionadas: aquelas em que se discute apenas o interesse público primário (inerente a população), que não admite transação, e relativa ao interesse público secundário (ligados ao Estado como pessoa jurídica), que permite, em certas situações, que haja a realização de alguma espécie de acordo, geralmente em situações em que a Administração Pública atua sem as prerrogativas que lhe são inerentes, estando no mesmo patamar de um particular.
Em determinados casos um acordo ou transação realizada em âmbito judicial não poderá acarretar seus efeitos esperados, tendo em vista que, em regra, apenas direitos disponíveis aptos a referendar tais situações. Se o direito for indisponível, como, por exemplo, aqueles que envolvem a Fazenda Pública em Juízo utilizando-se de suas prerrogativas básicas, qualquer tipo de ato negocial que não traga respaldo ao interesse público, deverá ser considerado como inexistente ou nulo de pleno direito. Nesse sentido:
Ementa - AÇÃO RESCISÓRIA. ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO PARA DELEGADO DEPOLÍCIA DO ESTADO DE TOCANTINS. REINTEGRAÇÃO DECORRENTE DE DECISÃO JUDICIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ESTADUAL. OFENSA À AUTORIDADE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE DECLAROU A INCONSTITUCIONALIDADE DO EDITAL DO CONCURSO. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE.1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n.º 598-7/TO, declarou a inconstitucionalidade do certame público para o preenchimento do cargo de Delegado de Polícia do Estado de Tocantins, na Reclamação n.º 598/TO, expressamente desconstituiu o Termo de Acordo firmado entre o Estado e o SINDEPOL nos autos do Mandado de Segurança Coletivo nº 753/94, bem como sua homologação nos autos da Execução do Acórdão nº 1.500/95, por serem exorbitantes do julgado proferido na ADI nº 598-TO.2. Diante desse quadro, a decisão proferida no Mandado de Segurança n.º 753/94 que, em tese, embasaria a reintegração dos ora Autores, não resiste à anterior decisão proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, mostrando-se infundada a alegação de que o acórdão rescindendo ofende a coisa julgada, capaz de ensejar o cabimento da presente rescisória.3. Ação rescisória improcedente. Processo AR 3154 TO 2004/0108927-9.
Vejamos um exemplo hipotético para aclarar mais o entendimento: se um projeto de desapropriação de extensa área pública é tido como ilegal em sua totalidade, por órgãos de controle ou até mesmo pelo judiciário, em decorrência de ilegalidade aviltante ou desvio de finalidade, não poderá o ente político intentar ações individuais e celebrar acordo com os diversos impactados, pois estará utilizando-se de processo para obter algo ilícito de ponto de vista técnico e moral, contrariando princípios constitucionais como o da legalidade e moralidade.
Como já explanado, ordinariamente não se permite qualquer espécie de acordo quando se discute o interesse público em juízo, pois são indisponíveis, pertencendo a coletividade. Contudo, em certas situações, respeitando-se a legalidade estrita, poderá haver uma transação referendada pelo Poder Judiciário, pois em tese, estará sendo resguardado o próprio erário.
Seria o caso, por exemplo, de um acordo judicial que reconheça a existência de ato normativo superveniente que passou a disciplinar por completo a situação litigiosa. Por exemplo, com a vigência do Novo Código de Processo Civil, foi previsto de forma taxativa o direito a percepção de honorários sucubenciais aos Advogados Públicos. Todavia, tal disposição geral precisa de regulamentação em cada esfera governamental. Assim, muitos Governadores e Prefeitos não regulamentaram a situação, rendendo ações judiciais por parte destes servidores públicos. Se durante o andamento do litígio sobrevém a regulamentação até então ociosa, nada impede que as partes (ente público e servidores) solicitem ao judiciário a extinção da lide, podendo fazer concessões mútuas onde o interesse público e o das partes estarão resguardados.
Uma decisão judicial que reconhece um acordo realizado entre as partes, não aprecia o mérito no sentido do ponto de vista material, apenas ratifica uma regra estipulada pelas partes do processo. Sendo homologatória por natureza. Tal ato poderá ser atacado por ação anulatória ou declaratória de vício, com fundamento no § 4ª do art. 966 do Código de Processo Civil, caso haja ofensa gritante a interesses públicos de maior envergadura, como no caso do exemplo supracitado, envolvendo acordo em desapropriações consideradas ilegais.
A garantia a coisa julgada, assim como qualquer outro direito, sofre mitigações, não ostentando característica de dogma intransponível.