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A liberdade de escolha do consumidor e as necessidades artificiais fabricadas pela indústria cultural

Agenda 20/05/2017 às 01:54

O objetivo do trabalho foi investigar de que forma as necessidades artificiais de consumo limitam a liberdade de escolha do consumidor. Sustenta-se que o consumidor não possui liberdade de escolha, pois suas escolhas são viciadas por critérios de mercado.

INTRODUÇÃO

A liberdade inserida na relação de consumo não é absoluta. A liberdade é um princípio de direito privado que deve ser interpretado sob uma perspectiva relativa, ou seja, dentro de uma relação de consumo não há como conceber que o cidadão voluntariamente chegou à conclusão de que precisa consumir determinado bem ou serviço, ou que concorda com todos os termos de um contrato de adesão, por exemplo.

Nesta senda, inicialmente é feita a constatação de que todo consumidor é vulneravel por estar em uma condição economicamente desvantajosa em relação ao fornecedor e que também está sujeito à manipulação da industria cultural, que determina um estilo de vida marcado pelo ato de consumo.

Em seguida, buscou-se traçar o carater psicológico do consumidor marcado por uma negação de sua individualidade, o indivíduo ilusório fruto do modo de produção industrial da era do liberalismo burguês, para satisfação de pseudonecessidades forjadas pela sociedade de consumo.

Nesse cenário, podemos identificar a grande diversidade de produtos no mercado que aparentemente faz com que se tenha uma pluralidade e liberdade de escolha. É necessário que se compreenda que essa pluralidade e liberdade são questionáveis.

Mostrou-se que o fato do consumidor ter a opção de personalizar um bem entre tantos objetos diversificados não é suficiente para que possamos afirmar que há uma liberdade de escolha, porquanto essa escolha só ser exercida dentro do que lhe oferecem.


FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Inicialmente faz-se necessário observar que todo consumidor é vulnerável. A vulnerabilidade do consumidor justifica-se porque há um flagrante desequilíbrio econômico, uma vez que este consumidor não tem o controle e nem o poder de dispor dos meios de produção. Por este motivo, ele se submete a vontade dos titulares dos meios de produção. Por isso, pode-se falar que o consumidor não possui a liberdade de determinar o ciclo de produção.

Para que haja uma liberdade plena em qualquer relação jurídica são necessários dois atributos, segundo RIZZATTO NUNES (2011): Querer e poder. O que não ocorre em se tratando das relações de consumo, pois se o consumidor quiser gozar do serviço oferecido, deverá aderir os dizeres e disposições do contrato de adesão, por exemplo.

A premissa desse trabalho é a de que a liberdade de escolha do consumidor se relaciona com as necessidades criadas pela indústria cultural. Para tanto, entenda-se que a indústria cultural, resumidamente, é um sistema cuja finalidade é a de homogeneizar, adaptar e integrar as massas aos valores capitalistas de consumo, sendo imposta de cima para baixo.

Dentro dessa lógica de homogeneização, podemos identificar que o modo de produção das sociedades industriais foi o que gerou o indivíduo ilusório, a pseudoindividualidade ou o caráter fictício da subjetividade assumidos na era do liberalismo burguês com sua concepção de indivíduo como ser genérico, reforçada por um sistema político e jurídico amparados em um complexo de normas de estrutura geral, impessoal e abstrata que proporcionam um significado ideológico capaz de ocultar as reais desigualdades e diferenças entre os indivíduos.

O encobrimento ideológico presente na ideia de igualdade formal, na qual “todos os homens são iguais” oculta situações de ausência de igualdade, justiça e liberdades; por se tratar de uma igualdade formal e não material, apontando assim para o seguinte paradoxo: Ao mesmo tempo em que o liberalismo se projeta como garantidor dos direitos individuais, da liberdade e igualdade; nega a concretização real de tais valores quando apoia-se em representações ilusórias e abstratas sobre a ideia de indivíduo.

Em relação a esse indivíduo, o que percebemos por força da indústria cultural é que esse indivíduo substitui a sua individuação pelo mero esforço da imitação de padrões referenciais de conduta. Sob uma aparente liberdade, o indivíduo nega sua individualidade para seguir as tendências do universal.

Sobre essa substitução da da indivuação pela imitação, VERBICARO e VERBICARO (2015) tratam:

A substituição “imposta” do individual pelo padrão estereotipado e heroificado há, no entanto, de tornar-se insuportável aos homens que nunca conseguirão alcançar o modelo artificial e de aparência dos heróis do cinema ou das modelos de capa de revista, resultando em negação da subjetividade, frustração e infelicidade por não ajustarem-se os indivíduos aos estereótipos rigorosamente projetados pela indústria cultural e divulgados pelos meios publicitários, que acabaram por transformar-se em verdadeiro “elixir da vida”, com a repetição mecânica do produto cultural e seus slogans propagandísticos. (VERBICARO, Dennis, VERBICARO Loiane, 2015).

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Com a ideia de negação da individualidade, a identidade do ser humano torna-se maleável conforme as necessidades desenhadas pela sociedade de consumo, sendo ele próprio a mercadoria que alimenta esse continuo recomeço que é a força propulsora de tal sociedade.

Essas necessidades artificiais de consumo são regidas por critérios de mercado, que acabam por impor predileções e criar padrões de comportamentos uniformes que neutralizam o potencial crítico do consumidor. É importante esclarecer que essas necessidades são, na verdade, pseudonecessidades ou necessidades artificiais. Necessidades artificiais porque não se tratam de necessidades primárias inerentes ao ser humano, mas de desejos humanos que inexoravelmente devam ser renovados.

Nota-se que essas pseudonecessidades são absorvidas pelo individuo ao ponto no qual acabam por substituir necessidades primárias (comer, vestir e se comunicar, por exemplo). Ou seja, o individuo deixa de saciar essas necessidades primárias para que possa satisfazer essa necessidade artificial. Tem-se como exemplo, o indivíduo que muitas vezes deixa de comer para acumular dinheiro para adquirir um bem de consumo.

A vitória da economia autônoma deve ser ao mesmo tempo o seu fracasso. As forças que ela desencadeou suprimem a necessidade econômica que foi a base imutável das sociedades antigas. Quando ela a substitui pela necessidade do desenvolvimento econômico infinito, só pode estar substituindo a satisfação das primeiras necessidades humanas, sumariamente reconhecidas, por uma fabricação ininterrupta de pseudonecessidades de manutenção do seu reino. (DEBORD 2012, apud CATALAN E PITOL, 2016).

A automação industrial dos bens fabricados pela indústria cultural garantiu a grande diversidade de produtos existentes no mercado. Entretanto essa pluralidade de escolha não implica dizer que há liberdade do consumidor, pois o consumidor está tão somente fazendo uma escolha entre padrões de consumo pré-estabelecidos. LIPOVETSKY (2005) trata dessa independência de escolhas quando discorre sobre o que chama de “processo sistemático de personalização”. Para LIPOVETSKY (2005), o processo de personalização começa até mesmo a reorganizar a ordem da produção. Assim trata:

A vida sem imperativo categórico, a vida kit que pode ser modulada em função das motivações pessoais, a vida flexível na era das combinações, das opções e das fórmulas independentes é possível graças a uma oferta infinita; é assim que a sedução opera. (LIPOVETSKY, 2005)

Sobre essa infinidade de combinações e diversidade de bens disponíveis, SEVERIANO (2006) acredita que a padronização, tal como refletida pelos autores frankfurtianos, não parece extinta e sim camuflada pela grande diversidade de produtos existentes no mercado. Acredita ainda que a padronização alcança hoje o seu mais alto grau de sofisticação, pois não se encontra mais na homogeneização dos produtos, como à época das sociedades industriais da década de 60, mas na atitude compulsiva e generalizada de ter que consumir para só assim constituir-se como “indivíduo”.

Sobre o tema da liberdade, em grande escala, é impróprio falar que o consumidor age com “liberdade de escolha”. Escreve RIZZATTO NUNES:

Isso porque, como eles não tem acesso aos meios de produção, não é ele quem determina o quê nem como algo será produzido e levado ao mercado. As chamadas “escolhas” do consumidor, por isso, estão limitadas àquilo que é oferecido. São restritíssimas as chances de ele optar: pode, usando muito, escolher preço mais barato, condições de pagamento melhores etc., mas a restrição é dada pela própria condição material do mercado. (RIZZATTO, Nunes, 2011)

Portanto, podemos afirmar que a liberdade de escolha do consumidor aqui tratada pode ser definida tão somente como a possível opção do consumidor para adquirir produtos e serviços. Mesmo quando essa escolha possa ser formada mediante motivações pessoais, mediante personalização do indivíduo, não podemos falar em ampla liberdade de escolha, uma vez que o consumidor não tem acesso e nem determina o ciclo de produção. Essa personalização é feita dentro das opções de personalização que lhe é oferecida.


considerações finais

Como tratado nesse trabalho, todo consumidor é vulnerável, por mais esclarecido que seja, pois como visto é incapaz de influenciar no modo de produção do bem. O consumidor não está em pé de igualdade com o fornecedor, desmitificando assim, a promessa do liberalismo de igualdade universal. É necessário, portanto, criar através do Direito uma aproximação a este conceito de igualdade, com a criação de desigualdades jurídicas e reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor para uma tentativa de balancear a relação jurídica fornecedor versus consumidor.

Com a análise aqui realizada, percebeu-se que as necessidades artificiais criadas pela indústria cultural que objetiva a massificação e padronização do consumo tolhem a liberdade do consumidor que se vê limitado em consumir aqueles objetos já determinados como forma de satisfação dos desejos humanos.

Portanto, chega-se à conclusão de que não há liberdade de escolha do consumidor, há, mormente, uma independência de escolha entre as necessidades artificiais fabricadas pela indústria de consumo. Por fim, essa não-liberdade do consumidor é reforçada pelo fato de que do ponto de vista econômico, o consumidor é vulnerável, incapaz, assim, de influenciar no ciclo de produção do bem de consumo.


referências

ARRUDA, José Maria. Paradoxos da democracia no liberalismo: Crítica à concepção liberal de Estado de Direito a partir de Carl Schmitt. Periódicos UFPB: 2011. Disponível em <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/problemata/article/view/10371>. Acesso em 27.04.2017.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BIONI, Bruno Ricardo. Superendividamento: Um Fenômeno Socioeconômico Decorrente da Difusão do Consumo e a sua Análise à Luz das Evoluções Legislativas Americanas e Francesas Frente ao PL 283/2012. Revista de Direito do Consumidor. vol. 99. Ano 24. P. 371-408. São Paulo: Ed. RT, maio-jun: 2015.

CATALAN, Marcos Jorge; PITOL, Yasmine Uequed. Primeiras linhas acerca do tratamento jurídico do assédio de consumo no Brasil. In: V ENCONTRO INTERNACIONAL DO CONPEDI MONTEVIDÉU – URUGUAI. Direito, globalização e responsabilidade nas relações de consumo. Org. CONPEDI. 2016. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/publicacoes/9105o6b2/q6fgxq0m/m465t81DMy5gXtDr.pdf>. Acesso em: 25.04.2017.

LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Manole: 2005.

NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

SEVERIANO, Maria de Fátima. Pseudo-individuação e homogeneização na cultura do consumo: reflexões críticas sobre as subjetividades contemporâneas na publicidade. 2006. Disponível em: <http://www.revispsi.uerj.br/v6n2/artigos/html/v6n2a09.html>. Acesso em: 26.04.2017.

VERBICARO, Dennis. VERBICARO, Loiane Prado. A indústria cultural e o caráter fictício da individualidade na definição do conceito de consumidor – comunidade global. Revista do Direito do Consumidor: 2015.

Sobre o autor
Renato Bismarck Feio Farias

Membro da Clínica de Combate e Prevenção ao Superendividamento do CESUPA. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O presente trabalho surgiu de debates no grupo de pesquisa "Consumo e Cidadania", que envolve as instituições UFPA e CESUPA, tendo reconhecimento CNPQ.

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