RESUMO:O estudo do Direito nos processos falimentares e o abrangente reflexo nas relações sociais, as atitudes tomadas para escapar da falência e as formas legais e ilegais que empresários se utilizam para preservar seus patrimônios nos motivam a este estudo. Especialmente sobre a utilização de transferências de bens de pessoa física para pessoa jurídica com intento de protegê-los de possíveis sequestros para pagamento de dívidas, e como este quadro pode ser revertido pelo uso moderno de um instituto já existente no código brasileiro.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi criada com a finalidade de coibir fraudes realizadas pela utilização da autonomia patrimonial abusiva que a sociedade personificada possui. Este instituto é utilizado como instrumento para responsabilizar o sócio por dívida contraída ante a sociedade.
Inversamente, a desconsideração da personalidade jurídica ocorre quando os bens da empresa respondem por atos praticados pelos sócios. As questões que nos cabe debater são os limites estabelecidos pela lei, as possibilidades de utilização desse dispositivo e principalmente sua aplicação nos processos falimentares de pessoa jurídica.
1 INTRODUÇÃO
O estudo do Direito civil tem o condão de discutir conceitos, pensamentos e teorias que melhorem as relações sociais e comerciais das pessoas; analisam e explicam como podem ser aprimoradas essas relações e ainda indicam formas de sanções para inibir que um se aproveite de outrem, contaminando essa necessária relação.
Quando várias pessoas identificam algum interesse em comum e decidem se unirem para alcançá-lo, constituem uma sociedade, que para possuírem direitos e obrigações o código civil brasileiro permitiu a constituição de uma personalidade jurídica distinta dos seus fundadores.
Entretanto, para que seja resguardando o direito de terceiro, o mesmo código permite a desconstituição dessa personalidade, chamado de desconsideração da pessoa jurídica. Indo além nessa preservação de direito o código civil permitiu, mais recentemente que essa desconsideração se desse de forma inversa, ou seja, diferente de alcançar o patrimônio do empresário para resguardar o direito de outro, busca exatamente o patrimônio da pessoa jurídica para solver dívida do empresário.
2 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Segundo Maria Helena Diniz (2012), “o homem, como ser social, se une a outros para atingir seus objetivos”. Mas, para que tenham capacidade jurídica e possam ter direitos e obrigações é necessário que esta união seja personificada juridicamente, consolidando sua existência no mundo jurídico.
A pessoa jurídica é autônoma, capaz e detentora de direitos e obrigações, e pode fazer negócios de forma independente. Não se confunde com as pessoas naturais que a compõem, inclusive seu patrimônio. Entretanto, quanto existe a utilização dessa entidade para fraudar, enganar ou tirar proveito de outros indivíduos, o código brasileiro prevê a desconsideração dessa personalidade para resguardar o direitos daqueles que foram lesados.
2.1 Conceito
Em decorrência dessa autonomia da pessoa jurídica, as obrigações que ela assumir não serão cobradas dos membros, pelo menos em um primeiro momento. Isto ocorre porque são sujeitos de direito independentes e autônomos. Como bem nos exemplifica Fábio Ulhôa Coelho:
Se pertenço a um clube (associação), sou devedor da contribuição destinada à sua manutenção. Se não a pago, posso ser cobrado, inclusive judicialmente, pelo clube. Mas nenhum credor do clube pode acionar-me para receber seu crédito. Como não se confundem a pessoa jurídica da associação e as pessoas de seus membros, os associados, o credor do clube não é meu credor. Meu patrimônio não pode ser objeto de constrição judicial para atender obrigação que não é minha, mas de outra pessoa, a pessoa jurídica do clube. O instituto da pessoa jurídica é uma técnica de separação patrimonial. Os membros dela não são os titulares dos direitos e obrigações imputados à pessoa jurídica. Tais direitos e obrigações formam um patrimônio distinto do correspondente aos direitos e obrigações imputados a cada membro da pessoa jurídica.
Percebe-se que as pessoas que integram o clube não se confundem com a pessoa jurídica, o próprio clube, consequência do princípio da autonomia. Ocorre que por este mesmo motivo, pessoas físicas se utilizavam das jurídicas para cometerem fraudes, abusos e causarem prejuízos a terceiros e ao sistemas socioeconômico em geral, dando ensejo a necessidade de criação de um instituto que aperfeiçoasse a personalidade jurídica. Fábio Ulhôa descreve seu início com uma “sistematização deu-se em trabalho dos anos 1950 do jurista alemão Rolf Serick (1955)”. Essa sistematização defendia principalmente a possibilidade do juiz ignorar autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, “sempre que for manipulada para a realização de uma fraude,” e atingir os bens particulares dos responsáveis pelos atos que geraram o prejuízo.
O Código Civil, inclusive, só autoriza essa desconsideração se houver desvio de finalidade, com intuito de lesar sócios, credores, Estado e particulares, mediante abuso de direito. Pois a finalidade maior deste instituto é coibir fraudes de sócios que se escodam atrás dela, como escudo, razão pela qual Ulhôa a define como a retirada do véu. Em suas palavras:
Efetiva-se com isso a possibilidade de ser descaracterizada a pessoa jurídica, retirando dela o véu de sua personalidade, nas circunstâncias previstas, do desvio de finalidade, ou confusão patrimonial, mas quando sobrevier pedido da parte interessada ou do próprio Ministério Público.
2.2 Elementos e Características
É importante perceber que a desconsideração da personalidade jurídica não ocorre a qualquer tempo e situação pois, à luz do código deve o juiz observar alguns requisitos que caracterizam a necessidade deste instituto. Serve ele antes de tudo para coibir atos aparentemente lícito que ao fim vislumbra a prática de atos ilícitos ou abusivos. Além da intenção de impedir tais atos e, não sendo possível, resguardar direito de terceiro alcançando o patrimônio dos responsáveis pelo abuso ou fraude.
A confusão patrimonial ocorre quando não há suficiente distinção, no plano patrimonial, entre pessoas a sociedade. Quando uma paga as dívidas da outra, ou recebe os créditos, ou então quando os bens de uma pessoa estão registrado em nome da outra.
As situações que a lei autoriza essa desconsideração são excepcionais, e para Carlos Roberto Gonçalves, “mesmo nessas situações, porém, a responsabilidade dos membros da pessoa jurídica é sempre subsidiária; ou seja, pressupõe o prévio exaurimento dos recursos patrimoniais da pessoa jurídica”.
3 APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Conforme dito, o princípio da desconsideração da personalidade jurídica foi positivado através de algumas leis a partir de 1990 com o código de defesa do consumidor. No processo falimentar isto ocorre como acontecia como no período anterior a esta positivação, pois embora a lei que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária seja de 2005 o texto, assim como o Código Civil, não se utiliza do termo “desconsideração da personalidade jurídica”, a saber o artigo 82, da lei 11.101/05:
Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.
§ 1o Prescreverá em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência, a ação de responsabilização prevista no caput deste artigo.
§ 2o O juiz poderá, de ofício ou mediante requerimento das partes interessadas, ordenar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível com o dano provocado, até o julgamento da ação de responsabilização.
3.2 Da Doutrina
Para Fábio Ulhôa a criação deste instituto serviu para “evitar a manipulação fraudulenta da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas”. E, para que isso fosse possível era necessário que se desenvolvesse uma teoria que melhorasse a sua aplicação que seria denominada de desconsideração da personalidade jurídica.
Carlos Roberto Gonçalves esclarece que abusos eram cometidos em nome da pessoa jurídica e isso trouxe insegurança às relações comerciais, e que a reação a esses abusos, que ocorreu em diversos países, deu origem à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, “que recebeu o nome de disregard doctrine ou disregard of legal entity, no direito anglo-americano; abus de la notion de personnalité sociale, no direito francês; teoria do superamento della personalità giuridica, na doutrina italiana; teoria da penetração — Durchgriff der juristischen Personen, na doutrina alemã.”
Para Gonçalves esta teoria permite ao juiz desconsiderar a existência das pessoas jurídicas distinta dos seus membros, em casos de fraude e de má-fé, inclusive anulando os efeitos do princípio da autonomia, exatamente para “atingir e vincular os bens particulares dos sócios”. A isto os doutrinadores chamam de erguer o véu da personalidade jurídica.
Faz ainda importante distinção entre a despersonalização de desconsideração da personalidade jurídica. Afirma que a despersonalização “acarreta a dissolução da pessoa jurídica ou a cassação da autorização para seu funcionamento”, enquanto a desconsideração mantem o “princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva distinta da pessoa de seus sócios ou componentes”, ou seja a pessoa jurídica não se estingue, mas afasta-se provisoriamente essa distinção e tão somente para o caso concreto a fim de resolver questões comprovadamente fraudulentas.
3.1 A partir do Código
A legislação brasileira, até o Código de Defesa do Consumidor em 1990, não havia tido nenhum diploma que apresentasse esse instituto expressamente, o que obrigava aos juízes se valerem de analogia para tentar resolver os conflitos surgidos pela mal uso da personalidade jurídica, conforme Carlos Roberto Gonçalves:
Como no Brasil não havia nenhuma lei que expressamente autorizasse a aplicação de tal teoria entre nós, valiam-se os tribunais, para aplicá-la, analogicamente, da regra do art. 135 do Código Tributário Nacional, que responsabiliza pessoalmente os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado por créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com “excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”.
A partir de então, outros código incluíram esta possibilidade para melhor atender a necessidade de responsabilizar o indivíduo que tenta se ocultar sobre o véu da personalidade jurídica.
O artigo 28 do CDC foi o primeiro a autorizar o juiz a desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1.º (Vetado.)
§ 2.º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.
§ 3.º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.
§ 4.º As sociedades coligadas só responderão por culpa.
§ 5.º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Outra lei que também permite expressamente a utilização deste instituto é a lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, conforme seu artigo 4º: “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.
Entretanto, para Gonçalves, das regras em geral destaca-se o artigo 50 do código civil de 2002, isto porque “dispõe sobre a repressão do uso indevido da personalidade jurídica, quando esta for desviada de seus objetivos socioeconômicos para a prática de atos ilícitos, ou abusivos”.
Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. CC/02.
Porém, faz uma crítica sobre isso diz que o dispositivo não utiliza a expressão “desconsideração da personalidade jurídica”, mas conclui dizendo que “a redação original do Projeto de Código Civil e as emendas apresentadas demonstram que a intenção do legislador era a de incorporá-la ao nosso direito”.
A respeito da desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar o instituto que subsidiaria a possibilidade de sua utilização está disposto no artigo 82 da lei 11.102/05. Nesses casos, para Ulhôa são os atos do poder Judiciário:
Em execução individual contra sociedade empresária, desconsidera a personalidade jurídica da executada, para responsabilizar os seus sócios, e, em seguida, é decretada a falência desta, o juiz da execução deve atender ao pedido da massa falida de suspender o feito individual e colocar à disposição do juízo universal os bens particulares penhorados. Assim como a instauração da execução concursal da sociedade empresária importa a suspensão das execuções individuais, para que todos os credores possam ter o tratamento paritário a que têm direito, também não devem prosseguir as execuções movidas contra os sócios dela, quando desconsiderada a personalidade jurídica da falida. Reforço que a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade empresária somente é possível quando presentes os requisitos desta medida excepcional. Quer dizer, a suspensão das execuções individuais contra os sócios não é decorrência de toda e qualquer falência, mas apenas daquela em que se justificou especificamente a desconsideração da autonomia patrimonial da falida.