3. A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
A funcionalização dos institutos jurídicos configura uma matéria indispensável numa perspectiva constitucional de releitura do Direito Civil e, conseqüentemente, dos contratos em geral. Para a melhor compreensão deste fenômeno, importante se faz uma análise de suas razões de ser, de suas origens.
A partir Renascimento, com o advento da progressiva positivação do Direito pelo Estado, os juristas europeus, com notável exceção dos ingleses, passaram a exercer a função social de explicar o Direito vigente à época, mas sem o intuito de transformá-lo e sim com vistas à sua conservação.
Contudo, posteriormente à segunda metade do século XIX, uma nova visão da realidade começa a ser delineada. Segundo Karl LARENZ, Jhering, em seu livro Der Zweck in Recht, ou El fin en el Derecho, possui o mérito histórico, muito antes dos demais pensadores do Direito de sua geração, de ter percebido as insuficiências da pandectista e ter analisado esta tendo em vista os problemas da sua época, deslocando o eixo do problema do legislador, como indivíduo, para a sociedade, como grandeza determinante.
Nesta obra que permaneceu inacabada, Jhering argumenta que a "jurisprudência dos conceitos", que tinha a finalidade de discutir a norma jurídica por ela mesma, não mais servia, eis que cada norma jurídica deveria conter um conteúdo determinado, em função da sociedade, em seu benefício, devendo esta ser a razão de ser da norma jurídica.
Rudolf von JHERING afirma que não se precisa ser nenhum profeta para prever que a concepção social do Direito Privado substituirá, pouco a pouco, a individualista. Chegará o tempo em que a sociedade não mais reconhecerá à pessoa o direito de simplesmente acumular a maior quantidade de riquezas possíveis, de reter para si terras capazes de alimentar milhares de homens, como não se permite o direito de vida e morte que tinham os pater familias no Direito Romano.
Na mesma esteira, Otto von GIERKE elabora obra intitulada La Función Social Del Derecho Privado, apresentando-se como apologista de reformas sociais, criticando fortemente o Projeto de Código Civil Alemão que estava sendo elaborado. A crítica se deu particularmente contra o caráter individualista, afirmou, entre outras coisas, que a liberdade ilimitada de contratar se arruína em si mesma, por consistir em arma formidável nas mãos do forte contra o débil, configurando-se em um forte meio de opressão social.
Contudo, "a função social do direito privado preconizada por Jhering permaneceu nas páginas dos livros e revistas doutrinárias, não chegando a sensibilizar o legislador do Direito Civil.", o que deixa nítida a lentidão com que se produzem as mudanças jurídicas.
A partir da experiência das duas Grandes Guerras Mundiais, que obteve-se um importante golpe contra o individualismo exacerbado. Os juristas perceberam que os problemas, provenientes das relações econômicas, não importavam apenas às pessoas individualmente, mas também e fundamentalmente ao Estado e às comunidades.
Percebeu-se que o princípio da igualdade de todos perante a lei restava vazio, por apresentar-se apenas como uma igualdade formal, igualdade "no papel". No campo material, as desigualdades sociais se mostravam cada vez mais gritantes e profundas. A liberdade descomedida levou segmentos sociais mais carentes de recursos, sem poder de barganha, a acentuados desníveis econômicos, por vezes chegando à miséria.
Desta forma, começou-se a discutir um direito de cunho mais social, visando à criação de regras que efetivamente protegessem a parte mais fraca da relação contratual. Para que isso ocorresse era fundamental a existência de uma força superior a de todos os indivíduos isoladamente, que veio a ser a força do Estado, que passou a interferir nas relações privadas, com o intuito de proteger a parte mais fraca – a parte hipossuficiente.
Com a organização da sociedade civil e a pressão por ela formada junto ao poder público diante das abusividades cometidas por empregadores nas relações de prestação de serviços e de fornecedores nas relações de venda de bens fabris, as normas jurídicas de ordem pública foram promulgadas com o desiderato de minimizar o desequilíbrio contratual existente entre o predisponente e o aderente.
[...]
Após o período de guerras mundiais e a elaboração de normas internacionais que culminaram com a Declaração da Organização das Nações Unidas – ONU, de 1948, o pensamento jurídico se perfilou no sentido de se conceder uma maior relevância à pessoa na relação jurídica. As liberdades públicas foram ampliadas, obtendo-se instrumentos mais eficientes de tutela da pessoa e de seus interesses extrapatrimoniais. As normas jurídicas de ordem pública proliferaram porque as relações intersubjetivas ficaram cada vez mais heterogêneas, ante o crescimento quantitativo das contratações, inclusive dos chamados negócios jurídicos inominados.
O contrato, em decorrência destas transformações sociais, altera-se para se adequar às exigências desta nova realidade, passando "de espaço reservado e protegido pelo direito para a livre e soberana manifestação das vontades das partes, para ser um instrumento jurídico mais social, controlado e submetido a uma série de imposições, mais eqüitativas".
O egoísmo e os interesses individuais têm de ser colocados a serviço da coletividade, pois o egoísmo que conhece somente a si mesmo, que só busca o próprio bem, não construirá o mundo, porque toda realização pessoal, como o é o contrato, tem uma missão a cumprir que é a concretização segundo o espírito da instituição que governa a sociedade. Em uma sociedade organizada, o exercício de direitos subjetivos não deve sair da função a que correspondem; do contrário, seu titular os desvia de seu destino, cometendo um abuso de direito.
No Estado Social, passou a existir uma preocupação maior com o aspecto coletivo, com o interesse da sociedade, atribuindo-se menor relevância a concepção de contrato como um mero instrumento de realização individual. Nesta medida que se pode afirmar que o contrato passou a exercer uma função realmente social.
A doutrina da função social emerge, assim, como uma dessas matrizes, importando em limitar institutos de conformação nitidamente individualistas, de modo a atender os ditames do interesse coletivo, acima daqueles do interesse particular, e, importando, ainda em igualar os sujeitos de direito, de modo que a liberdade que a cada um deles cabe, seja igual para todos.
O modelo clássico de contrato, de cunho individualista e voluntarista, dá lugar a um modelo novo, que privilegia a concretização material de princípios e valores constitucionais voltados, em uma última análise, à efetivação da dignidade da pessoa humana, rompendo-se com aquela idéia de ser o contrato apenas um instrumento da realização da autonomia da vontade privada, para desenvolver uma função social.
O apego exagerado à declaração de vontade, o tomar o indivíduo em si e por si, como se fosse uma entidade que pudesse viver com auto-suficiência, é substituído pela pessoa encadeada à comunidade em que atua, confundindo-se indivíduo e meio social. Os fatores internos, de cada um, já não podem ser materializados sem que seja pensada a finalidade social do ato manifestado.
Para Teresa NEGREIROS, o princípio da função social do contrato encontra respaldo constitucional no princípio da solidariedade, ao exigir que contratantes e terceiros cooperem entre si, respeitando situações jurídicas anteriormente já constituídas, ainda que pendentes de eficácia real, mas desde que sejam conhecidas as existências das mesmas pelas pessoas envolvidas.
[...] A sobrevivência do homem sempre dependeu da coexistência no amplo cenário da sociedade humana. A dimensão social do homem impõe que o direito proteja o indivíduo também no contratar, quando ele adquire bens para o seu desenvolvimento e manutenção pessoal ou de sua família. O homem é um ser único, mas que se apresenta em várias dimensões, a saber: a materialidade, a espiritualidade, a individualidade e a sociabilidade. A presença de cada uma delas não se dá de forma isolada. Antes, exige interação completa, um entrelaçamento entre os quatro aspectos mencionados, necessários para que o ser humano cresça e se desenvolva em harmonia, tendo a compreensão dos demais e do ordenamento jurídico em particular de que o perfeito equilíbrio está no respeito a cada uma das extensões do ser do homem.[...]
Segundo Antônio Junqueira AZEVEDO, a noção de função social do contrato condiz com a de um preceito que se destina a integrar os contratos em uma ordem social, visando impedir tanto aqueles que causam prejuízo à coletividade quanto os que lesam pessoas indeterminadas.
[...] A idéia de função social do contrato está claramente determinada pela Constituição, o fixar como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV); essa disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa asserção, por força da Constituição, faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro [...]
Necessária se faz uma correlação entre os princípios da função social da propriedade e do contrato, levando-se em conta que tanto a propriedade como o contrato, em suas formas originais e clássicas, se manifestaram com exacerbado individualismo e com a idéia de intangibilidade.
[...] uma vez que o contrato tem, entre outras funções, a de instrumentalizar a aquisição da propriedade. Se a esta não é mais reconhecido o caráter absoluto e sagrado, a condição de direito natural e inviolável do indivíduo, correlatamente ao contrato também inflete o cometimento - ou o reconhecimento – de desempenhar função que transpassa a esfera dos meros interesses individuais.
Foi importante a profunda repercussão que alcançou o princípio da função social da propriedade, através do fenômeno da funcionalidade condicionadora de seu uso. Neste ponto, importante se faz a atenção dos juristas e legisladores para compreenderem que não é apenas esse instituto que possui uma função social a cumprir, mas sim que este princípio projeta-se a outros institutos de Direito Privado, condicionando-os e impregnando-os em suas essências.
Igualmente indubitável é, no entanto, também que a nossa ordem jurídica (a constituição econômica da economia social de mercado, em oposição à sociedade liberal de empresários) atribui ao mesmo tempo ao contrato, aos direitos patrimoniais, à propriedade sobre o solo, o capital e aos meios de produção e a constituição de associações de natureza econômica uma função social global – eles são concebidos como meios de partilha justa dos bens, de uma constituição patrimonial justa e como uma garantia de existência .
Neste sentido, são as palavras de Arnoldo WALD, ao concluir que "tendo a palavra propriedade uma conceituação ampla, o mesmo princípio haveria de ser aplicado aos direitos de crédito, ou seja, às obrigações e, conseqüentemente, aos contratos".
A aplicação do interesse coletivo de uma propriedade é o motivo pelo qual se emprega a mesma idéia para o contrato entre particulares. Todavia, quanto à propriedade, não se pode olvidar estar ela inserida em quadro de indefinição dos sujeitos com os quais se relaciona o proprietário, sendo ordinário ao pensamento jurídico a abstração da sua natureza erga omnes.
A idéia do coletivo proprietário em oposição ao individual proprietário não é criação da doutrina, eis que, só para citar a atual constituição, segundo o seu art. 186, e seus incs. I a IV,"(...) condiciona a fruição individual do proprietário ao atendimento dos múltiplos interesses não proprietários" impondo"(...) a utilização racional das reservas naturais, as relações de trabalho derivadas da situação proprietária, o bem-estar desses mesmos trabalhadores,(...)". A propriedade urbana segue a mesma linha de preocupação com o coletivo, ao pôr em relevo a ordenação da cidade e o seu plano diretor (art. 182,§ 2°).
Ao contrato, porém, parece não se ajustar muito bem a concepção coletiva, especialmente se encarada do ponto de vista da relação jurídica de um direito subjetivo obrigacional do credor frente a um dever jurídico do devedor. Os atores da relação jurídica obrigacional são conhecidos, remontando esta ciência subjetiva ao princípio da relatividade dos efeitos do contrato.
O que se revela, nesse passo, é a mitigação do princípio da relatividade dos efeitos do contrato, consagrado em nosso sistema contratual, mas que se encontra em xeque, na sua perspectiva dogmática, especialmente em relações que tocam o mercado. É um fenômeno das relações contratuais de massa. Assim, o sentido do interesse coletivo na relação contratual interprivados se torna mais evidente naquelas que trazem implicações ao mercado relevante, e, de outra banda, notadamente esmaecido, na medida em que se defronta com um contrato de efeitos restritos às partes. Só o caso concreto poderá elucidar tal conotação, sendo inviável, a priori, colorir a relação jurídica negocial com o interesse coletivo.
Pelo princípio tradicional da relatividade dos contratos, entende-se que o contrato produz efeitos somente em relação aos contratantes, ou seja, somente o patrimônio das partes poderia ser afetado com o ajuste firmado, haja vista que os seus efeitos não poderiam atingir terceiros, tratando-se de res inter alios acta. Somente em regime de exceção poderia se atingir bens de terceiros, como, por exemplo, as estipulações em favor de outra pessoa.
O princípio da relatividade dos efeitos do contrato, num cenário em que a vontade ocupa o centro natural de todas as atenções, traduz um dos mais importantes corolários da concepção voluntarista do contrato. Não surpreendendo, portanto, que os conceitos de "parte" e de "terceiro" sejam também eles deduzidos a partir da referência à vontade: é "parte" do contrato aquele cuja vontade deu origem ao vínculo contratual; é "terceiro" aquele cuja vontade, pelo contrário, é um elemento estranho à formação do contrato em causa [...].
É possível identificar duas ordens de problemas cujas soluções questionam a aplicação do princípio da relatividade dos contratos: o primeiro seria a posição do terceiro como vítima de um dano consecutivo ao inadimplemento de uma obrigação contratual, da qual não tenha participado como parte; e, o segundo, comportaria a posição da parte credora na relação contratual frente a terceiro que colabora para o inadimplemento da obrigação assumida pelo co-contratante devedor no contrato.
Constata-se que, seja como vítima, seja como ofensor, a figura do terceiro implica em uma re-análise do princípio da relatividade dos efeitos do contrato à luz da funcionalização do mesmo.
Através do estudo da função social dos contratos, nota-se um esvaziamento do princípio da relatividade dos contratos, pois o contrato "passa a ser entendido como ‘operação econômica distributiva’ à medida que seus efeitos econômicos são evidenciados perante toda a sociedade".
[...] o princípio da função social encontra fundamento constitucional no princípio da solidariedade, a exigir que os contratantes e terceiros colaborem entre em si, respeitando as situações jurídicas anteriormente constituídas, ainda que as mesmas não sejam providas de eficácia real, mas desde que a sua prévia existência seja conhecida pelas pessoas implicadas. Numa sociedade que o constituinte quer mais solidária, não deve ser admitido que, sob o pretexto de que o direito de crédito é um direito relativo, possa tal direito ser desrespeitado por terceiros, que argumentam não ter consentido para a sua criação.
Para Paulo NALIN, funcionalizar, na perspectiva instituída pela Constituição Federal de 1988, importa em
[...] oxigenar as bases (estruturas) fundamentais do Direito com elementos externos à sua própria ciência. Sociologia, Filosofia, Economia, Antropologia, Biologia, Psicanálise, História e especialmente a Ética, acabam, neste prisma interdisciplinar, se revelando como instrumentos de análise do Direito em face de sua função, com o objetivo de atender às respostas da sociedade, em favor de uma ordem jurídica e social mais justa. É romper com a auto-suficiência do Direito, hermético em sua estrutura e tecnicismo, outrora mais preocupado com os aspectos formais das regras, do princípio e do instituto, que com sua eficácia social. Por isso, a função perseguida é social.
Desta forma, a noção de função social do contrato convida o intérprete a deixar de lado a leitura do Direito Civil sob a ótica clássica, baseada na doutrina voluntarista, e a buscar valores sociais existenciais do homem, sempre tendo em vista a realização da dignidade da pessoa humana. Neste contexto, "é a função social do contrato que torna o contrato um fenômeno transcendente dos interesses dos contratantes individualmente considerados [...]".
Segundo Eduardo Sens dos SANTOS, a função social do contrato requer dois elementos, ou seja, para poder se dizer que um contrato cumpre a sua função social são necessários dois requisitos: um interno e um externo.
O primeiro deles é a adequada ponderação entre os três princípios fundamentais de direito contratual: a autonomia privada, a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual. Sem que estejam bem balanceados esses três princípios na relação contratual não se pode dizer que o contrato cumpriu a sua função social, pois será mera imposição de uma parte; ou então será um contrato abusivo e desleal, quando faltar observância ao princípio da boa-fé objetiva; ou será um contrato injusto quando não atentar para o princípio do equilíbrio contratual.
Mas, todos estes princípios têm, eminentemente, uma relação com o conteúdo do contrato, ou seja, com a parte interna do acordo de vontades e que diz respeito, na maioria dos casos, apenas ao interesse privado.
Para que se conceba um conceito adequado de função social do contrato é preciso que se busque também um elemento externo ao contrato. Por isso não basta apenas aquela relação de proporcionalidade entre os princípios. É necessário que com o contrato se atinja o bem comum.
E o bem comum, para se dar uma breve explicação, não pode ser entendido como o bem somente dos indivíduos, tampouco como o bem somente do todo, deve ser visto como o bem do todo e o bem dos indivíduos.
Em sentido semelhante é o pensar de Paulo NALIN, segundo o qual a função social divide-se em: intrínseca e extrínseca. Sendo a primeira relativa à observância dos princípios da igualdade material, eqüidade e boa-fé objetiva pelos contratantes, todos decorrentes da cláusula constitucional da solidariedade. Já a segunda, se ocuparia das repercussões do contrato no campo das relações sociais, tendo em vista as repercussões do contrato a titulares outros que não somente aqueles imediatamente envolvidos na relação de crédito e débito.
O Código Civil de 2002 estabelece no seu art. 421 que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". Desta maneira, percebe-se que, em verdade, se funcionalizou a liberdade contratual e não o contrato em si, "pondo em nível de condicionante (note-se não se tratar de condição sine qua non) o exercício da liberdade de contratar (princípio geral para os contratos) ao que o Código denomina de razão e limites da função social".
A função social do contrato, conforme Eduardo Sens dos SANTOS, não se apresenta como uma inovação, uma criação do novo Código Civil Brasileiro, "mesmo porque a Constituição já a previa junto à função social da propriedade. Ao contrário, como princípio que é, existe independentemente de lei e dispensa referência expressa [...]".
Em verdade, após a Constituição Federal de 1988 é que o núcleo do contrato passa a residir "na solidariedade e a sua causa codivide espaço entre interesses patrimoniais inerentes ao contrato, enquanto instrumento de circulação de riquezas, e os interesses sociais". É no texto constitucional que se localiza o princípio da função social do contrato, ao conformar, no art. 170, caput, a livre iniciativa à justiça social.
O valor da justiça social, expresso no Texto fundamental, no sentido e nos limites antes traçados, há de incidir no direito civil contribuindo, em sede interpretativa, para individuar o conteúdo específico que, concretamente, devem assumir as cláusulas gerais das quais é cravejada a legislação: da eqüidade à lealdade (correttezza), do estado de necessidade à lesão (stato di bisogno) e à causa não imputável, da diligência e boa-fé, etc. O preceito de igualdade poderá incidir sobre a individuação do conteúdo das mesmas cláusulas gerais que contribuem para a definição dos institutos fundamentais do direito civil, como a "função social" para a propriedade e a "utilidade social" para a iniciativa econômica privada, de maneira a realizar uma eqüitativa harmonização entre o interesse individual e aquele geral.
A teoria geral dos contratos passou a ter como base a noção de eqüidade, boa-fé e segurança, que concretiza a chamada socialização da teoria contratual. Funcionalizar o contrato implica, sobretudo, em atribuir ao instituto jurídico uma utilidade ou impor-lhe um papel social, "[...] atinente à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades culturais e materiais [...]".
[...] a nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância [...]
Cabe indagar quais são as conseqüências da inobservância do princípio da função social do contrato para efeitos jurídicos, tendo e vista a ausência de disposição legal a respeito disso.
O contrato que não cumpre a sua função social, em um primeiro momento, como negócio jurídico já foi reconhecido por meio da valoração social, gera efeitos jurídicos (atributivos, circulatórios e existenciais), de modo a ter suplantado o estrato da inexistência.Todavia, os efeitos que proporciona acabam sendo nocivos aos operadores contratuais, ou, ao menos, a uma das partes contratantes ou, ainda, à coletividade, esquadrinhando-se no campo da invalidade jurídica (nulidade ou anulabilidade).
[...]
A nulidade se dirige à salvaguarda de valores superiores tutelando interesses gerais, ao passo que a anulabilidade se dirige à proteção dos interesses individuais das partes.
[...]
Surge, assim, a necessidade de se buscar no seio da doutrina mais especializada, uma solução que se mostre adequada e possibilite que se conclua pela nulidade do negócio contratual que escapa de sua função social. A resposta que se afigura mais adequada é o reconhecimento da nulidade virtual, como uma hipótese aceitável no contexto da teoria da nulidades.
Apesar da imprecisão do conceito de função social do contrato, sabe-se aberto a variações interpretativas frente a um caso concreto.
O Centro de Estudos Judiciários do Conselho Federal de Justiça Federal, realizou a edição de enunciados referentemente a possíveis interpretações do novo Código Civil. No tocante ao art. 421 visualizam-se as seguintes interpretações:
21 - Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito;
22 - Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas;
23 – Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.
Da leitura dos enunciados acima se pode perceber o reconhecimento pela comunidade jurídica, da importância da função social do contrato refletida como uma cláusula de caráter geral, que gera efeitos de preservação e efetividade do cumprimento de princípios gerais do direito, levando à conservação do contrato e da justiça, eis que propicia a redução do alcance da autonomia da vontade diante de interesses individuais e de terceiros.
Não obstante, a aplicabilidade da função social dos contratos ainda tem se mostrado escassa na jurisprudência. No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul percebe-se a utilização da função social dos contratos, embora sua aplicabilidade, num contexto geral, ainda não veio a se efetivar com a abrangência que este princípio deverá alcançar no processo evolutivo do pensamento civil contemporâneo.
EMBARGOS À EXECUÇÃO. CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO E CONTRATO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULA CONTRATUAL. INCOMPATIBILIDADE COM OS PRINCÍPIOS GERAIS DA BOA-FÉ E DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.
1. Preliminar de cerceamento de defesa rejeitada.
2. Novação em se tratando de relação negocial continuada, é perfeitamente possível em se tratando de relação negocial continuada, e perfeitamente possível examinar-se o contrato originário e seus subsequentes, pois se tratam de mera continuidade negocial.
3. Revisão contratual e limitação dos juros. Os juros encontram-se limitados em 12% a.a., não em função da aplicação do art. 192, § 3º da CF, uma vez que o STF já decidiu que esta norma possui eficácia contida, nem da chamada Lei da Usura (Decreto nº 22.626), e sim, pelo art. 51, IV do CDC, bem assim, em razão de toda a legislação pátria que historicamente adotou como parâmetro razoável de juros remuneratórios o percentual de 12% ao ano.
4. Incidência do Código de Defesa do Consumidor. Filio-me a corrente que entende ser o contrato de abertura de credito e o contrato de confissão de dívida como contratos de adesão, eis que suas cláusulas foram preestabelecidas unilateralmente pela instituição financeira, que e economicamente mais forte, sem que o autor pudesse discutir ou modificar substancialmente o conteúdo destas.
5. Capitalização. Vedada a capitalização dos juros, com base na Súmula 121 do STF.
6. Juros moratórios. O percentual a ser observado é aquele de 6% ao ano, na forma dos artigos 1.062 e 1.262 do CC, quando não houver pactuação. Em havendo disposição expressa acerca dos juros moratórios, esses ficarão em 1% ao mês.
7. Multa. A multa contratual representa o ressarcimento pelo atraso no cumprimento da obrigação e deve ser fixada em 2% sobre o saldo devedor. Preliminar rejeitada. recursos desprovidos.
Neste caso de contrato de abertura de crédito e confissão de dívida, houve a utilização do princípio da função social do contrato ao lado do princípio da boa-fé, como fundamentação do decisum. Entendeu-se pela limitação da taxa de juros em doze por cento ao ano, levando-se em conta o previsto pela norma consumeirista.
Como visto, através das cláusulas gerais da boa-fé e da função social do contrato, os julgadores decidiram contrariamente à orientação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) n° 004-DF, que autorizou as instituições financeiras à cobrança de juros em patamares superiores aos constitucionalmente previstos.
LOCAÇÃO. FIANÇA. IMPENHORABILIDADE. CONTRATO ANTERIOR AS LEIS NS 8.009/90 E 8.245/91 FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO FIRMADO ANTERIORMENTE A LEI N. 8.009/90, COM A VIGÊNCIA DESTA.
O imóvel residencial do fiador se tornou impenhorável, e não se torna penhorável, porque a Lei n° 8.245/91, posterior também a fiança firmada, e que pelo artigo 82, inseriu o inciso VII no art. 3 da Lei de Impenhorabilidade, exatamente porque se trata de uma exceção, e tem a característica de direito material, prevalecendo, então, a norma da impenhorabilidade que marcou imóvel para residência da família, com base na natureza de direito público e social, não permitindo que haja retroatividade para prejudicar direito adquirido e tão importante para a dignidade da pessoa. Orientação adotada nos EI n° 195028717. Apelo desprovido, por maioria. Voto vencido.
Na decisão supra, se visualiza o princípio da função social do contrato quando os julgadores entenderam pela impenhorabilidade do bem de família do fiador, levando em conta o princípio da dignidade da pessoa humana.
Os valores existenciais imanentes à habitação como direito fundamental, migram para a relação concreta através do uso de cláusulas gerais, com amplo impacto na leitura da norma infraconstitucional.
Depreende-se da jurisprudência gaúcha, que a função social dos contratos já vem embasando, embora de forma tímida, as decisões. O que se faz imprescindível é o reconhecimento de que "a função social tem um peso específico, que é o de entender-se a eventual restrição à liberdade contratual não mais como uma ‘exceção’ a um direito absoluto [...]".
O que se deve ter em mente é o equilíbrio que se busca entre os princípios da liberdade (autonomia da vontade) e da igualdade (material), ou melhor, o reconhecimento de que tais princípios encontram-se em igualdade hierárquica dentro do ordenamento jurídico vigente.
Nosso regime há de primar pelo equilíbrio evocado pelo conteúdo social positivado no Estado Democrático de Direito moldado na Constituição Brasileira. Liberdade e igualdade concorrem, relativizando-se tópica e axiologicamente, em prol do princípio da dignidade da pessoa humana. Os excessos admissíveis pelos extremos não encontram respaldo em nosso sistema constitucional.
A função social do contrato surge para proporcionar maior equilíbrio nas relações contratuais, tornando-as mais próximas do ideal de justiça, através da concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Somente os contratos que cumprem a sua função social são dignos da tutela do Direito.