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A posse de bens públicos:

análise crítica de jurisprudência

Agenda 17/11/2017 às 10:30

A posse de bens públicos envolve aspectos polêmicos, a começar pela sua própria admissibilidade. A sua compreensão demanda a análise do exercício do poder fático, por particular, sobre o bem público, na relação com o Estado e com terceiros.

Aspectos introdutórios

A posse privada sobre bens públicos sempre foi um tema tormentoso em nossa jurisprudência. Tomemos como exemplo emblemático julgado[1],:

“RECURSO  ESPECIAL.  POSSE.  DIREITO  CIVIL  E  PROCESSUAL CIVIL. BEM PÚBLICO    DOMINICAL.    LITÍGIO   ENTRE   PARTICULARES.   INTERDITO POSSESSÓRIO. POSSIBILIDADE. FUNÇÃO SOCIAL. OCORRÊNCIA.

1.  Na ocupação de bem público, duas situações devem ter tratamentos distintos:  i)  aquela  em  que o particular invade imóvel público e almeja  proteção possessória ou indenização/retenção em face do ente estatal  e  ii)  as  contendas  possessórias  entre  particulares no tocante a imóvel situado em terras públicas.

2.  A  posse deve ser protegida como um fim em si mesma, exercendo o particular  o  poder  fático  sobre  a  res  e garantindo sua função social, sendo que o critério para aferir se há posse ou detenção não é  o  estrutural  e  sim  o  funcional.  É  a  afetação do bem a uma finalidade  pública  que  dirá  se  pode  ou  não ser objeto de atos possessórias por um particular.

3.  A  jurisprudência  do  STJ  é  sedimentada  no  sentido de que o particular  tem  apenas detenção em relação ao Poder Público, não se cogitando de proteção possessória.

4.  É  possível o manejo de interditos possessórios em litígio entre particulares sobre bem público dominical, pois entre ambos a disputa será relativa à posse.

5.  À  luz  do texto constitucional e da inteligência do novo Código Civil, a função social é base normativa para a solução dos conflitos atinentes à posse, dando-se efetividade ao bem comum, com escopo nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

6.  Nos  bens  do  patrimônio  disponível  do  Estado  (dominicais), despojados  de destinação pública, permite-se a proteção possessória pelos ocupantes da terra pública que venham a lhe dar função social.

7. A ocupação por particular de um bem público abandonado/desafetado -  isto é, sem destinação ao uso público em geral ou a uma atividade administrativa  -,  confere justamente a função social da qual o bem está carente em sua essência.

8.  A  exegese  que  reconhece  a posse nos bens dominicais deve ser conciliada  com  a  regra que veda o reconhecimento da usucapião nos bens  públicos  (STF,  Súm 340; CF, arts. 183, § 3°; e 192; CC, art. 102);  um  dos  efeitos  jurídicos  da  posse  -  a usucapião - será limitado,  devendo  ser  mantido,  no  entanto,  a  possibilidade de invocação dos interditos possessórios pelo particular.

9. Recurso especial não provido.”

O acórdão acima tem a inegável virtude de trazer luzes quanto aos litígios que versarem sobre a posse, por particulares, sobre bens públicos. Os fundamentos do julgado, porém, devem ser analisados criticamente, o que nos possibilitará averiguar se estão em harmonia com os apontamentos doutrinários sobre posse de bens públicos.

Da colocação do problema

O pano de fundo do julgado em comento é bem interessante. Dois particulares litigavam sobre a posse de bem público. O Juízo de primeiro grau julgou o pedido juridicamente impossível, eis que se almejava a proteção possessória, por particular, de bem público. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal entendeu em sentido diverso, eis que a natureza pública do bem não serviria, por si, a obstar o manejo dos interditos possessórios, a ser deferido ao particular que, em demanda da qual não fosse parte o Estado, ostentasse o título de “melhor possuidor”.

O Superior Tribunal de Justiça prestigiou a decisão tomada em segundo grau, agregando, em sua fundamentação, as seguintes considerações:

“Realmente, são duas situações que devem ter tratamentos bem distintos: i) aquela em que o particular invade imóvel público e almeja proteção possessória ou indenização⁄retenção em face do ente estatal e ii) as contendas possessórias entre particulares no tocante a imóvel situado em terras públicas. 

Como visto, o particular, perante o Poder Público, exerce mera detenção e, por consectário lógico, não haveria falar em proteção possessória.

No entanto, assim como o fez a Terceira Turma, penso que entre particulares, a depender do caso em concreto, realmente é possível o manejo de interditos possessórios, devendo a questão ser interpretada à luz da nova realidade social.

(...)

Em suma, como exposto, não haverá alteração na titularidade dominial do bem, que continuará nas mãos do Estado, mantendo sua natureza pública. No entanto, na contenda entre particulares, reconhecida no meio social como a manifestação e a exteriorização do poder fático e duradouro sobre a coisa, a relação será eminentemente possessória, e, por conseguinte, nos bens do patrimônio disponível do Estado, despojados de destinação pública, será plenamente possível - ainda que de forma precária -, a proteção possessória pelos ocupantes da terra pública que venham a lhe dar função social.

Com efeito, o ordenamento jurídico protege o estado de fato, a situação daquele que exerce todos ou alguns dos poderes inerentes à propriedade (Ihering), tendo-se como possuidor todo aquele que aparentemente se comporta como dono e realiza atos próprios deste estado de aparência, desde que, por óbvio, não haja exclusão expressa da referida proteção pelo normativo pátrio.”

O julgado nos convida a analisar os seguintes pontos: o conceito de posse é relativo, ou, em outras palavras, é possível ser possuidor de um bem frente a uma pessoa e não ser frente às demais? Segunda questão que se pode imaginar: é possível posse de bens públicos por particulares? Vamos enfrentar cada uma das questões lançadas para, ao final, aplicar as conclusões para que cheguemos nas hipóteses de lides entre particulares que invadem áreas públicas.

A questão da relatividade da posse: seria possível ser possuidor frente a uma pessoa e não ser frente a outros agentes? A resposta à pergunta lançada é não! Ou o sujeito é possuidor ou não é. A confusão feita por muitos julgados ao enxergarem a condição simultânea de possuidor e detentor na mesma pessoa, a depender da relação jurídica na qual esteja inserida (ser, por exemplo, possuidora de bem público frente a particulares e mera detentora deles, diante do Estado) é um equívoco que talvez tenha raízes históricas.

Esclarece Moreira Alves[2] que, em Roma, no período anterior a Justiniano, só se reconhecia posse àquele que tivesse a senhoria, de fato, sobre a coisa, podendo dela valer-se de forma absoluta, como, de direito, agiria o proprietário. No período justiniano, contudo, reconhece-se, ao lado da possessio rei, a possessio iuris (também chamado de quase-posse[3]), correspondente ao exercício, sobre a coisa, de faculdades representativas do conteúdo de direitos reais sobre coisas alheias[4]. Em outras palavras: quem possuísse um objeto como um usufrutuário possui, não teria a posse da coisa, mas a posse do direito real de usufruto. Assim, não poderia fazer usucapião da coisa, mas seria possível fazê-lo do direito de usufruto.

A utilidade do conceito se faz presente até os dias de hoje. É sabido que os direitos reais de gozo podem ser adquiridos por usucapião. Assim, imaginemos que um sujeito tenha adquirido, por algum título defeituoso, o direito real de superfície sobre parcela de solo alheio, com o fito de realizar uma construção e explorá-la por trinta anos. Quinze anos depois do exercício da posse mansa, pacífica e ininterrupta sobre a coisa, comportando-se e sendo reconhecido como o superficiário do bem, ainda que o título aquisitivo seja nulo, nosso personagem adquire o direito real de superfície por usucapião e, a depender do título defeituoso, quiçá em dez ou cinco anos (conforme a modalidade de usucapião que se pretenda invocar).

Voltemos, porém, ao enfrentamento da questão histórica, em que um sujeito era simultaneamente visto como possuidor e detentor. Esclarece Moreira Alves que, nos casos em que existisse o possuidor de direito (real), os romanos o consideravam, frente ao dono do bem (o possuidor da coisa) como mero detentor. Frente a terceiros, contudo, era justo que fossem protegidos por interditos possessórios na qualidade de possuidores do direito (real). Tal fenômeno, de coexistência de duas formas diversas do exercício de posse sobre o bem, foi o que a doutrina espanhola designou de desdobramento horizontal da posse [5]..

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Inspirados pela escola alemã, diversas legislações, entre as quais a brasileira, passaram a reconhecer, ao lado da organização horizontal da posse, outra forma de desdobramento: o vertical. Nesse caso, seria reconhecido como possuidor direto aquele que tem a coisa em seu poder imediato, como ocorre com titulares de direitos reais (superfície, habitação, entre outros) e pessoais (comodatário, locatário, apenas para citar alguns), enquanto possuidor indireto seria aquele de quem houve o possuidor direto a posse (como o proprietário em relação ao inquilino).

Levando-se em consideração que os titulares de direitos reais de gozo são, para as legislações que, a exemplo da brasileira, admitem o desdobramento vertical da posse,  possuidores diretos e, em alguns casos (como no do usufrutuário que aluga ou empresta o bem) indiretos, poderíamos imaginar que não mais persiste, entre nós, interesse para a manutenção do chamado desdobramento horizontal da posse, consubstanciado na admissão da posse de direitos reais, já que, sejam possuidores diretos, sejam indiretos, o manejo das ações possessórias já se lhes é, atualmente, assegurado.

Mas não é bem assim... Já vimos que remanesce importância para o mencionado desdobramento na hipótese de usucapião de direitos reais. No entanto, quanto aos demais aspectos, manejo de interditos e reconhecimento de simultânea condição do titular de direito real de gozo de possuidor frente a terceiros, mas de detentor frente ao proprietário, tais conclusões não são mais válidas. Expliquemo-nos.

Quanto ao manejo de interditos pelos titulares de direitos reais de gozo, estes são também, pelo modelo adotado no Brasil, considerados possuidores diretos (algumas vezes, como visto, indiretos, na hipótese em que o usufrutuário loca o bem que lhe fora confiado). Logo, ainda que o ordenamento pátrio não reconhecesse o desdobramento horizontal da posse, os titulares de direitos reais de gozo seriam considerados possuidores e, portanto, poderiam valer-se da proteção conferida pelas ações possessórias.

Quanto ao segundo aspecto, de se considerar o possuidor do direito como detentor quando confrontado com o proprietário, igualmente não se sustenta mais essa conclusão, de índole romanística. Ora, o titular de direito real de gozo também é um possuidor direto e pode proteger sua posse até mesmo quando esbulhado pelo dono da coisa. Assim, a velha dicotomia romana caducou, embora, repita-se, ainda se adote o desdobramento horizontal da posse para justificar a usucapião de direitos reais.

A simples leitura do Código Civil do Brasil, ao identificar quem pode ser reconhecido como possuidor, não deixa dúvidas de que não se pode ser, simultaneamente, possuidor e detentor. Vejamos:

“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.”

Perceba-se que o conceito não é relativo. Não se afirma: “considera-se possuidor, frente a uma pessoa, aquela que, em relação a essa, tem o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Em outras palavras – o sujeito é possuidor, ou não é”.

Igualmente equivocada é a ideia de que duas pessoas podem, salvo as hipóteses de composse ou de desdobramento possessório, ser possuidoras, sob a escusa de que uma ostenta “melhor posse do que a outra”.

A referência à melhor posse, aliás, era um equívoco de redação constante do Código de 1916, felizmente não repetido na atual legislação. Vejamos:

“Art. 507. Na posse de menos de ano e dia, nenhum possuidor será manutenido, ou reintegrado judicialmente, senão contra os que não tiverem melhor posse.

Parágrafo único. Entende-se melhor a posse que se fundar em justo título; na falta de título, ou sendo os títulos iguais, a mais antiga; se da mesma data, a posse atual. Mas, se todas forem duvidosas, será seqüestrada a coisa, enquanto se não apurar a quem toque.”

Acreditamos que a ideia constante do artigo seja a mesma esposada pelo Código Espanhol, que determina:

“Artículo 445.

La posesión, como hecho, no puede reconocerse en dos personalidades distintas, fuera de los casos de indivisión. Si surgiere contienda sobre el hecho de la posesión, será preferido el poseedor actual; si resultaren dos poseedores, el más antiguo; si las fechas de las posesiones fueren las mismas, el que presente título; y, si todas estas condiciones fuesen iguales, se constituirá en depósito o guarda judicial la cosa, mientras se decide sobre su posesión o propiedad por los trámites correspondientes.”

A diferença, porém, é que o Código Espanhol, logo ao iniciar o artigo 445, adotou expressamente um princípio que se deduz sistematicamente no Código Brasileiro, qual seja, o do “plures eamdem rem in solidum possidere non possunt”.

Orlando Gomes[6], quanto ao assunto tratado, é enfático ao afirmar: 

“20. Composse. O objeto da posse há de ser exclusivo. A posse in solidum  da mesma coisa é contra a natureza, se entendida como poder físico imediato, pois duas pessoas não podem ter uma coisa ao mesmo tempo. Todavia, essa dificuldade desaparece em face do conceito segundo o qual a posse é o exercício da proprieddade. Se o domínio pode ser comum, também a posse pode ser pro indiviso. Admite-se, com efeito, que diersas pessoas possam ser possuidoras de uma só e mesma coisa. A posse em comum da mesma coisa, no mesmo grau, chama-se composse.”

Caberia, então, indagar – qual seria o alcance do que o Código de 1916 chamou de “melhor posse”, se essa norma não refutou o princípio de que duas pessoas não podem ter uma coisa ao mesmo tempo como possuidoras, salvo no caso de composse e de desdobramento possessório?

Entendemos, nessa esteira, que a expressão “melhor posse” indicava, na legislação revogada, que, uma vez judicializado o conflito possessório, a proteção liminarmente requerida pelos litigantes não seria deferida, senão a quem apresentasse a prova mais verossímil de seu direito. Não se pode deduzir do revogado artigo que ele relativizasse o conceito de posse, admitindo a coexistência, fora das hipóteses de composse e de desdobramento possessório, de possuidores simultâneos que estivessem a litigar pela posse exclusiva do bem.

Conclui-se, de tudo que se afirmou:

Não há, salvo no caso de composse e de desdobramento possessório, dois possuidores sobre o mesmo bem. Assim, não se pode imaginar que um bem sob a posse estatal seja possuído simultaneamente pelo Poder Público e pelo particular, e, como consequência; um indivíduo não pode ser encarado simultaneamente como possuidor frente a terceiros e detentor frente ao Estado, pois, se assim fosse, estaríamos admitindo a existência de posses simultâneas sobre um mesmo bem, em mesmo grau, fora das hipóteses de composse e do desdobramento possessório.

Somos, pelas conclusões expostas, lançados ao novo tópico a ser enfrentado, qual seja, saber se é possível a posse privada sobre bens públicos.

É possível posse de bens públicos por particulares?  A resposta ao questionamento lançado demanda breve incursão nas teorias da posse. Como bem sabido, as duas escolas mais representativas da posse são a subjetivista (que tem Savigny como seu expoente) e a objetivista (cujo representante mais ilustre é Ihering).

Pois bem, entender o significado da posse demanda saber diferenciá-la de outra situação fática que a ela muito se assemelha: a detenção.

Moreira Alves [7] em feliz síntese nos fornece a ideia precisa da posse, a partir de seus elementos constitutivos. Vejamos:

“I – para Savigny:

P = C + A + a

D =  C + A

II – para Ihering:

P = C + A

D = C + A – n

P é posse, D, detenção, C, corpus em sentido estrito, como elemento puramente material; A, affectio tenendi (isto é, a consciência de ter a coisa consigo, a vontade de deter a coisa); a, animus domini; n, dispositivo legal que transforma a posse em detenção por lhe retirar o caráter possessório.

Analisando-se estas fórmulas, verifica-se:

em ambas as teorias – quer na posse, quer na detenção – se encontram os fatores C+A (corpus em sentido estrito mais affectio tenendi);

no entanto, na de Savigny, C + A traduz o elemento objetivo (relação material e consciente entre a pessoa e a coisa),  ou seja, o corpus em sentido amplo, tanto assim que, além de C + A, é necessário a presença de a (animus domini) para se ter configurada a posse; já na de Ihering C é o elemento objetivo e A (affectio tenendi) é o elemento subjetivo; e

na teoria de Savigny, a fórmula da posse difere da fórmula da detençõa em virtude de um fator positivo (+a = animus domini) que existe na posse, e não na detenção; na teoria da Ihering, a diferença decorre de um fator negativo (-n) que compõe a fórmula da detenção, e não a da posse; de onde se conclui que, enquanto a teoria subjetiva parte da detenção (esta desce do degrau em que se encontra, passado a detenção, pela adjunção do elemento diferencial, o fator negativo ‘n’).”

Atente-se que outros autores também representam os conceitos por fórmula muito semelhante à exposta. Menezes Cordeiro[8] afirma:

“Orientação subjectivista:

x = a + c + α

y =  a + c

Orientação objectivista:

x = a + c

y = a + c – n

Sendo:

x, a posse;

y, a detenção;

c, o corpus;

a, o animus, que a própria teoria subjectivista terá de admitir no detentor, para que a situação tenha relevância jurídica;

α, o plus de vontade que a teoria subjectiva requer para elevar a detenção a posse;

n, o factor legal que, na teoria objectiva, retira, à posse, a sua característica possessória, reconduzindo-a a mera detenção.”

Na essência, as fórmulas aqui reproduzidas nos levam às mesmas conclusões. A posse, para os subjetivistas, nasce quando três elementos se somam: o corpus, a affectio tenendi (animus, para Menezes Cordeiro) e o animus domini. (plus de vontade, para Menezes Cordeiro).

O corpus, para teoria acima, evidencia-se quando há poder físico sobre a coisa[9]. Note-se, porém, que não basta que a coisa esteja materialmente em poder de alguém para que este seja possuidor. Imaginemos que uma pessoa, supondo que está a guardar sua caneta na própria bolsa, termina por depositá-la numa outra, idêntica à sua, mas que está ao lado da que seria correta. Quando o verdadeiro dono da bolsa onde está guardada a caneta a levar para casa, terá consigo o bem, mas não se poderá pensar que é seu possuidor. Repita-se: ele sequer imagina que porta consigo um objeto que fora guardado, por equívoco, na sua bolsa.

Eis a importância do segundo elemento, affectio tenendi, isto é, a consciência de ter a coisa consigo. Menezes Cordeiro, como visto, no lugar da affectio tenendi, arrola como elemento da posse, segundo os subjetivistas, a necessidade do agente estar dotado de animus para ser possuidor. Ressalte-se, todavia, que o conceito de animus foi muito alterado durante a história romana, sendo identificado, no período clássico, com o animus possidendi (intenção de assenhorar-se da coisa, exercendo poder exclusivo e independente) e, no período justiniano, interpretado como animus domini (intenção de ser dono da coisa)[10]. Seja como for, os dois elementos (affectio tenendi ou animus) revelam a insuficiência do corpus como elemento da posse e a necessidade de que o possuidor e o detentor saibam que portam a coisa.

Atente-se para que o último elemento da posse, para Savigny, seria o animus domini, vale dizer, a intenção de ser dono da coisa. Novamente encontramos aqui uma pequena divergência terminológica em relação aos escritos de Menezes Cordeiro, já reproduzidos, pois o último não denomina o elemento examinado de animus, mas o chama de “plus de vontade” capaz de elevar a detenção a posse. Assim, um caseiro não seria possuidor da chácara onde trabalha porque não tem esse “plus de vontade”, já que não se apresenta perante todos como o dono da chácara, mas como mero funcionário de quem o seja.

Em resumo, a detenção seria o somatório dos dois primeiros elementos explanados e a posse seria uma detenção à qual se acresce a intenção de se ter como sua a coisa.

Os objetivistas, por sua vez, espiritualizam o conceito de corpus. Este não mais representará a possibilidade real e imediata de ter consigo a coisa, mas sim de dar a ela uma finalidade econômica ou social[11]. É justamente essa espiritualização que permite o desdobramento vertical da posse em posse direta e indireta. Quanto ao segundo elemento (affectio tenendi, ou animus, para Menezes Cordeiro) ele pode ser compreendido como a consciência de se poder dar à coisa o seu destino econômico-social.

A grande diferença entre as teorias subjetivistas e objetivistas recai sobre o terceiro elemento analisado... o comando normativo que degrada a posse, transformando-a em detenção. Assim, sempre que um sujeito, sobre um objeto, ostente corpus e affectio tenendi, ele será possuidor. Só deixará de sê-lo, caso a norma degrade sua situação jurídica, transformando-a em detenção.

Analisemos a hipótese do artigo 1.198 do Código Civil, que assevera:

“Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.”

A hipótese acima é justamente a do caseiro, que, para teoria de Savigny, era detentor porque lhe faltava animus domini. Para a teoria de Ihering, abraçada pelo nosso Código, o caseiro é detentor por uma razão muito mais singela... porque a lei assim determinou, degradando sua situação e transformando-a em detenção.

Igualmente o artigo 1.208 do Código Civil estabelece situações de detenção. Vejamos:

“Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.”

E o ocupante de área pública? Como considerá-lo? Seria um detentor? Seria possuidor? Passemos às respostas.

Tradicionalmente, era firme o entendimento jurisprudencial, nos tribunais brasileiros, de que era impossível posse privada sobre bens públicos. Vejamos alguns exemplos:

“OPOSIÇÃO. DEMANDA POSSESSÓRIA. NULIDADE DA SENTENÇA. JULGAMENTO EM APARTADO DA POSSESSÓRIA E DA OPOSIÇAO. POSSIBILIDADE. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INEXISTÊNCIA. PROVA PERICIAL. REALIZAÇÃO A CRITÉRIO DO JULGADOR. PRELIMINAR AFASTADA. LOTE ADQUIRIDO POR CONTRATO ENTRE PARTICULARES. DÚVIDA ACERCA DA TITULARIDADE DA ÁREA. POSSIBILIDADE DE PERTENCER AO PODER PÚBLICO. HIPÓTESE DE OCUPAÇÃO POR MERA TOLERÂNCIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. AUSÊNCIA DE POSSE.

(...)

5. Os bens públicos somente podem ser suscetíveis de posse em decorrência de lei, ato do poder público ou contrato por ele celebrado, de modo que a ocupação por terceiros é precária, caracterizando mera detenção. Assim, pode-se inferir que não há posse nas áreas de domínio público, mas, sim, mera tolerância do poder público na ocupação, o que não gera direito para o seu ocupante.

6. Recurso conhecido e desprovido. Sentença mantida.” [12]

O número de ocupações irregulares em áreas públicas, no entanto, avolumou a quantidade de litígios entre particulares estabelecidos nesses bens. A perplexidade é que, adotando-se o posicionamento acima, de que a natureza pública do bem automaticamente exclui a possibilidade de seu apossamento por particulares, quando dois particulares buscassem o judiciário para apaziguar um litígio sobre a posse de tais imóveis, a resposta é a de que, não sendo qualquer deles possuidor, incorreto seria o manejo de ações possessórias.

Acontece, porém, que o simples fato do bem ser público não afasta automaticamente a possibilidade de posse privada sobre ele, como ensina Moreira Alves[13]:

“Já no tocante às coisas públicas (que podem ser de uso comum, de uso especial ou dominicais), Orozimbo Nonato sustenta, sem fazer qualquer distinção, que ‘o poder de fato que o particular exerça sobre bens do Estado não se eleva dentro do sistema da lei brasileira, à categoria de posse: falta-lhe, porém, o elemento negativo a que se refere Ihering e que degrada a relação exterior a simples detenção’. Portanto, não haveria posse do particular com. relação a qualquer espécie de bem público. Sucede, porém, que essa generalização não encontra apoio na legislação brasileira. (...) Não há, pois, como negar-se a admissibilidade da posse, em nosso direito, sobre as coisas públicas dominicais.”  

A razão para a distinção entre bens públicos de uso especial e de uso comum do povo, de um lado, e bens dominais, por outro, é simples.

Os bens de uso comum do povo, assim como os bens de uso especial, têm uma afetação inafastável. Sua indisponibilidade faz com que a indevida ocupação de tais áreas por particulares, quando muito, represente um ato de mera tolerância pelo Estado, razão pela qual sofre a degradação prevista no artigo 1.208 do Código Civil, devendo ser considerada uma mera detenção.

Os bens dominiais, por outro lado, são aqueles que não possuem uma afetação pública específica, podendo até mesmo ser alienados na forma do artigo 102 do Código Civil e legislação especial de regência. Nada impede, pois, que sejam objeto de posse privada por particulares.

Os apontamentos, assim, levados a cabo já nos permitem chegar a interessantes conclusões sobre a posse privada de bens públicos e o enfrentamento judicial do tema.

Conclusões

O aumento das invasões de áreas públicas tem levado particulares, em situação de litígio entre si, a buscar o Poder Judiciário para respaldarem suas respectivas posições.

A primeira providência, em tais hipóteses, é analisar se, de fato, a área é pública e, caso o seja, qual a sua natureza. Se for um bem de uso comum ou um bem de uso especial, inviável se mostrará a posse privada de tais bens. E não se diga que um ocupante privado é melhor possuidor frente ao outro, mas que não seria frente ao Estado. Esse é um grave equívoco, pois a híbrida figura de que alguém pode ser, simultaneamente, possuidor, frente a alguns (particulares), e detentor, frente a outros (Poder Público), vulnera, como visto o princípio “plures eamdem rem in solidum possidere non possunt”.

Diversa será a conclusão se o litígio versar sobre a ocupação de bem dominical. Nessa hipótese é viável a posse particular sobre o dito imóvel. Uma observação, porém, deve ser feita: embora não seja possível que um sujeito ostente a qualidade de possuidor frente a uns e detentor frente a outros, é factível que, uma vez lhe reconhecendo a condição de possuidor, sua posse seja classificada como justa frente a determinadas pessoas e injusta em relação àquele por ele desapossado. Tal conclusão decorre do fato do fato de que a posse só será viciada em relação a quem sofreu o esbulho, assumindo, portanto, um caráter relativo[14].

Assim, o invasor de área pública, embora possa ser considerado possuidor, se-lo-á possuidor injusto frente ao Poder Público, não fazendo jus, assim, quando litigar contra o Ente Federado, proteção possessória. Em relação a outros particulares, porém, sua posse não será injusta, devendo, então, ter o seu pleito amparado judicialmente, quando demandar contra outros atores privados.


BIBLIOGRAFIA

ALVES, José Carlos Moreira. Posse – Evolução Histórica – T. I, V. I. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

ALVES, José Carlos Moreira. Posse – Estudo Dogmátivo – T. I, V. II. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano - V. I. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001

CORDEIRO, António Menezes. A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2000.

CORREIA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano – v. II. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1953.

GOMES, Orlando. Direitos Reais. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – v. IV. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Coisas – T. I. Campinas: Russel, 2003.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direitos Reais – V. V. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2002.


Notas

[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1296964/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 18/10/2016, DJe 07/12/2016

[2] ALVES, José Carlos Moreira. Posse – Estudo Dogmátivo – T. I., V. II. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p 187/188.

[3] PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Coisas – T. I. Campinas: Russel, 2003, p 73.

[4] GAIO, L. 4, § 139 (tradução de Alexandre Correia e Gaetano Sciascia) reconhece o manejo dos interditos possessórios pelo possuidor de direitos ao asseverar: “139. Em certos casos, o pretor ou o procônsul interpõe desde o início a sua autoridade para terminar as controvérsisas; isso fazem sobretudo quando há contenda entre as partes a respeito da posse ou quase-posse. E, em suma, ou manda fazer ou proíbe se faça algo. As fórmulas e as palavras usadas nestas questões se chamam interditos, ou mais exatamente, interditos e decretos.

[5] ALVES, José Carlos Moreira. Posse – Estudo Dogmátivo – T. I, V. II. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p 186/188.

[6] GOMES, Orlando. Direitos Reais. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p 36/37.

[7] ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano - V. I. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p 265.

[8] CORDEIRO, António Menezes. A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 26.

[9] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – v. IV. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 15.

[10] ALVES, José Carlos Moreira. Posse – Estudo Dogmátivo – V. I, T. I. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p 50.

[11] ALVES, José Carlos Moreira. Posse – Eolução Histórica – T. I, V. I. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p 50.

[12] BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. APC 2002.01.1.040107-6, Relator JOÃO BATISTA TEIXEIRA, 1ª Turma Cível, julgado em 25/5/2011, DJ 30/5/2011 p. 81.

[13] ALVES, José Carlos Moreira. Posse – Estudo Dogmátivo – T. I, V. II. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p 167/169.

[14] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direitos Reais – V. V. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p 68.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Rogério Andrade Cavalcanti. A posse de bens públicos:: análise crítica de jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5252, 17 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58900. Acesso em: 22 dez. 2024.

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