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Terceirização: o retorno a um infame passado

A terceirização irrestrita do contrato de trabalho, como parece querer nos trazer a Reforma Trabalhista, além de configurar um retrocesso à lógica do Direito do Trabalho, atenta contra o Tratado de Versailles e contra a Constituição da Organização Internacional do Trabalho, ambos assinados pelo Brasil.

Como todos sabem, os agentes do atraso conseguiram aprovar um projeto de terceirização irrestrita nas empresas. A “reforma trabalhista” irá completar este triste quadro, se aprovada.

Trata-se de um retorno ao século dezenove e início do século vinte. O trabalho tornou a ser mercadoria e artigo de comércio, num atentado inominável aos direitos humanos.

Como refere sobre o assunto o professor e Juiz do Trabalho, Dr. Murilo Oliveira:

“O que se diz como a “moderna” gestão da empresa é a velha marchandage, que era definida na França no Século XIX quando um mercador alugava seus trabalhadores para as empresas em troca de lucro. Na terceirização permitida para todos os setores da empresa, o empresário não precisará mais ter empregados, bastando alugar todos os seus trabalhadores perante um outro empresário (também vulgarmente chamado de “gato”) numa “terceirização” total.”(Terceirização Total: será preciso um novo primeiro de maio? Site do Dr. Gerivaldo Neiva, Juiz do Trabalho, acessado em 08.05.2017)

A humanidade parece que nunca aprende. Repete, de tempos em tempos, erros horríveis. Como bem disse o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Luiz Philippe Vieira de Melo Filho, a terceirização “rompe a lógica do Direito do Trabalho, porque diz que o ser humano passa a ser mercadoria”. Seu entendimento é seguido por dezenove outros ministros do mesmo Tribunal, que se manifestaram em carta a toda a sociedade brasileira. É a opinião amplamente majoritária da máxima corte trabalhista, bem como da sociedade brasileira.

Esse retorno ao passado nos leva a um texto importantíssimo na história civilização, o Tratado de Versailles, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. O art. 427, desse tratado, famoso por reconhecer os princípios fundamentais do Direito do Trabalho, tem a seguinte redação:

“As altas partes contratantes, reconhecendo que o bem-estar físico, mental e intelectual dos trabalhadores industriários é de importância essencial do ponto de vista internacional, criam um organismo permanente associado à Sociedade das Nações.

Reconhecem que as diferenças do clima, usos e costumes, de oportunidade econômica e de tradição industrial tornam difícil alcançar, de maneira imediata, a uniformidade absoluta nas condições de trabalho. Entretanto, persuadidos de que o trabalho não há de ser considerado simplesmente como um artigo de comércio, pensam que existem métodos e princípios para a regulamentação das condições de trabalho que todas as comunidades industriais deverão esforçar-se em aplicar, enquanto as condições especiais que possam encontrar-se o permitam.

Entre esses métodos e princípios, as Altas Partes contratantes opinam que os seguintes têm importância especial e urgente.

1º - O princípio diretivo antes enunciado de que o trabalho não há de ser considerado como mercadoria ou artigo de comércio.” (grifamos)

Seguem-se mais oito princípios, mas, o primeiro, não por acaso, é de que trabalho não é mercadoria.

Segundo a lição de Mario de La Cueva, esse preceito “ contém a essência do Direito do Trabalho; o trabalho não é uma mercadoria; equivale a sustentar que, em todos os casos, deve respeitar-se a dignidade da pessoa humana”.(Derecho Mexicano Del Trabajo, México, 2ª edição, 1943, vol.1, pág. 276, citado por Arnaldo Sussekind, Direito Internacional do Trabalho, 2ª edição, LTr Editora, pag. 102)

É bom enfatizar que esses preceitos foram fixados no tratado de paz de 1919, o que aconteceu só após uma hecatombe universal. Milhões morreram para que esses principios fossem reconhecidos, não é a por acaso que estão num tratado de paz.

Pois bem, a humanidade não aprendeu nada. Veio a Segunda Guerra Mundial, que produziu maior desastre que a primeira. Novamente milhões de pessoas morreram, homens, mulheres e crianças, muitos mais sofreram ferimentos e sofrimentos indizíveis. Para novamente, quase no fim da guerra, os países estabelecerem na Declaração de Filadélfia:

“ A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, congregada em Filadelfia em sua vigésima sexta reunião, adota, em 10 de maio de 1944, a presente Declaração dos fins e objetivos da Organização Internacional do Trabalho e dos princípios que deverão inspirar a política de seus Membros.

A Conferência reafirma os princípios fundamentais sobre os quais está baseada a Organização e, em especial, os seguintes: a) o trabalho não é uma mercadoria;...”.

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Novamente, o primeiro princípio fundamental; trabalho não é mercadoria. O texto do Preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do Trabalho é taxativo ao estabelecer:

Considerando que a paz universal e permanente só pode basear-se na justiça social.

Considerando que existem condições de trabalho que entranham tal grau de injustiça, miséria e privações para grande número de seres humanos, que o descontentamento causado constitui uma ameaça para a paz e harmonia universais; considerando que é urgente melhorar ditas condições, por exemplo, no que se refere a regulamentação das horas de trabalho, fixação da duração máxima da jornada e da semana de trabalho, a contratação de mão de obra; luta contra o desemprego, garantia de um salário vital adequado, proteção do trabalhador contra as enfermidades, sejam ou não profissionais e contra os acidentes do trabalho, proteção das crianças e dos adolescentes e das mulheres, pensões de velhice e de invalidez, proteção dos interesses dos trabalhadores ocupados no estrangeiro, reconhecimento do princípio de salário igual por um trabalho de igual valor e do principio da liberdade sindical, organização do ensino profissional e técnico e outras medidas análogas;

Considerando que se qualquer nação não adotar um regime de trabalho realmente humano esta omissão constituiria um obstáculo aos esforços de outras nações que desejem melhorar a sorte dos trabalhadores em seus próprios países;

As Altas Partes Contratantes, movidas por sentimentos de justiça e de humanidade e pelo desejo de assegurar a paz permanente no mundo, e para os efeitos de alcançar os objetivos expostos neste preâmbulo, acordam na seguinte Constituição da Organização Internacional do Trabalho.” ( Grifamos )

Estes textos são trechos dos documentos que criaram a ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Organização vinculada à ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS e destinada a promover a melhora das condições de trabalho em todo o mundo, como condição da paz e harmonia universais.

Os textos foram possíveis de serem formulados somente após duas guerras mundiais e a sua vinculação com a paz esta bem estabelecida, não só porque foram consignados em tratado de paz com várias nações, como pelo explicito conteúdo dos mesmos. Por isso transcrevemos na íntegra os textos, basta consultá-los.

Duas consequências insofismáveis com o advento destas leis:

a) Atenta contra o Tratado de Versailles de 1919, assinado pelo Brasil, bem como contra a Constituição da Organização Internacional do Trabalho, também tratado assinado pelo Brasil;

B) Ao voltar às condições vigentes no passado e que originaram duas guerras, como vimos, tende a gerar uma instabilidade política e social de consequências inimagináveis.

Sobre os autores
José Cláudio de Magalhães Gomes

OAB/RS 42188 Auditor Fiscal do Trabalho aposentado. Foi chefe de fiscalização do trabalho da Delegacia Regional do Trabalho no RS e Delegado Substituto do mesmo órgão. Foi professor de Direito do Trabalho na Pontifícia Universidade Católica PUC-RS e instrutor de treinamento do Ministério do Trabalho. Foi Presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho e da Associação Gaúcha dos Auditores Fiscais do Trabalho. Foi Conselheiro Técnico da Delegação Brasileira em Conferências Internacionais do Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, Suíça. Foi representante fundador da Confederação Ibero-americana de Inspetores do Trabalho.

Eunice de Araújo Gomes

www.adveunicegomes.com.br Graduada em Direito pela PUC/RS no ano de 2011. Trabalhou como advogada autônoma em escritórios de advocacia de Porto Alegre. Atualmente, advogada autônoma. Em andamento: Especialização de Direito de Família e Sucessões - PUCRS. Graduada em Enfermagem pela PUC/RS no ano de 2002. Foi residente do programa de Residência Multidisciplinar da Escola de Saúde Pública na área temática de Saúde Coletiva. Trabalhou, como Enfermeira, em hospitais de Porto Alegre e Região Metropolitana nas áreas de UTI e Pós Operatório.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, José Cláudio Magalhães; GOMES, Eunice Araújo. Terceirização: o retorno a um infame passado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5138, 26 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58963. Acesso em: 22 nov. 2024.

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