O AGENTE DENUNCIADO À LIDE.
Feitas estas considerações que considero essenciais para as conclusões que estão adiante, tenho que alcançamos o ponto nodal deste arrazoado, a saber: o agente público causador do dano, por culpa ou dolo, pode ser denunciado à lide pela pessoa jurídica a que está vinculado, se esta sofrer ação da vítima do ato (i)lícito? A esta tormentosa questão, ofereceremos nossa resposta adiante, após breve análise das vacilações que atingem o tema.
Não há consenso na doutrina acerca da possibilidade de se denunciar à lide o agente faltoso, isto quando o Estado for chamado para se defender em ação judicial. Alguns autores entendem que a denunciação é inadmissível em razão da divergência insuperável existente entre a responsabilidade objetiva do Estado e a responsabilidade do agente causador, discutida sob o manto das doutrinas civilistas.
Ao autor da demanda caberá provar o nexo de causalidade entre o serviço oferecido pelo Estado e o dano daí advindo, pouco importando, como se viu, se este serviço está eivado de falhas. Rememorando CAIO MÁRIO, é necessário e suficiente que se demonstre o nexo de causalidade entre o ato administrativo e o prejuízo causado.
Ao ente público denunciante, todavia, cabe, no mesmo feito e nos mesmos autos, provar a culpa do agente denunciado que, como se sabe, não é presumida e nem tampouco objetiva. Tal demandaria extensa dilação probatória a ser travada entre o denunciante e o denunciado, o que emperraria o desenrolar da marcha processual iniciada por quem menos se interessa pela aferição da culpa, ou seja, o lesado.
É, à evidência, indiscutível prejuízo ao autor da demanda.
Existe ainda pertinente ponderação acerca do papel do servidor público perante a administração. Para os mestres que rejeitam a denunciação, onde se incluem Vicente Greco Filho, Celso Antônio Bandeira de Mello, Lúcia Vale Figueiredo, Weida Zancaner, entre outros, o servidor público não é garante do ente a que está vinculado, nem por força de lei nem por força de contrato, o que afastaria cabalmente a possibilidade de se obedecer à regra do artigo 70, inciso III do CPC.
Ao revés, há densa jurisprudência em favor da denunciação do agente causador do dano. O Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de ter por "admissível a denunciação à lide do servidor pela fazenda pública, demandada por ato daquele, independentemente da tese de defesa adotada" (RESP 47705).
O Sodalício também já decidiu ser "de todo recomendável que o agente público, responsável pelos danos causados a terceiros, integre, desde logo, a lide, apresente sua resposta, produza prova e acompanhe toda a tramitação do processo" (STJ-RT 667/172). E foi mais além, como se vê:
"Na ação reparatória, pode a entidade pública promover a denunciação da lide ao seu preposto, sem necessidade de atribuir-lhe, desde logo, a culpa pela ocorrência."(RSTJ 106/167) (grifamos)
É, por certo, uníssono o pensamento da Côrte especial, havendo raros e antigos julgados que vão de encontro ao posicionamento hodiernamente defendido, onde constava "que em relação à exegese do art. 70, III, CPC, melhor se recomenda a corrente que não permite a denunciação nos casos de alegado direito de regresso, cujo reconhecimento demandaria análise de fundamento novo não constante da lide originaria" (RESP 47705).
Já o professor Yussef Said Cahali (Responsabilidade civil do Estado. São Paulo : Malheiros, 1995) enxerga a existência harmônica entre as duas teorias. Em sua ótica, se o dano causado pela pessoa jurídica resultar de evento fundado em falta anônima, onde não se possa identifica o agente causador, não se deve admitir a denunciação, pois se estaria inovando nos fundamentos invocados pelo próprio autor.
Todavia, se a causa de pedir refletir a culpa ou o dolo do agente, é permitida sua denunciação à lide, na forma do que determina, segundo o seu entendimento, o artigo 70, inciso III do Código de Processo Civil. É esta a doutrina que tem merecido destaque no cenário jurídico atual, motivo pelo qual, sintomaticamente, tem sido abraçada como a resposta mais apropriada para os dissídios advindos de tão intricadas questões.
Inobstante tanto, e confessando minha predileção pela doutrina que rechaça a denunciação em casos que tais, não me parece adequada a solução acima exposta.
Inicialmente porque a obviedade da solução salta aos olhos. Ora, se a falta é anônima e se não é possível identificar o agente causador do dano, é desnecessário qualquer tipo de discussão acerca da possibilidade de denunciar, na medida em que não se sabe quem denunciar. Mesmo que a ignorância seja apenas do autor, vale dizer, admitindo que o ente público, diferentemente do lesado, identifique o agente que, por culpa ou dolo, tenha causado o dano, não haveria diferença, já que o Estado deveria transmudar completamente as fundamentações iniciais promovidas pelo autor e baseadas, é certo, na teoria do risco administrativo.
Analisemos o seguinte exemplo: o cidadão, por defeito mecânico em semáforo de trânsito instalado em avenida de grande movimentação, se vê obrigado a desviar de outro veículo e, por conta desta manobra, atinge um muro edificado às margens da via. Propõe ação contra o Município a fim de recuperar os valores despendidos com os reparos em seu bem. Neste caso, o causador da falta é – para o autor – anônimo.
O Município, devidamente citado, não identifica o responsável pelo ocorrido. Força é convir que, face ao anonimato, ninguém será denunciado à lide. Ao meu ver, neste particular, a doutrina não traz qualquer novidade, sendo mesmo obvia, já que o caso não admite conclusão divergente.
Da mesma forma, se o Município soube identificar o agente público que, ao fazer a troca das lâmpadas do semáforo, estando embriagado, não o fez corretamente, gerando pane em todo o sistema de tráfego da região, poderia promover a denunciação? É evidente que não, já que não se pode trazer fundamento novo à demanda calcada na responsabilidade objetiva do Estado, nos mesmos moldes da hipótese anterior.
Na verdade, írrito é o debate acerca da falta anônima. Ora, anônima para quem? Para a vítima, para o Estado ou para ambos? Se não se sabe quem causou o dano, não existe sujeito a ser denunciado.
Assim, se o que se pretende é preservar as fundamentações do autor, seria melhor que a admissão ou não da denunciação da lide de agente faltoso ficasse submetido às alegações lançadas na petição inicial. Caso o autor se preocupe em identificar o agente e lhe atribua culpa pelo evento, estaríamos diante de hipótese permissiva da denunciação da lide, quando o Estado poderia, baseado nos próprios argumentos do lesado, manejar a referida intervenção de terceiros.
Ao contrário, se a vítima não pudesse ou não quisesse identificar o agente e nem tampouco lhe atribuir culpa pelo resultado danoso, ao Estado restaria discutir a demanda nos moldes ofertados pelo autor, cuidando de se esquivar da obrigação de indenizar nos limites admitidos pela lei. Isto - frise-se - mesmo que o ente público consiga identificar o servidor negligente e possua elementos hábeis para a provar sua culpa dentro dos critérios civilistas.
Está solução valeria tanto para os comportamentos omissivos quanto para o comportamento comissivo do Estado. A meu ver, não ganha relevo a ressalva proposta por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, para quem "a regra em nosso Direito Constitucional é a da responsabilidade objetiva para os comportamentos comissivos do Estado e, salvo casos excepcionais, responsabilidade subjetiva (por culpa do serviço) para os comportamentos omissivos: a saber, quando o Estado, devendo legalmente agir para evitar um dano e, podendo faze-lo, não o fez ou não o fez tempestiva ou eficientemente". (Curso de Direito Administrativo, 13ª ed., ed. Malheiros, p. 91, 2001)
A leitura do artigo 37, § 6º da Lei Maior não sugere qualquer distinção entre o dano causado por ação ou omissão do agente, já que ambos os comportamentos estão aptos para gerar efeitos contra e a favor de terceiros.
A propósito, o ilustrado mestre, arrimando-se em ensinamentos de WEIDA ZANCANER, rechaça a idéia da denunciação da lide, exatamente porque as discussões acerca da culpa subjetiva do agente retardariam o desfecho da demanda, procrastinando o processo em razão de discussões impertinentes às alegações do autor ou inadmissíveis, face às peculiaridades inconciliáveis das teorias da culpa objetiva e subjetiva.
Não creio, todavia, que o retardamento da marcha processual seja elemento suficiente para se afastar a denunciação do agente. A dilação probatória é, no mais das vezes, simplória e resumida, não exigindo mais que uma única audiência para a sua conclusão. Ademais, aquele que ousa enfrentar a máquina estatal não encontra soluções rápidas e eficazes ao longo do processo.
Ao contrário, e o leitor há de me perdoar pelo momentâneo distanciamento do mundo teórico, os prazos dilargados, o reexame necessário, os recursos infindáveis, precatórios, suspensão de segurança, são alguns exemplos que fazem com que as discussões acerca da celeridade fiquem obscurecidas e diminutas, não ganhando eco se envolvidas no contexto processual das lides contra o poder público.
Afora tanto, creio tenha se tornado "jargão político" os discursos inflamados e quase sempre oportunistas levantados em defesa da incessante busca pela celeridade processual, como se um julgamento rápido fosse tão importante quanto um julgamento justo. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, em artigo publicado na Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, (Vol 9, Jan – Fev 2001, p. 05) foi feliz em dizer que "a celeridade não constitui o único valor em jogo, e o legislador processual, aqui e alhures, dificilmente se animaria a sobrepô-la de modo tão radical a quaisquer outros. O que sugere o bom senso é tentar encontrar o justo ponto de equilíbrio entre as solicitações contrapostas que aí se manifestam; e, para isso, muito ajudaria que tivéssemos elementos objetivos, colhidos na realidade quotidiana do foro e dotados de confiabilidade superior à das nossas variáveis experiências pessoais – ou, a fortiori, das meras impressões pelas quais não raros nos deixamos guiar".
Da mesma forma, não parece confiável afirmar, definitivamente, que o agente público não pode ser denunciado à lide por não assumir a posição de garante do Estado. A afirmação é, em parte, verdadeira, porquanto merece ressalvas.
Com efeito, eis a redação do artigo 70, inciso III do Código de Ritos:
"àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda".
Ora, o agente é obrigado por lei (Constituição da República, art. 37, 6º) a indenizar o prejuízo do que perder a demanda (Estado), desde que tenha agido com dolo ou culpa. Neste caso, e só neste particular, o agente figura como garante do Estado, estando sua obrigação condicionada à condenação da pessoa jurídica em razão de ato ilícito por si praticado. Há, em razão do artigo 37 §6º da Constituição da República, vinculação jurídica material entre o denunciante e o denunciado.
É o que ocorre nas ações entre particulares, debatidas, portanto, dentro da órbita das teorias da culpa civilistas. Ao terceiro prejudicado com a sentença favorável à mulher, resta o direito regressivo contra o marido e seus herdeiros (art. 250, C.C. revogado e art. 1646 C.C vigente). Aquele que tiver perdido, ou a quem houverem sido furtados, coisa móvel ou título ao portador, pode reavê-los da pessoa que os detiver, salvo a esta o direito regressivo contra quem lhos transferiu (Art. 521, caput, C.C. revogado).
É o que está previsto, também, nos artigos 690 §1º, 750 e 816 §4º (este último artigo corresponde ao art. 1481, §4º, C.C. vigente), todos do Código Civil revogado. As pessoas ali indicadas são obrigadas, por lei, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda, constituindo-se em verdadeiros garantes na relação processual litigiosa, justamente porque a lei conferiu ao lesado o direito regressivo.
Assim é que "se não há direito de regresso, é incabível a denunciação" (STF-RT 605/241; RTJ 126/404 E STF-RT 631/255).
É o caso do agente causador do dano, com a ressalva de que a condenação do poder público deve vir baseada, também, na culpa do agente, reconhecendo-a. Quando a lei federal fala em "prejuízo do que perder a demanda", é fundamental se ter em mente que esta regra deve ser integrada pelo texto da Carta Cidadã, onde o agente deve indenizar, sim, o "prejuízo do que perder a demanda", mas nos casos de ter agido com dolo ou culpa.
Se ao prolatar a sentença, o magistrado reconhecer a obrigação estatal de indenizar, não está o agente, como conseqüência imediata, obrigado a ressarcir os cofres públicos, ainda que tenha sido denunciado à lide. Todavia, se a sentença declarar inequívoca a culpa do agente, este responderá regressivamente pelos prejuízos que tenha causado no exercício de seu mister.
Isto porque "a procedência do pedido dos autores, contra o denunciante, não acarreta, direta ou automaticamente, a responsabilidade da denunciada. Há que se perquirir, ainda, da relação jurídica nova, posta à denunciação" (Ac. un. Da 3ª CCv do TJRJ, na Ap. 4.112/86).
Por isso entendo que a denunciação da lide, em casos que tais, fica adstrita à causa de pedir declinada pelo autor, considerando-a pelo fato e pelos fundamentos jurídicos do pedido. Se em sua causa de pedir restar evidenciada a culpa do agente e, mais que isso, nos fundamentos de seus pedidos estarem presentes elementos deduzidos na culpa subjetiva do agente por ato doloso ou culposo seu, é evidente que a instrução poderá, em havendo denunciação, trazer à tona a culpa subjetiva do agente.
Em outras palavras, não é permitida, na denunciação da lide, a intromissão de fundamento novo, ausente da demanda originária, que não seja a responsabilidade direta decorrente da lei e do contrato. Assim, não se tratando "de caso de futura ação regressiva, fundada em garantia a que se obrigará o terceiro, mas de defesa fundada em culpa de outrem" (JTACSP 98/122), não cabe a denunciação.
O professor VICENTE GRECO FILHO (Direito Processual Civil Brasileiro, ed. 1981, p.143) também entende não ser permitido, na denunciação, "a intromissão de fundamento jurídico novo, que não seja responsabilidade direta decorrente da lei e do contrato".
E revela pensamento originalíssimo, capaz de justificar, ainda mais, o entendimento aqui esposado, senão vejamos:
"Observe-se, também, que, por tradição histórica, uma das finalidades da denunciação é a que o denunciado venha a coadjuvar na defesa do denunciante e não litigar com ele, arguindo fato estranho à lide".
Ora, se a pessoa jurídica de direito público pretender inovar os fundamentos jurídicos da demanda, que não contenham em seu bojo elementos informadores da culpa do agente, deverá formar nova situação litigiosa a fim de guerrear contra seu preposto. Ao revés, se o autor insurgir-se contra o ato lesivo e atribuir culpa ao agente público, este poderá coadjuvar na defesa do denunciante, exatamente porque o debate sobre a culpa subjetiva interessará a ambos.
Mas diferentemente do que já lecionaram, entendo ser desinteressante discutir se o causador do dano é identificável, se a falta é anônima, ou se o ato ilícito decorreu de falha mecânica, força maior ou caso fortuito. O que deve averiguar o intérprete é se dos fatos expostos pelo autor e das conseqüências jurídicas daí resultantes emergem elementos suficientes para, in casu, identificar o agente responsável pelo ato.
Se positivo, cabe a denunciação, mas não genericamente a obrigação do agente em indenizar, mesmo diante da condenação do Estado. Cumpre, pois, e na instrução processual, evidenciar a ilicitude do ato praticado pelo servidor, quando então, uma vez comprovada a sua culpa, a sentença servirá de título para duas execuções: uma execução contra a parte vencida e outra desta parte vencida contra o réu, contra aquele que, em face dela, está obrigado a reparar o dano sofrido.