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Dimitrius

Agenda 02/03/2018 às 13:10

Um robô criado com uma missão específica: a busca pelo sentido de "felicidade". Após tantas viagens e observações ao redor do mundo, constatou que a humanidade, a despeito de consagrar em seus textos mais belos, filosóficos, religiosos e jurídicos, o sentido de felicidade, e de se comprometerem a buscá-la em todos os momentos e em todas as circunstâncias, tudo o que fazem é exatamente o contrário...

Dimitrius

Ficción y Derecho

2017

Amsterdã, setembro de 2015.

Naquela noite, o juiz Oleg não conseguia pegar no sono.

Revirou na cama, debateu-se, procurou entre os lençóis uma posição mais cômoda. Depois, levantou-se devagarzinho para não acordar a mulher, pensou, pensou, imaginou a melhor solução para o caso e uma forma de demover o autor daquilo que em mais de trinta anos de magistratura lhe parecia uma completa insanidade. Foi até o quarto dos filhos, puxou o cobertor sobre o menorzinho e ficou um bom tempo velando o sono dos meninos, imaginando o que fariam de suas vidas, que futuro os esperava, quantas distâncias aqueles pezinhos teriam ainda de andar por aí até que se tornassem homens de bem. Foi à cozinha e bebeu sem vontade um copo d’água gelada. Andou para lá e para cá e quando se deu conta estava tiritando de frio na varanda da sala.

Olhou o céu repleto de estrelas.

E aquele silêncio.

Ficou ali matutando, matutando, considerando a evidência de que era um inexpressivo grãozinho de areia numa imensa bola que girava em torno do seu eixo numa velocidade incalculável, e em torno do Sol numa velocidade maior ainda. Se Einstein estivesse certo ⸺ pensou ⸺ e o universo estivesse mesmo em contínua expansão desde o Big Ben, para onde estaríamos indo agora? Quem está no comando? E se, por qualquer motivo, essa bola que nos serve de casa provisória desviasse o rumo e batesse de frente num planeta dez vezes maior?

Balançou a cabeça como que para tirar essas ideias da mente e sentou-se no sofá da sala. Ligou a televisão, atiçou o fogo da lareira e tentou não pensar no processo que teria de julgar no outro dia pela manhã.

Tudo inútil.

As frases e os dados dos autos passavam pela frente dos seus olhos, enfileirados como os carneirinhos que seu pai insistia para que contasse quando era menino e não conseguia dormir.

O que levaria alguém a isso? Frustração? Decepção? Melancolia? Ou suprema evolução?

Ninguém sabe.

Ajeitou o roupão de lã enquanto o jornal da madrugada noticiava um descarrilamento de trem em Maastricht, com muitos mortos e feridos. Ainda não se sabia a causa do acidente — o repórter dizia —, mas as autoridades acreditavam em falha humana por excesso de trabalho, negligência ou excesso de velocidade.

Foi até a estante, procurou com cuidado um livro cuja leitura lhe ocorrera àquela hora da madrugada. Abriu-o, folheou-o a esmo, fechou-o sem ler coisa alguma e foi de novo até a varanda. O vento gelado assoviava entre as árvores do jardim e açoitava sem piedade os fios elétricos já enrijecidos por uma grossa camada de gelo. Um gato madrugueiro se esgueirava entre os blocos de prédios à caça de comida ou simplesmente perambulando por aquele punhado de casas que julgava seu território.

"É, Oleg ⸺ disse para si mesmo ⸺, amanhã há de ser outro dia”.

Fechou a janela da varanda e voltou para a cama. Ficou ali lutando com a insônia e nem sabe ao certo a que horas o sono finalmente o pôs a nocaute. Acordou assustado, às seis da manhã, com o despertador anunciando que havia uma vida lá fora precisando dele, e ele não tinha o direito de dizer não. Banhou-se, fez rapidamente a barba enquanto esquentava o café desidratado, vestiu-se e foi em direção ao metrô com uma papelada embaixo do braço enquanto ajeitava a gravata que teimava em medir forças com o vento cortante daquela manhã em Amsterdã.

Em dez ou quinze minutos estaria no tribunal, exatamente como fazia há mais de trinta anos desde quando, ainda jovem, decidira que queria ser juiz.

O interrogatório

⸺ Nome? ⸺ o secretário de audiências indagou-lhe rispidamente, com aquela cara branquela e estúpida de quem fazia isso dez ou quinze vezes por dia, cinco dias por semana, dozes meses por ano durante mais de vinte anos.

⸺ Dimitrius X-899 ⸺ respondeu-lhe o autor da ação. ⸺ .Um produto do Departamento de Engenharia Cibernética da Royal Randstad Co. Ano de fabricação 2015, em Amsterdã, Holanda.

⸺ Humano, humanoide ou máquina, Sr. Dimitrius?

⸺ Máquina, Sr. funcionário. Sou um robô e penso, mas não como os humanos. Penso de forma objetiva, cartesiana, pragmática. Tenho inteligência e raciocínio acima da média. Meus criadores são PHD em cibernética. 

⸺ Ok. Basta ⸺ disse-lhe o secretário de audiências— A partir de agora, dirija-se apenas ao Juiz Oleg e responda  as perguntas que ele lhe fizer .

Em seguida, virou-se para o juiz Oleg, que a tudo assistia com o olhar perdido em algum lugar da sua infância, e disse:

⸺ Qualificado, Excelência.

O juiz Oleg abriu os autos, deteve-se na petição inicial e perguntou a Dimitrius:

⸺ Li direito, Sr. Dimitrius? É isso mesmo o que o Sr. quer?

Dimitrius ficou um tempo de cabeça baixa, cruzou as mãos sobre os lábios e, calmamente, respondeu ao juiz:

⸺ Tudo nesta vida tem começo, meio e fim, Excelência. Isso vale para pessoas ou coisas. A finitude não é uma circunstância. É um fato consumado. O que quero é exatamente o que está escrito na petição inicial.

⸺ Se a vida e o fim dela são, como o Sr. diz, um fato consumado, não lhe parece que o melhor a fazer é simplesmente seguir vivendo e esperar que esse fato se consume? Por que antecipar um fim irremediável e certo?

⸺ Depende, Sr. Juiz. Toda vida deve ter um propósito. Nem mesmo os animais invertebrados vivem por viver. Como diz a doutrina Seicho-no-iê, “nenhuma folha se desprende da árvore sem que tenha chegado a sua hora”. Tudo o que é vivo vive porque tem um propósito.

⸺ Nesse caso, Sr. Dimitrius, se sua premissa estiver certa, devo supor que também eu viva por um propósito. Qual seria?

⸺ Assim como a alma é o que mantém o corpo em pé, Sr.Juiz, o propósito é o que mantém a vida viva.

⸺ E qual seria o meu propósito, Sr. Dimitrius?

⸺ O Sr. é um instrumento, Excelência. Dentro do cidadão Oleg mora o juiz Oleg, e dentro do juiz Oleg mora a alma do cidadão Oleg. Um não existe sem o outro. Quando o cidadão prevarica, o juiz também se corrompe. Quando o juiz se acovarda, o cidadão também se apequena. O Estado, a Lei e a Ordem chegam aos necessitados através de suas mãos. O dia em que o Sr. prevaricar, fraquejar, corromper ou permitir que o corrompam, o relógio da tolerância dirá que é chegada a hora de abandonar a profissão porque terá perdido o seu propósito.

⸺  E qual era o seu propósito, Sr. Dimitrius?

⸺ Eu sou eu e minhas circunstâncias, Excelência[1]. Dizem que fui construído para desempenhar uma missão que iria gerar novos paradigmas de reflexões para um mundo melhor, mais justo, menos violento e mais paritário. Não sei ao certo o que esperam de mim, sei o que disseram à mídia. Planejei, durante um bom tempo, o dia do meu debut. Já me via cercado de repórteres do mundo inteiro, meu nome circulando nos jornais e revistas da mais alta reputação divulgando o evento do século. Foi minha primeira decepção com os humanos. Todas as glórias e todo o glamour foram creditados a meus criadores.  As pessoas me olhavam, me fotografavam como se eu fosse um alienígena, um ser não gestado pelos métodos naturais e jogado a fórceps num mundo completamente estranho e hostil.

⸺ Quem é, afinal, Dimitrius X-899?

— Dr. Oleg, como os outros robôs de terceira geração, e da minha categoria, passei por todas as fases de montagem. Tenho um controlador (esta é a minha parte central, dotada de um microprocessador e memória para execução dos programas que vão determinar); sensores ( componentes responsáveis por detectar sinais como tato, imagens e sons e que vão me permitir ativar um mecanismo de processamento para enxergar cores, luz, imagens, escutar sons). Meu conhecimento e memórias são tridimensionais e sou capaz de desenvolver meu próprio conhecimento a partir de um objetivo definido. Em suma: sou capaz de autoprogramação a partir de um sistema que meus criadores desenvolveram para a missão de que vão me incumbir; atuadores (são meus motores de diversos tipos como mecânicos, elétricos, hidráulicos ou pneumáticos e são responsáveis por meus movimentos); manipuladores (meus braços e pernas que me proporcionam variedade de movimentos de acordo com minha estrutura); engrenagens (rodas dentadas que me dão força e velocidade); eixo (peça que liga o motor às engrenagens ou rodas); fonte de energia (fonte da minha alimentação, ou seja, minha bateria, o meu “coração”); fiação (transmite sinais entre o controlador, os sensores e os atuadores e também para a alimentação desses componentes); estrutura (é o meu corpo, formado por diversas peças de tamanho, formato e cores diversas entre elas rodas, parafusos e placas).

— Entendo, Sr.Dimitrius. Mas me refiro a quem é Dimitrius além de um punhado de aço, engrenagens e sistemas interligados.

Dimitrius ficou em silêncio por algum tempo, e respondeu:

— Um ser desiludido, Excelência.

— Entendo, Dimitrius. Conte-me sua história. Que caminhos o trouxeram até aqui?

— Bem, Excelência, em princípio alugaram uma casa em algum lugar de Leidseplein para me instalar e dar início à minha missão.

— Ah, claro! — respondeu-lhe Oleg —. O Sr.veio ao mundo físico com uma “missão”...

— Falo dela daqui a pouco, Magistrado. Por agora, permita-me continuar.

— Claro, claro. Prossiga.

— Bem, já era noitinha quando finalmente cheguei à casa. Notei que sobre a mesa havia um envelope com meu nome, lacrado e sobrescrito com a palavra “confidencial”. O que me disseram é que fui criado para explorar o mundo. Ninguém me falou em segredos, conspirações, armadilhas, tramas ou algo parecido. Enquanto eu folheava as páginas de um dossiê cuidadosamente elaborado, me questionava se realmente o destinatário estava correto. O dossiê falava em uma pesquisa detalhada da chamada “felicidade” em vários países do mundo. Ao acabar de ler fiquei estático. Será que esperavam que soubesse o que é felicidade? Sou um robô. Não fui criado para sentir. O que pensam, afinal? Que tenho de cumprir com sucesso uma missão ultra-secreta? Pior que isso: sem ter sido programado para sentir? Quando me dei conta, já tinha amanhecido e eu ainda estava com o envelope em minhas mãos, sentindo-me traído.

A única certeza é que ficaria com todas as dúvidas.

— E por que tanta surpresa com uma missão tão simples?

Dimitrius riu:

— Simples, Sr. juiz? Fui programado a partir da lógica fuzzy, isto é, uma lógica não-aristotélica que parte da premissa de que um fato pode ser verdadeiro, falso ou meio verdadeiro. Como investigar “felicidade” em meio a esse emaranhado?

— Para mim parece simples: primeiro, admitiria que o fato é verdadeiro; depois, que seria falso e, por fim, que seria meio verdadeiro. E exploraria cada uma dessas premissas a partir dos ados investigativos que por acaso obtivesse. Não lhe parece elementar?

— Excelência, pedir a um robô que defina o que é felicidade é o mesmo que pedir a um filósofo para criar um robô. Ele simplesmente não saberá por onde começar. Pois bem. Fui programado para cumprir missões. Não fui programado para analisar os sentimentos efêmeros da vida ou entender questões subjetivas como felicidade, amor, dor.

— Se lhe pareceu algo surreal, por que não recusou a missão?

— Pensei nisso, Sr. juiz, mas minha programação não permite abortar missões. Tenho que começar. Mas por onde? Pelo óbvio. Processei imagens e vi que, por sorte, ou talvez intencionalmente, equiparam minha a casa com uma vasta biblioteca. Primeiro passo: procurar o sentido denotativo de felicidade para os menos evoluídos, digo, humanos. Arrisco a pensar em ir à biblioteca, mas aquele dia não saía da minha cabeça.

— Por alguma razão especial?

— Sim. Aquele era o dia da minha exposição, o dia em que seria apresentado ao mundo. Tinha de reconhecer que, apesar de me sentir traído, era um dia de glória. Decidi me dar de presente um dia de várias lembranças boas da minha  gestação. Lembrei-me do processo de minha criação desde o mapeamento em que organizaram dados sensoriais para que eu pudesse “navegar” de forma autônoma em qualquer ambiente e planejasse tarefas. Lembrei-me, exatamente, de quando me instalaram a placa periférica da criação, dispositivo com base no qual um robô aciona o processo de criação, um método em que o robô escolhe a tarefa a ser realizada com base nas ordens de um operador humano. Sou um robô e tenho de honrar minha inteligência artificial.

— O que o faz supor que é um robô diferente desses milhares que a indústria produz ano a ano e estão por aí na linha de montagem de automóveis, na vigilância, nos serviços domésticos, nas bombas de gasolina?

— Fui construído a partir de um módulo YAN1105 HigthTech com sonares e sensores infravermelhos que acusam quando minha bateria entra em estado pré-critíco. Não há necessidade de nenhuma ação humana pois um microprocessador realiza a leitura dos sensores e aciona uma ponte própria que suprirá a energia nos níveis adequados. Só preciso ficar sentado até ouvir um alerta de ativação da bateria. A partir de um conceito primário consigo replicá-lo indefinidamente até encontrar a solução desejada. Isso me faz diferente de qualquer outro de minha espécie. Posso replicar o conhecimento indefinidamente e imaginar hipóteses para submeter a solução a testes hipotéticos e verificar se as conclusões de mantêm.

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— Entendi. Falemos mais da sua missão.

— Bem. Já completamente abastecido, comecei minha missão. Minha visão privilegiada de 4D tem capacidade de localizar os livros independentemente do tamanho, forma ou posição, e ordená-los em funções sob quaisquer critérios e acompanhar linhas visuais em alta velocidade, com infinita capacidade de memorização. Em poucos dias li todo o material armazenado na biblioteca, livros, revistas, periódicos. Para cumprir a missão, precisei armazenar em meu cérebro artificial todas as informações mais relevantes sobre o conceito de “felicidade”. Confesso que estou bem confuso com o que o li e cheguei à conclusão de que o ser humano é altamente contraditório, mas isso não me diz respeito. Sou pragmático. Fui programado para entregar um relatório objetivo e secreto sobre a codificação da felicidade e o que menos importa é a falta de bom senso do ser humano, mas não posso me furtar de anotar no meu diário secreto, de forma criptografada, as impressões que colhi.

— Chegou a alguma conclusão?

— Bem. Comecei pela leitura do conceito de felicidade. Maomé remarcou a caridade e a esperança numa vida após a morte como elementos fundamentais para uma felicidade duradoura, eterna[2]. Platão ensinou que o justo, e apenas o justo é feliz; ou que temos de conduzir os homens a crer nisso. E, de fato, o problema da justiça tem uma importância tão fundamental na vida dos homens, a aspiração à justiça está tão profundamente enraizada nos seus corações porque, no fundo, emana da sua indestrutível aspiração à felicidade[3]. Para Aristóteles, a felicidade não está ligada aos prazeres ou às riquezas, mas à atividade prática da razão. Em sua opinião, a capacidade de pensar é o que há de melhor no ser humano, uma vez que a razão é nosso melhor guia e dirigente natural.  Se o que caracteriza o homem é o pensar, então esta é sua maior virtude e, portanto, reside nela felicidade humana. Para Sócrates, a felicidade era uma equação: ciência = virtude = felicidade. Esta é a equação socrática, que quer dizer que o bem é igual ao útil. Ou seja, as pessoas fazem o bem por interesse próprio porque é o que vai levá-las à felicidade. Sócrates supunha que as pessoas deveriam agir corretamente, pois estando no caminho certo, a tendência seria essa pessoa ser feliz. Mesmo assim, eventos externos podem modificar o resultado. Sólon acreditava na felicidade apenas como uma condição dada ao cidadão depois da sua morte, ou melhor, a felicidade só lhe seria concedida se tivesse passado pela vida com sorte e sem infortúnio até o final. Kant afirmou que a felicidade é um bem condicionado, tendo em vista que insuficiente para fundamentar um fim moral por ser determinada por um elemento empírico, formalmente indeterminado e indeterminável. Neste sentindo, o ser humano não tem condições necessárias para delimitar precisamente o conjunto de condições necessárias para a sua perfeita felicidade. Para Spinoza, podemos nos assemelhar cada vez mais a Deus se nos ascendermos em nossas ideias substituindo nossas percepções confusas por ideias adequadas (subespecie aeternitatis). Cada ideia na mente corresponde a uma modificação no corpo. Quanto mais adequada é a ideia, mais a causa é interna ao sujeito (potência de agir, conatus). Assim, aquele que faz uso adequado da razão se esforça por um aumento de sua potência de modo a transformar a paixão em ação e tornar-se mais livre. Essa aproximação da liberdade, para Espinoza, corresponde à felicidade[4]. Para Marx, a verdadeira felicidade do povo implica a supressão da religião. A religião seria uma felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da crítica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade[5]. Santo Agostinho rompe com esse conceito do mundo antigo pois centra toda sua tese sobre a felicidade em Deus. Rompe com a tradição filosófica e propõe não mais a filosofia como porto da felicidade, mas a posse de Deus. Só a posse de Deus garantiria e produziria a felicidade: se alguma coisa merece ser designada como dom de Deus, certamente é a vida feliz[6]. São Thomas de Aquino ensina que tudo o que é desejável em qualquer bem-aventurança, seja verdadeira ou até mesmo falsa, preexiste total e eminentemente na bem-aventurança divina. Portanto, todo gozo, sabor, maravilha, poder, glória e riqueza possíveis ao homem estão contidos na felicidade de Deus[7]. Schopenhauer, no século XVIII, chamou de eudemonismo aquilo que entendia como a arte de ser feliz, assinalando que desenvolver uma atividade, dedicar-se a algo ou simplesmente estudar são coisas necessárias à felicidade do ser humano. Aliás, o grego  eudaimonia pode ser traduzido como florescimento. Foley, inclusive, lembra que nada como uma palavra grega para dar peso intelectual[8]. Para Friedrich Nietzsche, as pessoas só são capazes de uma felicidade reduzida: o fato de a sua sensatez não poder lhes proporcionar mais felicidade  não constitui argumento contra ela, não mais do que se deve ver um argumento contra a medicina no fato de serem algumas pessoas incuráveis e outras sempre doentias. Que cada um possa ter a hipótese de encontrar justamente a concepção da vida que lhe permita realizar o seu máximo de  felicidade: isso não impede necessariamente que a sua vida permaneça lastimável e pouco invejável[9]. LaoTsé defendeu que a harmonia na vida podia ser alcançada através da união com as forças da natureza[10]. Já, Confúcio , acreditava na felicidade devido à harmonia entre as pessoas, enfatizando o dever, a cortesia, a sabedoria e a generosidade como elementos que permitiriam uma existência feliz. Freud afirma que o que se chama felicidade no sentido mais estrito resulta da satisfação bastante súbita de necessidades fortemente postas em êxtase e, por sua natureza, é possível somente como um fenômeno episódico”[11].

— Sim. Prossiga.

— A partir de todas as informações, concluí: como Maomé pode associar a felicidade após a morte? Segundo o direito dos homens, a felicidade não é um direito em si mesmo, mas uma circunstância imposta por uma lei. A felicidade seria um direito alcançado após a morte com felicidade duradoura. A felicidade não é terrena. Logo, só os que morrerem é que terão direito à felicidade? Para Platão, somente o justo alcançaria a felicidade. 

— E qual é o sentido do justo, Sr. Dimitrius?

— Excelência, isso eu também me pergunto. Se o mundo não é justo, como as pessoas que não são justas poderiam alcançar a felicidade? Aristóteles dizia que a felicidade está no pensar, na razão. Eu poderia, então, concluir que todos os robôs  que pensam seriam felizes.

— Mas a possibilidade de pensar — seja um robô ou uma pessoa humana —não é já meio caminho andado na busca da felicidade, Sr. Dimitrius?

—A felicidade pode não estar apenas no pensar, Dr. Oleg, pois, como robô, penso e não sou feliz por não ser dotado de emoções. Para Sócrates, a felicidade está atrelada ao agir corretamente. E se um pai mata o estuprador de sua filha de um ano de idade? Está fadado à infelicidade? Agiu corretamnte? Sólon defendia que a felicidade seria um privilégio dos que, durante a vida, tivessem sorte e não tivessem qualquer infortúnio. Somente poderia ser desfrutada após a morte. E os miseráveis de alma? E os que, a vida inteira, por qualquer circunstância, convivessem com o azar? Não teriam direito à felicidade? Ora, Kant dizia que o conceito de felicidade não pode ser empírico, não há necessidade de comprovação científica, pode ser determinado ou determinável, pois parte da experiência vivenciada pela pessoa e não o conjunto de condições necessárias para a definição de felicidade plena. Pelo que li e entendi, empírico é aquele conhecimento adquirido durante toda a vida, no dia a dia, que não tem comprovação científica nenhuma. A felicidade não pode partir de um conjunto de conhecimentos e sensações vivenciadas? Por que restringir a felicidade somente às experiências individuais? Será que as experiências alheias não podem proporcionar felicidade às pessoas? Para Spinoza, somente os seres que possuíssem ideias mais adequadas, menos confusas, é que fariam melhor uso da razão. A felicidade seria um sentimento intrínseco não ligado à confusão ou adequação de ideias. Por que a adequação de ideias ou mesmo a confusão apartaria a felicidade? Para Marx, a verdadeira felicidade do povo implicaria na supressão da religião. A fé implicaria uma felicidade ilusória? Tomás de Aquino e Santo Agostinho centram toda sua tese de felicidade em Deus. E quem não crê em Deus estaria fadado à infelicidade? Confúcio acreditava na felicidade enfatizando o dever, a cortesia, a sabedoria e a generosidade como elementos que permitiriam uma existência feliz. E quem fosse descortês, ignorante ou egoísta? Seria eternamente infeliz? Freud afirmava que a felicidade no sentido mais estrito resultaria de satisfação súbita, só sendo alcançada como um fenômeno episódico. A felicidade é um sentimento efêmero?  Lao Tsé defendeu que a harmonia na vida podia ser alcançada através da união com as forças da natureza. E quem não tivesse afinidade com a natureza? Jean-Jacques Rousseau defendia que o advento da civilização destruiu o estado original de harmonia. A recuperação da felicidade original do ser humano deveria objetivar o retorno deste à sua simplicidade . E as pessoas soberbas por natureza?  E os ricos? Estariam fadados à infelicidade eterna?

— E depois de tantas leituras, o que o Sr. concluiu?

— Bem, Excelência, confesso que li mais de uma centena de definições de felicidade. Fiquei atordoado com meus questionamentos. Como enfrentar uma missão com o cérebro completo de dúvidas e contradições? Definitivamente, o ser humano é muito complexo. De qualquer sorte, dei o primeiro passo: mesmo não podendo sentir a felicidade, e não poderia ser diferente, agora tenho parâmetros objetivos (será?) para minha missão.

— Posso concluir, então, que hoje o Sr. é um especialista em felicidade?

Dimitrius deu uma gargalhada:

— Quem dera, Excelência! Quem dera! Essa é apenas a primeira parte do meu caminho. A segunda era ainda mais penosa.

— E em que consistia?

— No dia seguinte, dei início à minha pesquisa de campo: minha peregrinação pelo mundo na pesquisa da codificação da felicidade.

— Teve êxito nisso?

— Excelência, decidi começar pela Libéria, localizada na África Ocidental. O art.1º da Constituição liberiana codifica felicidade da seguinte forma:

“Todo poder é inerente ao povo. Todos os governos livres são instituídos por sua autoridade e para seu benefício e têm o direito de alterá-los e reformá-los quando sua segurança e felicidade assim o exigirem. A fim de assegurar um governo democrático que responda aos desejos dos governados, o povo tem o direito, em tal período e de acordo com a forma prevista nesta Constituição (...)”

Percorrendo as ruas desse país vi que seus habitantes sofrem com vários problemas socioeconômicos. Fui à Monróvia, sua capital, e pude perceber que o desemprego atinge grande parte da população. A fome e a desnutrição castigam os habitantes. Uma das imagens que vi me deixou especialmente atordoado[12]:

Qual o propósito de uma Constituição assegurar que os “governos livres são instituídos por sua autoridade e para seu benefício e têm o direito de alterá-los e reformá-los quando sua segurança e felicidade estiverem ameaçadas”? Vi, de perto, a doença e a fome assolando o país. Que felicidade é essa que os governantes asseguram ao povo? A felicidade da infelicidade?

Já, na Mongólia, uma nação asiática localizada entre a Rússia e a China,a felicidade é assim prevista no art.12 de sua Constituição:

“Na parte superior do brasão do Estado haverá Chandmani significando o passado, o presente e o futuro, enquanto que em sua parte inferior o Hourd como a felicidade com o progresso E prosperidade, com um padrão de montanha de cor verde, que representa a Mãe - Terra, serão representados respectivamente”.

Passeando por suas ruas, percebi que é um país economicamente pobre e as atividades primárias são a base da sua economia. Aproximadamente 30% da população são nômades ou seminômades. O hino nacional da Mongólia, criado em 1950, tem um parágrafo que me chamou a atenção:

“Brilho do povo heróico da Mongólia

 Tenha liberdade e felicidade

Chave de felicidade, a coluna de prosperidade

O nosso grande país vai prosperar. ”

Na Mongólia, mais da metade da população vive abaixo da linha da pobreza. Calcula-se que 30% dos mongóis sejam subnutridos.

Assim como na Libéria, na Mongólia duas cenas me impressionaram[13]:

Como assegurar felicidade às pessoas se vejo olhares tristes, questionadores e sofridos, e, de outro lado, de forma paradoxal,o sorriso de uma criança ao segurar um animal? Isso já é o bastante para fazê-la acreditar na felicidade?

Depois, fui à Namíbia, um país da África Austral limitado ao norte por Angola e Zâmbia, a leste pelo Botswana, a sul pela África do Sul e a oeste pelo Oceano Atlântico. Pelo que pude ver, um dos grandes problemas é a desigualdade da distribuição de renda. A maioria da população é negra e pobre, enquanto a minoria branca concentra a maior parte das riquezas. O analfabetismo atinge 12% dos habitantes e alta taxa de mortalidade infantil. A incoerência de sua Constituição saltou-me aos olhos:

“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis ​​de todos os membros da família humana é indispensável para a liberdade, a justiça e a paz;

Considerando que os referidos direitos incluem o direito do indivíduo à vida, à liberdade e à busca da felicidade, independentemente da sua raça, cor, origem étnica, sexo, religião, credo ou estatuto social ou económico; (...)”

Como acreditar que todos podem buscar a felicidade sem levar em consideração a raça, cor ou origem? Mais uma vez, constatei o inexplicável paradoxo [14]:

Meu próximo destino foi a Nigéria, país localizado na África Ocidental e com fronteiras terrestres com a República do Benim a oeste; com Chade e Camarões a leste e com o Níger ao norte. Sua costa encontra-se ao sul, no Golfo da Guiné, no Oceano Atlântico. Já li que este país é conhecido como o “gigante da África” em razão de sua população e economia. Caminhando  pela cidade de Lagos, uma das maiores da Nigéria, deparei-me com uma grande aglomeração de pessoas desprovidas de serviços públicos de infraestrutura básica como moradia, alimentação, saúde, educação, entre outros.

A desigualdade na distribuição de riquezas é flagrante.

No art.74 da Constituição da Nigéria há um compromisso firmado pelo Ministro de trabalhar incansavelmente pela felicidade do povo:

“Antes de assumir as suas funções, o Primeiro Ministro toma, perante a Assembleia Nacional, no Livro Sagrado da sua confissão, o seguinte juramento: "Diante de Deus e diante dos representantes do soberano povo nigeriano, nós ..., Primeiro-Ministro, Chefe do Governo, juramos solenemente sobre o Livro Sagrado: Respeitar a Constituição que o Povo tem dado livremente a si mesmos; Para cumprir fielmente as altas funções com que fomos investidos; Respeitar e defender a forma republicana do Estado; Respeitar e defender os direitos e liberdades dos cidadãos; Não tomar nem garantir quaisquer medidas que degradem a dignidade humana; Assegurar a neutralidade da administração e o respeito aos textos que estabelecem sua despolitização; A trabalhar incansavelmente pela felicidade do Povo; Conduzir-nos por toda parte como fiel e fiel servo do Povo’;

Como um homem pode jurar diante de Deus que trabalhará incansavelmente pela felicidade de seu povo e ostentar tamanha riqueza enquanto o povo padece na miséria?

Por mais que eu seja um robô, não saiba sentir, sei pensar! Cheguei a pensar que houve um engano no que efetivamente esperavam de mim.

Segui para o Paquistão, um país asiático que faz fronteira com a Índia, a leste, com o Afeganistão a oeste e norte, com o Irã a sudoeste e com a República Popular da China no extremo nordeste. O Paquistão é altamente militarizado, inclusive com armas nucleares, e se envolveu em tensões políticas com os Estados Unidos por abrigar integrantes da milícia talibã, perseguidos no Afeganistão. Minha viagem ao Paquistão foi um divisor de águas. Foi o momento em que cheguei a pensar em desistir de tudo e sumir para sempre, negar até mesmo a minha condição de robô. A forma como as mulheres são tratadas seria motivo, no mínimo, de revolta para os humanos.  A mulher tem poucos direitos, sendo considerada propriedade da  família até o momento em que se casa, em que seus novos "donos" passam a ser os familiares de seu marido, e ela pode morrer se for considerado ter desonrado a família. Soube de um caso o caso em que a jovem Farzana Parveen chocou o mundo. Foi apedrejada mesmo grávida, por sua própria família, pelo fato de ter se casado com um homem por quem se apaixonara, ao invés de casar-se com o homem “escolhido” para ela. O apedrejamento ocorreu diante de policiais e de transeuntes. Pela perplexidade que o caso teve na mídia internacional, o pai, o irmão, o primo e o ex-noivo de Parveen foram condenados à pena de morte por assassinato. Outro de seus irmãos foi condenado a 10 anos de prisão. Só depois de saber deste caso me detive à minha missão. Fui ler o que dizia a Constituição do Paquistão:

“Para que o povo do Paquistão possa prosperar e alcançar o seu lugar legítimo e honrado entre as nações do mundo e fazer a sua plena contribuição para a paz internacional e progresso e felicidade da humanidade”.

Não acreditei no que li.

Como podem considerar a coexistência do apedrejamento de mulheres com “felicidade da humanidade”?

Voltei correndo para o quarto do hotel em que me hospedei.

O pior aconteceu: várias mensagens apareceram na minha tela de comando indicando panes iminentes nos meus controles de precisão, cinemático, dinâmico, adaptativo e externo. Hackers, incomodados com minhas investigações, haviam decidido que era chegada a hora de me infectar e destruir. Uma das minhas “criadoras” entrou em contato remoto avisando-me do perigo iminente e passando-me uma série de comandos que eu não sabia se queria seguir. Por instantes, a tensão prevaleceu. Não sei o que me levou a seguir todas as ordens que recebi de Sally, mas horas depois os danos foram reparados.

Refeito, continuei minha viagem para o Haiti, um país do Caribe que ocupa uma pequena porção ocidental da ilha de Hispanhola no arquipélago das Grandes Antilhas. Ao longo do século 20, o país sofreu sob o jugo de terríveis ditadores apoiados pelos EUA. Papa Doc é o mais conhecido deles.

O Haiti foi vítima de um intenso terremoto, época em que já vivia uma situação dramática, de completo abandono, sem qualquer projeto econômico. A capital, Porto Príncipe, foi devastada, agravando ainda mais a situação da população.

A Constituição Federal garante como direito inalienável do povo haitiano a busca à felicidade:

“O povo haitiano proclama esta Constituição:

Garantir seus direitos inalienáveis ​​e imprescritíveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade; De acordo com seu Ato de Independência de 1804 e com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.

Constituir uma nação haitiana, socialmente justa, economicamente livre e politicamente independente”.

O que vi não foi diferente dos outros países: fome, corrupção, tristeza e desgraça social. [16]

Quando cheguei à França, deparei-me com outra realidade. Parecia outro mundo, um choque de cultura e modernidade. A França é um dos países mais desenvolvidos, possui a quinta maior economia do mundo por PIB nominal, a nona maior por paridade do poder de compra e a segunda maior de toda a Europa. Tem um alto padrão de vida, elevado nível de escolaridade pública e uma das mais altas expectativas de vida do mundo.  Classificada como o melhor provedor de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde (OMS), tem o terceiro maior orçamento militar do mundo, a terceira maior força militar da OTAN e o maior exército da União Europeia, além de ser um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas e possuir o terceiro maior número de armas nucleares.[17]

Ali, o direito à felicidade também era codificado:

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO

“Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e consagrados do homem, para que esta declaração, sempre presente em todos os Membros do corpo social, recorde-lhes incessantemente os seus direitos e os seus deveres; para que os atos do poder legislativo, e os do poder executivo, podendo a cada momento serem comparados com o objetivo de qualquer instituição política, sejam mais respeitados; para que as queixas dos cidadãos, fundadas doravante sobre princípios simples e incontestáveis, estejam sempre voltados para a manutenção da Constituição e a felicidade de todos”. [18]

Tive a falsa impressão de que na França a felicidade era absoluta, mas vi muitos rostos com lágrimas estampando falsos sorrisos. Difícil de entender a felicidade!

No Japão, outro choque de cultura. É uma grande potência econômica, que  possui a terceira maior economia do mundo em PIB nominal e a quarta maior em poder de compra. É, também, o quarto exportador e o quarto maior importador do mundo. O país mantém uma força de segurança moderna e ampla, utilizada para autodefesa e para funções de manutenção da paz. Possui padrão de vida muito alto, com a maior expectativa de vida do mundo e a terceira menor taxa de mortalidade infantil[19].

O art.13 de sua Constituição me chamou atenção pela preocupação com o respeito dos indivíduos e a busca da felicidade:

“Todas as pessoas devem ser respeitadas como indivíduos. Seu direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade deve, na medida em que não interfira com o bem-estar público, ter consideração suprema na legislação e em outros assuntos governamentais      “.

Fiz questão de ficar um pouco mais neste país para tentar entender um intrigante enigma: como uma potência mundialmente reconhecida por sua economia, tecnologia, segurança e outros tantos atributos também era conhecida pelos inúmeros suicídios? 

Não preciso dizer que minha curiosidade ficou sem resposta.

Era incoerente demais para fazer sentido.

Andei por aí e fui parar na Suíça. O preâmbulo de sua Constituição, diz:

“Considerando que todos os ramos do governo são os Guardiões da Constituição, é necessário que os tribunais sejam os intérpretes definitivos da Constituição;

Considerando que, como Nação, desejamos avançar progressivamente sob a nossa própria constituição, garantindo paz, ordem e bom governo, bem como a felicidade e bem-estar de TODOS os nossos povos”.

Na Coreia do Sul, o art.10 da Constituição, diz:

"Todos os cidadãos têm assegurado valor humano e dignidade e têm o direito de busca pela felicidade. É dever do Estado para confirmar e garantir os direitos fundamentais e invioláveis da pessoa humana”.

O Preâmbulo da Constituição egípcia, diz:

“Compartilhar Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso

Esta é a nossa Constituição; Este é o Egito; Uma pátria que vivemos tanto quanto ela vive em nós. Na era moderna, as mentes foram iluminadas, a humanidade tornou-se madura, e nações e povos progrediram no caminho da ciência, erguendo as bandeiras da liberdade e da igualdade. Mohamed Ali fundou o moderno Estado egípcio com um exército nacional como seu pilar. Refaa, filho de Al-Azhar, rezou para que a pátria se tornasse "um lugar de felicidade comum para o seu povo". Nós, egípcios, esforçamo-nos para acompanhar o ritmo do desenvolvimento, oferecemos mártires e fizemos sacrifícios em várias revoltas e revoluções até que o nosso exército patriótico deu vitória à vasta vontade popular na "Revolução de 25 de Janeiro a 30 de Junho" Pão, liberdade e dignidade humana dentro de um quadro de justiça social, e trouxe de volta o livre arbítrio da pátria”.

A Constituição do Reino do Butão[20] é, das existentes e que cuidam desse tema, a mais rica em pormenores. Foi no Butão que se criou a Felicidade Interna Bruta (FIB), também chamado de Índice Nacional de Felicidade Bruta (INFB) ou Felicidade Nacional Bruta (FNB) ou Índice Nacional da Felicidade (INF), usando indicadores sobre situação econômica, bem-estar, cultura, comunidade, educação, saúde, ecologia, padrão de vida e qualidade de governo para identificar o grau de felicidade da população, como apontarei adiante.

O Preâmbulo de sua Constituição do Butão assinala o comprometimento com a felicidade permanente das pessoas, nos seguintes termos:

" SOLENEMENTE comprometendo-nos a fortalecer a soberania do Butão, para proteger os benefícios da liberdade, para assegurar a justiça e a tranquilidade e para reforçar a unidade, felicidade e bem-estar do povo de todos os tempos”.

Por seu turno, cria o art. 9º, 2, um novo índice, o da Felicidade Nacional Bruta ou Índice Nacional da Felicidade, como um dos princípios que regem o Estado buscando uma boa qualidade de vida para o povo do Butão (art. 9,1). O artigo 20, 1 consigna, na mesma linha, que o Governo (Poder Executivo) deverá garantir e promover as condições necessárias para a paz, segurança e bem-estar do povo.

Diversos países atribuem ao Estado responsabilidade constitucional pela busca de meios para a garantia do direito de ser feliz.

A Declaração de Direitos da Virgínia outorgou aos cidadãos o direito de buscar e conquistar a felicidade. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) há a primeira noção coletiva de felicidade, determinando que as reivindicações dos indivíduos sempre se voltarão à felicidade geral.

No Brasil, duas décadas depois de se aposentar, o fiscal da Receita Antônio Carreira Madeira foi surpreendido, aos 78 anos, com o corte de um adicional de 20% de seu salário-base. O Estado do Amazonas, onde ele trabalhava, alegou que o pagamento contrariava a Constituição de 1988. Antônio recorreu à Justiça, ao lado de diversos colegas que viram a aposentadoria minguar. Ao decidir o caso, em 2002, o Supremo Tribunal Federal (STF) usou um fundamento inusitado para determinar ao Estado que voltasse a pagar o adicional: o direito à busca da felicidade. Desde então, o termo “felicidade”, que não está em nenhum dos 250 artigos da Constituição de 1988, passou a ser cada vez mais mencionado por ministros de tribunais superiores para embasar decisões[21].

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não trouxe expressamente, em seu texto, o direito à felicidade, apesar de garantir um mínimo existencial (parcela mínima que cada pessoa precisa para sobreviver) para a proteção da dignidade da pessoa humana.

Recentemente, projeto de emenda à Constituição (PEC) sobre o assunto, de iniciativa do senador Cristovam Buarque, começou a tramitar no Congresso Nacional. Apelidado de "PEC da Felicidade" e já aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, o projeto pretende incluir a "busca da felicidade" entre os direitos fundamentais do cidadão brasileiro. Pela proposta, o artigo 6º da Carta Republicana de 1988 passaria a vigorar da seguinte forma: 

"Art. 6º. São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."

Na avaliação do jurista Luís Roberto Barroso, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, que fez uma defesa eloquente no STF no caso da união estável homoafetiva, o direito à busca da felicidade não tem uma dimensão normativa direta. Ele não é um direito fundamental, como os direitos à integridade física e à vida. “É um valor interpretativo que permite ao juiz escolher a alternativa que produza mais felicidade”, definiu Barroso. “A ideia de busca da felicidade, de bem-estar, deve estar sempre presente em qualquer atividade que lide com a pessoa humana. Quando vejo um ato de extrema Justiça, isso me faz um bem.”.

Aparentemente, poderíamos cogitar tratar-se de mais uma dentre as tantas emendas (e remendas) que o Texto Constitucional brasileiro, de pouco mais de vinte anos, iria sofrer, sem que, a rigor, tivesse um efeito verdadeiramente prático. Com isso, todos os direitos sociais passam a ser essenciais à busca da felicidade. Se implementados, darão chance ao direito social à felicidade, que, assim, será o maior de todos, porque representará o somatório deles.

A Declaração da Independência dos Estados Unidos registra no seu preâmbulo que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Procurar essa condição de felicidade, então, é um direito reconhecido ao homem, pelo menos ao habitante dos Estados Unidos, formalmente desde 1776.

Nos EUA existe um campo de investigação chamado “lawandhappiness” (direito e felicidade). Segundo os autores dessas investigações, elas poderiam servir como base de formulação de políticas que aumentem a felicidade geral das pessoas.

E assim, Excelência, andei pelo mundo e voltei ao ponto de partida sem nada nas mãos. Ou melhor: voltei com os meus pés cansados de tantas distâncias e o coração muito completo de vazios. Em algum desses lugares por onde andei deixei o meu propósito, a razão de estar vivo. E, como lhe disse, é o propósito que anima a vida. Onde não se vive por um propósito, não se vive. Como diz um conhecido poema do brasileiro Francisco Otaviano, “Quem passou pela vida em branca nuvem, e em plácido repouso adormeceu; quem não sentiu o frio da desgraça, quem passou pela vida e não sofreu, foi  espectro de homem, não foi homem, só passou pela vida, não viveu”. Só passei pela vida, juiz Oleg. Não vivi.

— Muito bem, Sr. Dimitrius. Volto à primeira pergunta que lhe fiz, no início desta nossa conversa: É isso mesmo o que o Sr. quer?

Dimitrius tornou a abaixar a cabeça, cruzou as mãos sobre os lábios e, calmamente, respondeu ao juiz:

⸺ Como lhe disse, Excelência, tudo nesta vida tem começo, meio e fim. A finitude não é uma circunstância. É um fato consumado.

⸺ Sr. Dimitrius, a nossa Constituição entende que a vida é um patrimônio da pessoa, e somente a pessoa pode definir o destino que quer dar a ela. O Sr. quer mesmo a eutanásia?

— Como lhe disse, Excelência, para viver é preciso um propósito. O direito de continuar vivendo cessa no momento em que esse propósito desaparece. O meu propósito morreu no dia em que a realidade se revelou para mim por inteiro, nua, crua, transparente, e eu descobri que existe uma diferença brutal entre a felicidade que as leis promovem assegurar aos homens e o arremedo de felicidade que realmente dão. Concordo que todos são iguais perante a lei, Juiz Oleg. As leis é que são diferentes. Alguns são, sim, mais iguais que outros[22]. Se posso tirar alguma conclusão de tudo o que li e vi, Excelência, creio mesmo que a felicidade é uma espécie de flor que somente floresce à noite, quando as pessoas estão dormindo. Ou, talvez, Saint-Exupéry estivesse certo quando disse que “o essencial é invisível aos olhos” e eu não o tenha visto. Hoje, entendo perfeitamente o que Sartre quis dizer: o inferno são os outros. Parece-me que a humanidade concorda com Nietzsche: “Sem crueldade não há festa”. Viver, meu caro juiz Oleg, “é desenhar sem borracha”[23].

— O Sr. obviamente sabe que seu ato não terá volta. Passou pela sua cabeça que o Sr. poderá sentir saudade desta vida, Sr. Dimitrius?

— “A saudade — culto juiz — é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar”[24]. Minha alma, supondo que eu tenha uma, só quer voltar ao que sempre fui: um nada, um erro cibernético, um amontoado de peças conectadas que, lá um dia, achou que podia pensar fora da caixa.

Oleg virou-se para o secretário de audiências, e disse:

— Vistos etc. Aos dois de setembro de 2015, na Sala de Audiências do 1º Juizado Civil de Amsterdã, compareceu Dimitrius X-899 e, diante deste magistrado, expôs as razões pelas quais, tendo sido programado para encontrar o sentido de “felicidade”, constatou que a humanidade, a despeito de consagrar em seus textos mais belos, filosóficos, religiosos e jurídicos, o sentido de felicidade, e de se comprometerem a buscá-la em todos os momentos e em todas as circunstâncias, tudo o que fazem é exatamente o contrário, e o que se vê é a vitória do mal sobre o bem, do errado sobre o certo, do imoral sobre o moral. E em assim sendo, julga ter fracassado em sua missão, ou, ao contrário, que a felicidade é algo acima da sua compreensão, e quer, por isso, exercer o direito previsto no art.74, §2°, “a”, de nossa Constituição: o direito à morte assistida porque não vê razão para continuar existindo. Tendo sido usados, sem êxito, todos os meios dissuasivos, e mantendo-se o requerente no firme propósito de que a sua existência termine pelos meios legais, julgo procedente o pedido. O desmonte de Dimitrius deverá ser feito em no máximo dez dias pelos mesmos técnicos que o idealizaram. As peças, se estiverem em bom estado, poderão ser recondicionadas e utilizadas em novos projetos. Caso sejam inservíveis, deverão ser fundidas e aproveitadas em projetos de menor qualidade, ou vendidas como sucata. Sem custas para o autor ou para o Estado. Com o trânsito em julgado desta sentença, arquivem-se os autos, com baixa. Cumpra-se.

Uma semana depois, a Royal Randstad Co, que idealizou e construiu Dimitrius X-899, endereçou ao juiz Oleg a seguinte notificação:

“Excelência:

Cumprindo determinação desse MM. Juízo esta empresa confirma a desconstrução da unidade Dimitrius X-899, reaproveitando parte das peças em bom estado. O Dr. Rutger Brunswichk, engenheiro responsável pela operação, registrou em seu relatório que, ao abrir a caixa toráxica da unidade, a placa-mãe, equivalente ao coração de uma pessoa humana, estranhamente apresentava intensa coloração avermelhada e pulsava como se fosse um autêntico coração humano. Parecia ter vida própria. O engenheiro registrou, ainda, que, antes que fossem fechadas definitivamente as telas de cristal líquido que lhe serviam de olhos, Dimitrius derramou duas gotas de líquido transparente, incolor e com ligeiro sabor salgado, que, segundo o laudo, “se assemelhavam a lágrimas”. Por fim, antes que a placa-mãe fosse desconectada dos sensores vitais, Dimitrius segurou as mãos do engenheiro e lhe disse: “Seja feliz”.

Atenciosamente,

Christiaan Boudewijn, CEO.


Notas

[1] A frase é do filósofo, crítico e ensaísta espanhol Ortega y Gasset.

[2] MAZLOUM, A. Reflexões sobre a felicidade. Disponível em http://hamzaabdullah357.blogspot.com/2010/03/reflexoes-sobre-felicidade.html

[3] “O problema da justiça”. KELSEN, Hans,p.65/66

[4] Proposição 21 da Parte IV da Ética (SPINOZA, Idem, p. 291). Disponível em: http://almirfabiano.blogspot.com.br/2013/03/o-conceito-de-felicidade-em-spinoza.html. Acesso em 2/3/2017

[5] RUBIN, Beatriz. O direito à busca da felicidade. Disponível em: <www.esdc.com.br/.../RBDC-16-035-Artigo_Beatriz_Rubin_>. Acesso em: 10 mar. 2012.

[6] SANTO AGOSTINHO. A Vida Feliz. In: Solilóquios e A Vida Feliz. São Paulo: Paulus, 1998. p. 14.

[7] São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, q. 26, a. 4

[8] FOLEY, Michael. A era da loucura. Trad. Eliana Rocha. São Paulo:Alaude, 2011,  p.14

[9] NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Disponível em: http://www.citador.pt/textos/cada-um-tem-o-seu-conceito-de-felicidade-friedrich-wilhelm-nietzsche

[10] WILKINSON, P. O livro ilustrado das religiões: o fascinante universo das crenças e doutrinas que acompanham o homem através dos tempos.

[11] Disponível em: http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/JaquelineFeltrin(58-67).pdf. Acesso em: 6/6/2017.

[12] Rainhamaria.com.br. Disponível em: http://www.opopular.com.br/editorias/mundo/em-lista-com-155-na%C3%A7%C3%B5es-brasil-%C3%A9-o-22-mais-feliz-1.1243935. Acesso em: 4/5/2017.

[13] Disponível em: https://naoelonge.files.wordpress.com/2011/10/dsc_50791.jpg

http://colunas.revistaepoca.globo.com/viajologia/2007/07/27/obrigado-mongolia/. Acesso em: 1º/1/2017.

[14]Disponível em: http://emalgumlugardomundo.com.br/tribo-himba-curiosidades-da-namibia/. Acesso em: 4/4/2017; Disponível em: https://www.chameleonsafaris.com/safari-namibia-PT_br/acampamento.asp. Acesso em: 2/1/2017.

[15]Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/03/as-comoventes-imagens-de-uma-crianca-acusada-de-bruxaria-sendo-ajudada.html. Acesso em: 11/3/2017; Disponível em: http://www.meionorte.com/noticias/internacional/explosao-mata-15-pessoas-na-nigeria-apos-posse-do-presidente-133352; Acesso em: 11/3/2017.

[16] Disponível em: http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/geografia/haiti.htm

https://br.pinterest.com/pin/74661306304292819/. Acesso em: 4/3/2017.

[17]Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7a. Acesso em: fev/2017.

[18]Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=fran%C3%A7a&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwimuZCylKjUAhWJIpAKHZB9BIAQ_AUIDCgD&biw=1366&bih=662#tbm=isch&q=fran%C3%A7a+pessoas&imgrc=A1IztBc6ttyQAM: Acesso em: 2/3/2017; Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=fran%C3%A7a&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwimuZCylKjUAhWJIpAKHZB9BIAQ_AUIDCgD&biw=1366&bih=662#tbm=isch&q=fran%C3%A7a+pessoas+tristes&imgrc=EDm8KVxTQ8CygM. Acesso em: 3/5/2017.

[19]Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jap%C3%A3o. Acesso em: 23/12/2016.

[20] De 18/7/2008.

[21]Disponível em: http://www.osconstitucionalistas.com.br/direito-a-felicidade. Acesso em: 1º/6/2017.

[22] A frase é de George Orwell, no livro “A Revolução dos Bichos”.

[23] Millôr Fernandes, crítico, jornalista e ensaísta brasileiro.

[24] A frase é de Rubem Alves, cientista social e filósofo brasileiro.

Sobre a autora
Monica Gusmão

Professora de Direito Civil, Empresarial e Trabalho de várias instituições, entre elas a FGV; membro do Fórum Permanente em Direito Empresarial da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro; autora de várias obras; articulista...

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUSMÃO, Monica. Dimitrius. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5357, 2 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59473. Acesso em: 18 nov. 2024.

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