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Autonomia privada versus autonomia da vontade: para além de uma mera preferência terminológica

Agenda 06/08/2017 às 15:00

O texto apresenta uma proposta de diferenciação técnica entre os termos "autonomia privada" e "autonomia da vontade", a fim de possibilitar maior precisão ao se operar com a nova teoria do contrato.

Luigi Ferri já advertia que “quem fala em autonomia da vontade na verdade desconhece o problema da autonomia privada”[1]. Busca-se, aqui, justamente identificar a terminologia mais precisa a ser utilizada pela tecnologia jurídica, dada a necessidade de compatibilização desses conceitos com o arcabouço teórico da moderna teoria do contrato.

A preocupação tem relevância prática, pois, conforme preleciona Eros Roberto Grau, as palavras são rótulos utilizados para viabilizar a comunicação e, em muitos casos, diferentes termos referem-se a diferentes significados. O problema para o Direito surge com a evidência de que os conceitos jurídicos, ao contrário dos aristotélicos ou essencialistas, não se reportam a objetos, mas a significações, determinando a aplicação das normas jurídicas.  O uso, portanto, de um conceito jurídico inadequado repercutirá na aplicação de uma norma jurídica indevida, que, por seu turno, propagará indesejados efeitos jurídicos[2].

Pois bem. Ao colocar a vontade humana como um dos elementos do suporte fático de um negócio jurídico, a norma jurídica abre às pessoas a possibilidade de querer ou não que determinado fato ingresse no mundo do Direito e se torne fato jurídico, ou, mais precisamente, que determinado negócio se torne negócio jurídico. Supõe-se, assim, que alguém queira ou não queira algo. A autonomia da vontade e a autonomia privada apareceriam justamente aí.

A vida social é composta por infinitas relações inter-humanas, mas apenas uma parte delas se juridiciza. Mundo fático e mundo jurídico não são coextensivos. Os interessados apenas podem tornar jurídicos certos atos sociais quando uma regra jurídica preveja a manifestação de vontade como suporte fático. Os homens têm, pois, autonomia para, consoante sua vontade, estabelecer as mais diversas relações entre si, mas só poderão fazer com que tais interações configurem relações jurídicas, e, por conseguinte, tenham eficácia jurídica, se tal condão for dado à vontade humana pela previsão de incidência da norma. Não se faz jurídico tudo o que a vontade quer que se faça, mas apenas o que a norma prevê[3].       

Assim, vê-se que a autonomia da vontade é um conceito bastante amplo, que se faz presente no momento psicológico do “ter vontade”, no momento extrajurídico em que essa vontade é manifestada para desencadear a constituição de atos sociais (atos inter-humanos), assim como no momento jurídico em que o realizar de um ato (ação volitiva humana), por estar previsto em uma norma, fê-la incidir. Há autonomia da vontade quando, em representação mental, algo é querido[4], quando alguém promete a outrem ir à igreja confessar-se, mas não vai (o espaço reservado para a vontade está fora do Direito, a manifestação de vontade dar-se-á autonomamente, mas estará fora do plano jurídico)[5] e quando se celebra um contrato de doação (o espaço reservado para a vontade é relevante para o Direito, porquanto adstrito aos limites traçados pelas normas jurídicas). Com o termo “autonomia da vontade”, seriam alcançados não só os negócios tutelados pelo Direito (negócios jurídicos), mas também o seriam os negócios que não interessam ao Direito, mas, talvez, à Política, à Religião, à Sociologia.  

Desse modo, nota-se que há casos não-jurídicos em que se faz presente a livre regência da vontade, sendo, então, inapropriado o uso do termo “autonomia da vontade” ao se operar com a teoria do contrato, já que sua grande amplitude implicaria imprecisão.

Opta-se pelo conceito de autonomia privada, a ser entendido como uma subespécie do de autonomia da vontade, na medida em que engloba apenas fatos jurídicos. A autonomia privada seria, assim, o reflexo jurídico do conceito de autonomia da vontade, que revela matiz mais político[6].

Ademais, ao se falar em autonomia privada, supõe-se que há algo público em contraposição. Essa constatação se compatibiliza exatamente com o arcabouço teórico que vem sendo traçado pela moderna teoria do contrato. O conceito de autonomia privada dá margem para uma pré-fixação de limites, bem adequada à atual diretriz de funcionalização do contrato e de igualdade material dos contratantes. Já a autonomia da vontade guarda muito da concepção voluntarista do Século XIX, quando se entendia ser o contrato obrigatório porque fora querido pelas partes e não porque o Estado dá a ele esse poder em nome da necessidade de segurança e da sua função social[7]. Sob inspiração kantiana, o voluntarismo proclamava que a dignidade da pessoa não se conformaria com as leis que não fossem estabelecidas pela própria vontade, vontade essa que, por ser imanente a todos, era utilizada ainda como fator de homogeneização (igualdade formal das partes). A terminologia escolhida aqui, ao contrário, pode se adaptar a uma realidade positivista segundo a qual o Estado concede aos particulares uma esfera de auto-regulamentação e não apenas a reconhece, o que resultaria no livre império da vontade, a fundamentação do direito objetivo no subjetivo.

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Pontes de Miranda enxerga, no entanto, duas impropriedades no termo “autonomia privada”[8].

A primeira seria porque se elidiria qualquer auto-regramento em direito público. Essa observação é coerente, mas, como o objetivo deste trabalho se centra na seara das relações interparticulares, parece apropriada a terminologia escolhida. Além disso, é de se observar que a elaboração de qualquer conceito jurídico implica uma abstração em que se afirma o caráter essencial de uma dada qualidade em detrimento de outras (qualidades secundárias) visando à unificação, em uma única categoria, um conjunto amplo de relações.

Já a segunda impropriedade seria a utilização do afixo grego nomos, que significaria “lei”. Todavia, seu significado pode ser mais amplo, porquanto, conforme esclarece Silvio Neves Baptista, “é verdade que o principal significado do vocábulo nomos é lei, porém não é só lei, pois exprime também regra, norma, uso, hábito, costume, opinião geral, maneira”[10].       

   Há, ainda, vozes na nova doutrina, a exemplo de Paulo Lôbo, que usam indistintamente os termos “autonomia da vontade” e “autonomia privada”, ao argumento de que a opção pelo primeiro ou pelo segundo está determinada, respectivamente, pela opção entre a teoria da vontade, em que as consequências do negócio jurídico devem corresponder às representações mentais das partes, ou a teoria da declaração, segundo a qual à vontade não podem ser imputados efeitos jurídicos, e, sim, às declarações de vontade. Pelo exposto, já se pode concluir pela inaptidão da primeira hipótese. Já a segunda falha ao buscar identificação na a teoria da declaração, pois, em certos casos, as manifestações de vontade adeclarativas (a derrelicção, por exemplo) se prestam a preencher suportes fáticos que prevejam conduta humana[14].  

Em verdade, o que houve foi uma evolução histórica entre a teoria da vontade e a teoria da declaração, tudo ainda dentro do ambiente liberal clássico. O crescimento e o desenvolvimento da sociedade mercantil exigiram que se acelerasse a circulação das mercadorias e que se colocasse em primeiro plano a garantia de certeza no tráfico. O espectro das relações comerciais passou do paradigma da produção, no qual a maioria das relações se dava entre o empresário e o produtor da matéria-prima, para o paradigma da circulação, em que a tônica é a objetivação (opção pela teoria da declaração) do negócio jurídico a fim de se vender cada vez mais e com mais estabilidade e segurança. Ambas as teorias estão, portanto, insertas no primeiro paradigma de contrato, que, como se sabe, foi reformulado.

Com essas breves considerações, pretendeu-se contribuir, de maneira assertiva, para um tema que, apesar de antigo, mantém-se atual, despertando indagações que não se limitam a meras especulações doutrinárias, uma vez que se está a tratar das bases do Direito Privado.


Notas

[1] FERRI, Luigi. La autonomia privada. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1969, p. 5.

[2] GRAU, Eros Roberto.  Direito, conceito e normas jurídicasSão Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 57.

[3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2001. t. III. p. 81.

[4] O ser humano é movido pelo que lhe apetece. É a vontade consubstanciada no apetite que o move. Já o desejo seria a percepção dessa vontade, seria quando o ser humano se dá conta de que tem uma certa vontade.

[5] Carlos Alberto da Mota Pinto chama tais combinações da vida social de “negócios de pura obsequiosidade”, aos quais é estranho o vínculo jurídico (MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria geral do Direito Civil. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p. 382.).

[6] Paulo Lôbo afirma que Autonomia da Vontade não se trata de um princípio jurídico, e, sim, político, pois seus fundamentos são ideológicos. Cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Condições gerais dos contratos e cláusulas abusiva. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 10. 

[7] Autonomia privada e autonomia da vontade convergem quanto ao momento desencadeador do ato, pois ambas têm-no na vontade. Contudo, na autonomia privada, essa vontade não é o fundamento precípuo da criação de obrigações jurídicas (eficácia jurídica).

[8] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit. p. 83.

[10] BAPTISTA, Silvio Neves. Os princípios da liberdade contratual e da autonomia da vontade. Anotações sobre o pacto de retrovenda. In: BAPTISTA, Silvio Neves. Ensaios de direito civil. São Paulo: Método, 2006. p.132.

[14] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. Cit. pp. 30-34.

[16] O modelo liberal dá preferência à tutela da venda, em detrimento à da compra. 

Sobre o autor
Régis Pedrosa Barros

Bacharel em Direito pela UFPE. Juiz de Direito no TJRS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Régis Pedrosa. Autonomia privada versus autonomia da vontade: para além de uma mera preferência terminológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5149, 6 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59479. Acesso em: 24 nov. 2024.

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