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Responsabilidade civil do Estado por prisão ilegal

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O texto estuda a indenização do dano sofrido pelo particular, decorrente de conduta lesiva praticada pelo ente estatal, especificamente por parte de um dos seus poderes, qual seja, o Poder Judiciário, na decretação e manutenção de prisão ilegal.

INTRODUÇÃO

O tema central do presente trabalho, intitulado "Responsabilidade Civil do Estado por Prisão Ilegal" se constitui no estudo da indenização do dano sofrido pelo particular, decorrente de conduta lesiva praticada pelo ente estatal, especificamente por parte de um dos seus poderes, qual seja, o Poder Judiciário, na decretação e manutenção de prisão ilegal. A idéia em desenvolver tal assunto, partiu, sobretudo, da pouca abordagem por escritores da atualidade, bem como de sua relevância ímpar e complexidade.

Assim, o estudo visa comprovar, basicamente se ao Estado compete arcar com o ônus indenizatório em face da indevida restrição à liberdade de locomoção, ou se ao mesmo assiste, consoante jurisprudência predominante no nosso país, o direito de manter-se irresponsável, em nome da soberania do Poder Judiciário, independência dos magistrados e ausência de disposição legal acerca do caso.

A fragilidade dos citados argumentos, aliada à pouca coerência com o ordenamento jurídico nos fez questionar o assunto, em busca da resposta correta sobre a existência ou não dessa particular ocorrência de responsabilidade, com amparo nos princípios e regras de direito que regem a matéria.

Começamos, dessa forma, a tratar da liberdade, aspecto precioso na vida do homem. Por tal motivo, fizemos algumas considerações sobre os vários sentidos empregados ao termo, situando-o no contexto religioso, filosófico e jurídico, para em seguida comentar sobre o direito constitucional de liberdade, já consagrado em todos os países civilizados, destacando a excepcionalidade que o Estado tem de punir, ao mesmo tempo em que garante o direito próprio do cidadão que se consubstancia no status libertatis.

Após reafirmar a regra constitucional do direito de liberdade, explicamos historicamente o desenvolvimento da pena de prisão, desde as priscas eras da Antiguidade, quando o encarceramento não apresentava natureza de sanção, mas mera custódia provisória no aguardo da execução final, passando pela Idade Média e Moderna, quando a prisão adquiriu caráter de pena. Não deixamos de citar os nomes daqueles que contribuíram na Idade Moderna para o aperfeiçoamento da pena, como as idéias de Howard, Beccaria e Bentham.

Delineamos, igualmente, ainda que de forma sucinta, o perfil da pena no ordenamento jurídico brasileiro, destacando a proteção constitucional ao direito de liberdade, bem como as formas de prisões admitidas no direito pátrio e as exigências para sua decretação. Constituindo-se igualmente, em objeto de discussão, as prisões permitidas pelo Código de Processo Penal e legislação extravagante, como também, os remédios jurídicos previstos para impugnar prisões decretadas fora dos moldes legais.

Em relação à responsabilidade civil do Estado, elencamos, brevemente as teorias, fases e evolução, dando ênfase à responsabilização do Poder Judiciário, assunto por demais palpitante, merecendo destaque em face do atual regime Democrático de Direito que impõe ao Estado a obrigatoriedade de também se submeter ao ordenamento jurídico, que prima pela obediência ao direito de igualdade e o princípio da legalidade. Assim, as idéias e interpretações novas quanto à responsabilização do Estado na esfera criminal, podem fazer cair por terra os velhos argumentos que não permitiam a sua responsabilização quando a atuação fosse do Judiciário. Tal fato se deve a observância do princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais.

A alma do presente trabalho reside pois, na preocupação demonstrada com a decretação de prisões ilegais, prática usual em nosso cotidiano forense, o que caracteriza o desrespeito ao status libertatis do cidadão, além de violar o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da Constituição Federal de 1988.

Tendo em vista a confusão terminológica que se estabelece em torno das expressões: "prisão indevida" e "prisão ilegal", é que procuramos aclarar as definições, mostrando que a primeira ocorre nos casos previstos pelo art. 5º, LXXV, que trata do erro judiciário e excesso de prisão - quando alguém permanece preso além do tempo fixado na sentença. Já a segunda, consiste em todas as formas não abrangidas pela prisão indevida, ou seja, quando decretada fora dos parâmetros estabelecidos em lei. Para maior compreensão do trabalho, explicamos os fundamentos jurídicos da responsabilidade do Estado em face das duas espécies de prisões.

No último capítulo, especificamos os pontos relativos à indenização, fazendo menção à possibilidade de condenação pelo reconhecimento de danos morais e patrimoniais, o critério adotado para a fixação do quantum indenizatório, bem como o cabimento da ação regressiva e aspectos relativos à competência, legitimidade ativa e passiva e a prova da responsabilidade do Estado.

Por fim, acreditamos que mediante a abordagem de todas essas questões, seja possível, em conclusão, responder com clareza a pergunta central do presente trabalho: É o Estado responsável civilmente pela decretação de prisões ilegais?


I - A LIBERDADE PESSOAL E SUA RESTRIÇÃO

"Ser livre é poder. Quando posso fazer o que quero, eis minha liberdade; mas quero necessariamente aquilo que quero, pois de outro modo eu quereria sem razão, sem causa, o que é impossível. Minha liberdade consiste em andar, desde que não sofra de gota".

(Voltaire)

1. Liberdade: Noções Conceituais.

O direito de liberdade, por se constituir, antes de tudo, em direito natural do próprio homem, sempre o acompanhou desde longas datas, na qualidade de bem supremo, por tal motivo, alcançou consagração nos ordenamentos jurídicos, merecendo atenção das Cartas Constitucionais, sobretudo por parte dos países civilizados, que, mediante a instituição dos direitos fundamentais, o colocou no cerne, abordando seus diversos aspectos, como a liberdade pessoal de locomoção, de expressão, de reunião, associação, consciência, crença e tantas outras.

O Estado de Direito, sem dúvida, apresenta como nota característica, a garantia dos direitos individuais naturais, expressos, essencialmente pelo direito de liberdade, assim, podemos afirmar que o valor supremo de uma sociedade política é a liberdade, razão pela qual, a sua restrição se traduz, por outro ângulo, numa exceção à regra, sendo admissível apenas em virtude da necessidade em manter a ordem e a paz social.

Nesse contexto é que se justifica o estudo do presente tema, por ser a liberdade um pressuposto para o encarceramento, visto que só se pode restringir a liberdade de quem a possui, só pode ser vítima de prisão quem se encontra livre. Daí porque, abordaremos, nesse capítulo inicial, o direito de liberdade e sua conceituação.

O termo liberdade, num sentido amplo designa o estado de ser livre, de não estar sob o controle de outrem; de viver sem sofrer restrições nem imposições, ou seja, de não ser impedido de fazer o que tem vontade.

Sob este aspecto, tem-se tomado a liberdade como inerente ao homem, muitas vezes vinculada a um plano extrapositivo, na condição mesmo de direito natural. Nesse sentido é a acepção dada ao termo pelo dicionarista Aurélio Buarque de Holanda:

liberdade. [Do latim – libertate.] S.f. - 1. Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação. 2. Poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas. 3. Faculdade de praticar tudo quanto não é proibido por lei. 4. Supressão ou ausência de toda a opressão considerada anormal, ilegítima, imoral. 5. Estado ou condição de homem livre. 6. Independência, autonomia. 7. Facilidade, desembaraço. 8. Permissão, licença. 9. Confiança, familiaridade, intimidade (às vezes abusiva). 10. Bras. V. risca (4). 11. Filos. Caráter ou condição de um ser que não está impedido de expressar, ou que efetivamente expressa, algum aspecto de sua essência ou natureza. [Quanto à liberdade humana, o problema consiste quer na determinação dos limites que sejam garantia de desenvolvimento das potencialidades dos homens no seu conjunto - as leis, a organização política, social e econômica, a moral, etc. -, quer na definição das potencialidades que caracterizam a humanidade na sua essência, concebendo-se a liberdade como o efetivo exercício dessas potencialidades, as quais, concretamente, se manifestam pela capacidade que tenham os homens de reconhecer, com amplitude sempre crescente, os condicionamentos, implicações e conseqüências das situações concretas em que se encontram, aumentando com esse reconhecimento o poder de conservá-las ou transformá-las em seu próprio benefício.] [Cf., nesta acepç., autodeterminação (2) e autonomia (5).]. [1] (grifo do autor).

A idéia de liberdade, historicamente, tem exercido uma forte influência e ocupado uma posição privilegiada e constante no pensamento humano. Por tal motivo, tem-se registrado uma grande variedade de definições acerca da matéria, entendendo-a em termos religiosos, filosóficos e jurídicos.

No plano religioso, especialmente judaico/cristão, três são as conotações de liberdade previstas na Bíblia:

a) a liberdade como oposição à escravidão, p. ex., no Êxodo, onde ela é de natureza espiritual; b) a liberdade no sentido de oposição à escravidão no sentido material, v. g., o "cativeiro do Egito"; c) a liberdade como libertação e salvação formando uma carga afetiva elaborada em torno da idéia nuclear de verdade: "A verdade vos libertará". [2] (grifo do autor).

A invocação do termo liberdade é abundante nos textos bíblicos, seguido de outros valores não menos importantes como verdade, justiça, fé, ciência e amor, este último com maior intensidade e preponderância.

Uma das mais fortes definições bíblicas de liberdade pode ser encontrada em Gálatas, capítulo 5, versículo 13: "Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; convém somente que não façais desta liberdade um pretexto para viver segundo a carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor".

Do ponto de vista filosófico, a liberdade pode ser entendida sob três critérios:

a) como autodeterminação ou autocausalidade: liberdade como ausência de limitação; b) como necessidade fundada na autocausalidade, que atribui totalidade: substância, universo, Estado; c) como possibilidade de opção: a liberdade finita, condicionada. [3]

No primeiro critério acima descrito, encontramos Aristóteles como o pensador de maior destaque, conhecido como o filósofo da moderação, pelo emprego constante, em seus escritos, da expressão "meio-termo". [4] (grifo nosso).

Consoante pensamento Aristotélico, a liberdade significa autodeterminação, ausência de imposição de limites, tendo por fundamento, ser o homem gerador de suas ações, ressalvando-se competir ao que for virtuoso a escolha da via mais prudente. Nesse sentido, explica: "o homem é a origem de suas próprias ações e se não somos capazes de relacionar nossas condutas a quaisquer outras origens que não sejam as que estão dentro de nós mesmos, então as ações cujas origens estão em nós devem também depender de nós e ser voluntárias". [5]

Em Ética a Nicômaco, no Livro III, 5, Aristóteles aborda o tema ligado aos fins, aos meios e ao poder de escolha, argumentando ser cada pessoa, de algum modo, responsável por sua disposição moral, cabendo ao homem, por ser livre em seus desígnios, desempenhar condutas voluntárias e optar, livremente por várias alternativas, como por exemplo, escolher entre a excelência ou deficiência moral, ser uma pessoa justa ou injusta, avara ou pródiga, temerosa ou medrosa, concupiscente ou não. [6]

Em síntese, o que Aristóteles pretende é definir a liberdade, em seu aspecto natural, enquanto vontade de fazer o que se quer, não encontrando empecilho em suas pretensões, como ato de escolha consciente por parte do homem livre.

Baruch Espinosa, na condição de filósofo racionalista, enquadra-se no segundo critério de entendimento da liberdade, ou seja, na liberdade como autocausalidade, não como livre-arbítrio, mas como consciência da necessidade. Por tal motivo, foi considerado por muitos como filósofo determinista, no sentido de negar a liberdade humana e acreditar que todos os acontecimentos do mundo faziam parte de um plano divino. Na verdade, Espinosa procurou demonstrar o que possibilita e impede o exercício da liberdade, explicando que podemos ser ativos ou passivos. Enquadramos-nos na primeira classe quando somos autônomos, possuidores de nossas ações e passivos quando o que ocorre em nosso corpo ou alma tem uma causa externa mais forte que nosso ânimo interior.

Esse pensamento de Espinosa é expresso em uma de suas obras mais famosas: Ética, quando na Parte III, Proposição 1, enuncia:

A nossa alma, quanto a certas coisas, age (é ativa), mas, quanto a outras, sofre (é passiva), isto é, enquanto tem idéias adequadas, é necessariamente ativa em certas coisas; mas, enquanto tem idéias inadequadas, é necessariamente passiva em certas coisas. [7]

Continuando o mesmo raciocínio, Espinosa afirma: "A alegria e a tristeza, e conseqüentemente, as afecções que destas são compostas ou delas derivam, são paixões". [8] A alegria e a tristeza, no caso são denominadas de paixões, com relação à tristeza, sua causa é exterior, não somos nós que agimos, nós permanecemos passivos.

Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, esclarecem:

A diferença entre paixão triste e paixão alegre é que esta, ao aumentar o nosso ser e a nossa potência de agir, nos aproxima do ponto em que nos tornaremos senhores dela e, portanto, dignos de ação. A paixão triste nos afasta cada vez mais da nossa potência de agir, sendo geradora de ódio, aversão, temor, desespero, indignação, inveja, crueldade, ressentimento. [9]

Segundo o pensamento de Espinosa, as paixões tristes não são combatidas pelo espírito, mas sim por paixões alegres; nisso consiste a liberdade, no conhecimento e controle dos nossos afetos.

Por fim, Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, asseveram que:

... diferentemente de outros filósofos que estabelecem hierarquias e pretendem subjugar as paixões à razão ou vice-versa, Spinoza afirma que um dos aspectos da liberdade, não está em nos livrarmos das paixões, mas em sermos capazes de perceber que somos causas das paixões: liberdade é autodeterminação, é autonomia. Conseguimos isso sobrepondo, às paixões nascidas da tristeza, as paixões alegres. Portanto, um afeto jamais é vencido por uma idéia, mas um afeto forte é capaz de destruir um afeto fraco. [10]

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Na terceira categoria, a filosofia moderna aborda o tema, relacionando liberdade ao livre arbítrio, podendo caracterizar-se como ato de querer e de fazer, enquanto possibilidade de escolha, de opção, muito embora com limitações. Merecendo ênfase, dentre outros filósofos, Hobbes, Locke e Kant.

Para Immanuel Kant, a idéia de liberdade está associada à vontade e à racionalidade, posto serem apenas os entes racionais, os detentores da liberdade enquanto manifestação de vontade e autonomia. [11]

É esse o pensamento de Kant ao pronunciar: "... que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, i. e., a propriedade da vontade de ser lei para si mesma ?". [12]

A autonomia, segundo Kant, se constitui na capacidade que só o homem tem de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. Assim, a vontade é a faculdade que cria as leis, e, na proporção em que se institui as próprias leis, se é livre. O ponto central da liberdade reside na idéia de autonomia, isto é, de submissão de cada qual às normas por si mesmo editas. A idéia de liberdade em Kant possui caráter universal e não apenas destaque no plano meramente individual. [13]

O mesmo filósofo explicando a liberdade e a sua relação com a vontade, assim se expressa:

Todo o ser que não pode agir senão sob a idéia da liberdade é, por isso mesmo, em sentido prático, verdadeiramente livre, quer dizer, para ele valem todas as leis que estão inseparavelmente ligadas à liberdade, exatamente como se sua vontade fosse definida como livre em si mesma e de modo válido na filosofia teórica. Agora afirmo eu: A todo o ser racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhe necessariamente também a idéia da liberdade, sob a qual ele unicamente pode agir. [14]

A liberdade, segundo a filosofia Kantiana pode ser distinguida como interna e externa. A primeira diz respeito à espontaneidade e se fundamenta na razão prática, [15] liga-se à idéia moral. A liberdade externa encontra-se menos ligada ao sentido de moralidade, está, portanto, atrelada à noção de direito, de liberdade jurídica.

Na interpretação de Norberto Bobbio, as duas expressões aproximam-se com a definição de direito e moral, senão vejamos:

O âmbito da moralidade diz respeito à liberdade interna, a do direito se amplia para a liberdade externa. Pode-se ainda, falar, com Kant, de uma liberdade moral, distinta da liberdade jurídica (...) No conceito de moralidade entendida como liberdade interna é evidente a referência a uma relação de mim comigo mesmo, no conceito de direito entendido como liberdade externa é igualmente evidente a referência a uma relação minha com os outros. É possível então dizer que o novo critério de distinção entre moral e direito não considera mais, como o primeiro, a relação entre a ação e a lei ou o modo da obrigação, mas a mesma forma da ação que no primeiro caso se esgota no interior da minha consciência, e no segundo caso, abrindo-se para o exterior chega a coincidir com a dos outros. [16] (grifo do autor).

Para Joaquim Carlos Salgado,

A distinção entre liberdade interna e liberdade externa feita por Kant aparece também como momentos da mesma liberdade. Enquanto a liberdade interna se define como espontaneidade e autolegislação e tem como faculdade a vontade pura ou a razão pura prática, a liberdade externa nada mais é do que a mesma auto-legislação e espontaneidade no seu momento de contato com o outro e se expressa através do arbítrio, que será livre, se conforme a lei da razão pura prática. A liberdade interna é a faculdade de agir pela razão e a externa, essa faculdade de agir numa sociedade de seres livres; é a própria liberdade civil. Liberdade externa é a liberdade no momento do uso externo do arbítrio, enquanto a liberdade interna se refere ao seu uso interno. [17]

Com base nessa diferença de termos acerca da liberdade, o mesmo autor diz que:

A liberdade no seu sentido próprio é sempre a liberdade positiva da autonomia; isso é válido tanto para o direito quanto para a moral. Na moral, autonomia diz-se da vontade individual pura que legisla para si mesma (ou liberdade interna). No direito, é a mesma vontade legisladora, não mais enquanto legisla apenas para si mesma, mas enquanto participa da elaboração (pela possibilidade da sua aprovação) de uma legislação universal limitadora dos arbítrios individuais. Essa é a liberdade jurídica no sentido próprio ou liberdade externa, que em essência é sempre a mesma autonomia, pois é a "faculdade de não obedecer a outra lei externa a não ser aquela a que eu possa ter dado a minha aprovação. [18] (grifo do autor).

Na formação da idéia de liberdade, Kant recebeu influências de Rosseau, que por sua vez, tratou a liberdade, subdividindo-a em natural e civil, nos seguintes termos:

O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que com ela ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Para que não haja engano a respeito dessas compensações, importa distinguir entre a liberdade natural, que tem por limites apenas as forças do indivíduo, e a liberdade civil, que é limitada pela vontade geral, e ainda entre a posse, que não passa do efeito da força ou do direito do primeiro ocupante, e a propriedade, que só pode fundar-se num título positivo. [19]

Montesquieu também falava em liberdade, atribuindo ao termo diversas significações, [20] dentre elas, conotação política, fazendo-o nos seguintes termos:

É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste nisso. Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar. Deve-se ter sempre em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros teriam tal poder. [21]

Nessa mesma época, escrevia Cesare Beccaria, o famoso livro Dos Delitos e das Penas, comentando, no capítulo referente à origem das penas e do direito de punir, a necessidade que tem os homens de ceder uma porção de sua liberdade para que o Estado possa exercitar, soberanamente, o direito de punir, restringindo e delimitando a liberdade pessoal. Esta formulação é de índole contratualista, pela qual, o direito de apenar nasce da renúncia dos direitos que competem aos cidadãos entre si e na sua relação com os outros, que tem por fundamento o pacto social, disto derivando como conseqüência necessária o princípio da legalidade do delito e da pena. [22]

Não obstante Beccaria deixar transparecer em seu discurso o caráter político e não se apresentar propriamente como um cientista ou filósofo, sua obra obteve repercussão mundial, alcançando até os dias atuais amplo conhecimento. Beccaria considerava que as penas deviam ser proporcionais ao dano social causado, afirmando:

As penas que vão além da necessidade de manter o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano propiciar aos súditos. [23]

Ademais, rejeitava incisivamente a crueldade das penas de sua época e a tortura, que era o meio de prova mais utilizado. Concluindo suas observações a respeito da pena, em síntese asseverou:

... para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei. [24]

Esta obra de Beccaria foi rapidamente traduzida para várias línguas e influenciou as reformas penais dos déspotas de seu tempo. Um dos filósofos da época, propagador do ideário de liberdade e que recebeu influências do Marquês foi Voltaire, que lhe dedicou importantes comentários, consagrando e difundindo o livro Dos Delitos e das Penas na França, por ocasião da defesa post mortem do protestante Francês Juan Calas, acusado de assassinar seu filho, por querer converter-se ao catolicismo, tendo sido condenado, por tal acusação ao suplício da roda. Dois anos depois da execução de Calas, Voltaire obteve sua declaração de inocência, provocando, na época, um escândalo.

Voltaire falava da liberdade se expressando da seguinte forma:

Ser verdadeiramente livre é poder. Quando posso fazer o que quero, eis minha liberdade; mas quero necessariamente aquilo que quero, pois de outro modo eu quereria sem razão, sem causa, o que é impossível. Minha liberdade consiste em andar quando quero andar, desde que não sofra de gota. [25]

Consoante o pensamento dos últimos filósofos citados, percebe-se que a palavra liberdade passa a ter conotação política e é com suporte nesse raciocínio que podemos organizar melhor as idéias e analisar o significado atual da expressão liberdade na esfera política, antes de adentrar propriamente no conceito jurídico.

Comumente, tem se atribuído dois significados ao termo: liberdade negativa e positiva. A primeira pode ser entendida como ausência de impedimento ou constrangimento, consistindo em fazer ou não fazer tudo o que as leis permitem ou não proíbem. Encontra-se ligada à idéia de ação, cabendo ao indivíduo um atuar ou agir, não se sujeitando a obstáculos contidos em lei.

A liberdade positiva pode ser definida como autodeterminação, indicando um atributo específico do querer, no sentido de mover-se para uma finalidade própria, escolhida livremente, sem determinação ou influência de outrem. Pode ser também chamada de autonomia, tendo em vista ser a vontade livre, não determinada pelo querer de outrem ou por forças estranhas ao próprio querer.

A despeito do assunto, Norberto Bobbio se expressa da seguinte maneira:

Por liberdade negativa, na linguagem política, entende-se a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado, por outros sujeitos. (...) Por liberdade positiva, entende-se – na linguagem política – a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser determinado pelo querer de outros. [26]

Para a teoria política, a liberdade positiva e negativa também enseja uma outra diferença, levando-se em consideração o sujeito. Quando o sujeito ao qual nos referimos é o indivíduo singularmente, estaremos diante da liberdade negativa, conhecida, da mesma forma como liberdades civis ou individuais.

Quando tomamos como referência ou destinatário a coletividade, enquanto sujeito histórico, nos deparamos com a chamada liberdade positiva. Acerca da matéria, Norberto Bobbio acrescenta: "A liberdade como autodeterminação, ao contrário, é geralmente atribuída, no discurso político, a uma vontade coletiva, seja essa vontade a do povo, da comunidade, da nação, do grupo étnico ou da pátria... ". [27]

Ainda no âmbito político, Pinto Ferreira define a liberdade como sendo:

O poder do indivíduo de exercer suas atividades física, moral, econômica e intelectual até o limite que o Estado autoriza, a fim de permitir o exercício da liberdade alheia. A liberdade de um finda quando começa a liberdade do outro. [28]

A partir dessas considerações, podemos analisar a liberdade não mais lhe atribuindo caráter filosófico ou político, mas situando-a num contexto jurídico. Comecemos por avaliar a liberdade no seu aspecto individual.

Essa liberdade da pessoa física, também chamada de individual, constitui a primeira forma de liberdade que o homem teve que conquistar, formando um dos atributos mais significativos da existência, a ela se opondo a idéia de escravidão e prisão.

Por tal motivo, o Direito, enquanto ciência acompanhou e teve mesmo, por base a proteção da liberdade pessoal. Tanto é assim, que no Direito Romano havia uma divisão fundamental, denominada de suma divisio, separando os homens em livres e escravos. "A liberdade – libertas – é o maior bem para o romano. A condição de homem livre domina todo o mundo antigo, inclusive o império romano, em que a liberdade se opõe à escravidão". [29] Outra não é a observação feita por Antônio Filardi Luiz. [30]

Nessa ordem de idéias, se percebe que a liberdade, desde longas datas se constituiu num bem de significativo valor, fazendo parte da essência do homem o nascer e permanecer livre, desempenhando a capacidade de movimentar-se e locomover-se. Todavia, a convivência social impõe determinadas regras que acabam restringindo a liberdade natural, por tal motivo e, em nome da paz social, nos obrigamos a sofrer as limitações mínimas, impostas pelo ordenamento jurídico estatal. Nisso constitui a liberdade pessoal ou física, sob o âmbito jurídico.

A propósito do tema, José Afonso da Silva oferece a seguinte noção de liberdade da pessoa física: "é a possibilidade jurídica que se reconhece a todas as pessoas de serem senhora de sua própria vontade e de locomoverem-se desembaraçadamente dentro do território nacional". [31]

Para Francisco Fernández Segado: "La libertad es una dimensión de la persona. Entendida como libertad general de actuación o, si se prefiere, como libertad general de autodeterminación individual... " [32]

Discorrendo sobre o assunto liberdades, J.J. Gomes Canotilho afirma que o direito de liberdade pessoal "significa direito à liberdade física, a liberdade de movimentos, ou seja, o direito de não ser detido ou aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente condicionado a um espaço, ou impedido de se movimentar". [33]

Hauriou, Gicquel e Gélard comparam a liberdade pessoal à soberania do indivíduo se expressando nos seguintes termos:

Liberte et souveraineté personnelles. – A ce stade, on comprend que ‘liberte humaine’ équivaut à ‘souveraineté humaine’. Ce que la souveraineté est à l’Etat, la liberte l’est à l’individu. L’Etat est souverain parce que grace à son organisation retionnelle et à l’équilibre interne de ses pouvoirs, il est maître de lui-même. [34]

Essa liberdade individual, de acordo com os citados mestres acima, possui como corolário principal a liberdade física e apresentam a seguinte definição: "La liberte physique d’aller et de venir ou liberte personnelle. Elle doit s’entendre au sens d’indépendance physique de l’individu et s’oppose, de la sorte, à la mise em esclavage ou em servage". [35]

Historicamente, Francisco Fernández Segado explica que a configuração constitucional do direito de liberdade, inicialmente surgiu com a finalidade de proteger os cidadãos das arbitrariedades e detenções impostas, mediante atuação do próprio judiciário, sem que houvesse, ao menos oportunidade de questionar tais procedimentos. Para preservar, então, o direito principalmente de locomoção, é que a liberdade passou a ser tema central das constituições. [36]

Cumpre observar que o direito de liberdade, contemporaneamente, tem sido recepcionado com generosidade e amplitude pela maior parte dos ordenamentos jurídicos mundiais, seja mediante previsão nas cartas constitucionais, seja por meio das declarações e pactos internacionais, [37] que passaram a adotar o valor liberdade, como direito supremo de uma nação.

Da forma que restou demonstrada, a liberdade física implica necessariamente no direito de ir, vir e permanecer. Todavia, essa liberdade que podemos chamar de natural, não é absoluta, esbarra no poder estatal, encarregado de manter a ordem e a paz pública.

Assim, podemos afirmar que a liberdade pessoal é condicionada pela lei, que regula o que não se pode fazer, circunscrevendo o arbítrio de cada pessoa. Inexistindo, dessa forma, liberdade absoluta, pois todos devem agir dentro dos limites impostos pela ordem legal.

Dada a sua importância, o direito à liberdade individual é protegido pelo Estado, da mesma forma que as suas limitações devem ser formalmente preestabelecidas, num primeiro momento, mediante a instituição de uma Carta Política que preveja e tutele tal direito. Consistindo, o reconhecimento da liberdade no pressuposto da adoção do princípio do Estado Democrático de Direito.

2.Direito Constitucional de Liberdade.

A liberdade pessoal, reconhecida antes de tudo como direito natural e intangível do indivíduo, ao longo do desenvolvimento da humanidade e da ciência jurídica, fortaleceu-se de tal forma que passou a merecer proteção estatal, permitindo às nações que primam por uma sociedade justa e humanitária, na qual prevalece a liberdade de seus cidadãos, o reconhecimento, em suas respectivas Constituições, do direito à liberdade como um direito soberano. Não bastando apenas institui-lo, sentiu-se a necessidade de criar, igualmente instrumentos eficazes de garantia e proteção ao pleno exercício desse direito.

Assim, delineou-se o cenário das sociedades modernas, onde o direito à liberdade acabou por constituir ponto comum a todas as Constituições. Acontece porém, que a consagração desse direito não nasceu do dia para a noite, ocorreu de maneira lenta e através de conquistas sucessivas.

O marco decisivo para que o direito constitucional de liberdade fosse erigido à categoria de direito fundamental, rompendo com a tradição real, foi sem dúvida, as cartas e estatutos assecuratórios de direitos fundamentais, como a Magna Carta, em 1215, quando os barões ingleses obrigaram João Sem Terra a firmá-la; a petition of Rights, em 1628; o Habeas Corpus Amendment Act em 1679 e o Bill of Rights, em 1688.

Essas declarações, inclusive a de 1679, asseguraram, dentre tantas outras garantias fundamentais, a de que nenhum homem livre poderia ser preso, nem perder os seus bens, nem ser declarado fora da lei ou desterrado, senão em virtude de julgamento, conforme a lei. A partir daí, começou a esboçar-se com maior nitidez os contornos essenciais do habeas corpus, enquanto garantia constitucional da liberdade, apesar dessa medida ter alcance limitado aos membros da classe dominante.

O direito de liberdade continuou a fortalecer-se quando os Estados Unidos, em decorrência da experiência inglesa, preparavam o espírito para as grandes declarações dos direitos fundamentais.

Acerca da matéria, assevera José Afonso da Silva: "A primeira declaração de direitos fundamentais, em sentido moderno, foi a Declarações de Direitos do Bom Povo da Virgínia". [38] Nascida em 1776, previa dentre outros direitos, a igualdade, independência e liberdade dos homens, bem como a vedação de mandados de busca ou de detenção, sem especificação exata e prova do crime. Em virtude da Independência dos Estados Unidos, e em 1787, com o advento da sua Constituição, aprovada na Convenção de Filadélfia, ficou consagrado o direito de liberdade mediante a instituição do habeas corpus, proibindo-se a suspensão desse remédio, a menos que a ordem pública passasse a exigir nos casos de rebelião ou de invasão [39]. Em decorrência desses acontecimentos, disseminou-se o pensamento de que os direitos só podiam ter consistência se acompanhados dos instrumentos processuais para sua efetivação.

O campo estava preparado e a idéia de direitos individuais foi mesmo institucionalizada, apresentando seu apogeu, durante a Revolução Francesa, momento em que as forças políticas da época fundavam o Estado Liberal ou Estado de Direito, em oposição às idéias advindas do período absolutista, recebendo, a liberdade, especial atenção constitucional.

Foi precisamente com o advento do constitucionalismo ocidental que o ideário de liberdade recebeu força e importância, por ter sido insculpido como um dos termos da fórmula universal: liberdade, igualdade e fraternidade, difundidos na Assembléia Constituinte Francesa de 1789.

Esse liberalismo ocidental, conduzido e vivido pela burguesia, durante a Revolução Francesa, colocou a liberdade como valor básico, incluindo-a como centro da parte mais delicada das Constituições: a dos direitos e garantias.

A despeito dessa fase histórica, o direito de liberdade ganhou destaque na área dos direitos fundamentais, surgindo desse direito individual a maneira mais eficaz de libertar o homem das amarras do Estado absolutista, já que a esfera individual não mais poderia ser restringida pelo Estado de forma deliberada e incondicional. Com isso, a burguesia se consolidou como classe econômica e social mais forte e pode elevar o direito de liberdade à categoria de direito fundamental.

Daí para cá, o conteúdo da liberdade passou a integrar a Constituição material, sendo esta, consoante Paulo Bonavides:

o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Em suma, a Constituição, em seu aspecto material, diz respeito ao conteúdo, mas tão-somente ao conteúdo das determinações mais importantes, únicas merecedoras, segundo o entendimento dominante, de serem designadas rigorosamente como matéria constitucional. [40] (grifo do autor).

Assim, considerando que a conservação e o exercício da liberdade, enquanto direito da pessoa humana, constituem pontos cardeais e determinantes de um Estado organizado, a liberdade encontra-se inserida na acepção material de constituição.

Nessa ótica, o direito de liberdade uma vez classificado como garantia fundamental, pode ser incluído em uma das gerações ou dimensões, nas quais se distingue a formação sucessiva de uma primeira, segunda, terceira e até uma quarta geração.

O direito à liberdade, no dizer de Paulo Bonavides, corresponde aos chamados direitos de primeira geração. Veja-se:

Os direitos de primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente. [41]

Garantido o direito constitucional de liberdade, apresenta-se então o problema de estabelecer equilíbrio entre a liberdade individual e a autoridade estatal. Isto porque o conceito de liberdade não é absoluto, não implica em ausência de coação. Daí concluir-se que só a lei geral, emanada do Estado pode restringi-la, e assim mesmo devendo aquela ser elaborada de acordo com regras preestabelecidas e aceitas pela coletividade que busca regular.

A liberdade geral, portanto, está indissociavelmente atrelada ao princípio da legalidade, consistindo esse garantia daquele. Na Constituição de 1988, percebe-se claramente a presença do citado princípio no artigo 5º, inciso II, que menciona: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei". Somente a lei tem o condão de limitar a liberdade.

Esta forma de considerar-se a legalidade frente à liberdade é baseada em um conteúdo negativo, consistindo a liberdade num conceito geral e a restrição da lei a exceção. Não há uma relação no sentido de poder fazer-se tudo o que a lei permite, mas de poder-se fazer tudo, exceto o que a lei expressamente proíbe.

Com efeito, modernamente, o princípio da liberdade está previsto na memorável Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborada logo após o desastre da II Guerra, onde está escrito: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos... ". [42]

Foi com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, que o humanismo político de liberdade ganhou relevo neste século, sendo responsável pelo reconhecimento, em âmbito universal dos direitos humanos.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), traz em seu artigo 7º, item 1, a seguinte previsão: "Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoal". [43]

Outra não é a orientação dada pela atual Constituição brasileira, que faz menção ao termo liberdade na parte primeira ou introdutória da referida Carta, demonstrando ser a liberdade valor básico, constituindo, por isso, decorrência lógica da própria fórmula política adotada pelo Estado Democrático de Direito.

O caput do art. 5º estabelece que:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, segurança e propriedade. (grifo nosso).

Ademais, no corpo do mencionado artigo, podemos encontrar os seguintes incisos que igualmente protegem o direito de liberdade, em seus diversos aspectos, (liberdade de pensamento, de crença religiosa, à honra, à imagem, à associação, de reunião e de locomoção) são eles: II, IV, VI, IX, XIII, XV, XVII, LXVI e LXVIII.

A doutrina Francesa, representada por Haoriou, Gicquel e Gélard, [44] divide a liberdade individual em liberdade da vida civil e liberdade da vida política. A liberdade civil consiste em assegurar o resguardo dos direitos relativos à vida privada, como forma de concessão Estatal ao indivíduo, essa liberdade da vida civil, se compõe de dois grupos: as liberdades primeiras e as liberdades segundas. Àquelas compreendem: a liberdade física, segurança, família, propriedade privada, convenções e comércio/industrial.

As segundas liberdades abrangem: a liberdade de consciência e culto, ensinamentos, informação, reunião e sindical. Já a liberdade da vida política resulta para o indivíduo do reconhecimento de direitos que autorizam o cidadão a participar da função pública, esses direitos representam expressão da soberania nacional: direito de participar de partidos políticos, votar e ser votado, entre outros.

Fazendo o cotejo das normas constitucionais de diversos Estados, percebe-se que a liberdade constitui tema central e uniforme, notadamente nas Constituições da França, Portugal e Espanha.

A França, berço do ideário de liberdade, apresenta em seu texto constitucional proteção a esse direito, a partir do preâmbulo, numa clara ratificação do que ficou demonstrado ao mundo, no período da Revolução Francesa com a propagação da fórmula que se tornou mundialmente conhecida: liberdade, igualdade e fraternidade. Nos seguintes termos:

O povo francês proclama solenemente o seu apego aos Direitos do Homem e aos princípios da soberania nacional tal como foram definidos pela declaração de 1789, confirmada e completada pelo preâmbulo da Constituição de 1946. Em virtude desses princípios e do princípio da livre determinação dos povos, a República oferece aos territórios do ultramar, que manifestem a vontade de a elas aderir, instituições novas fundadas no ideal comum de liberdade, igualdade e fraternidade e concebidas em vista da sua evolução democrática. [45]

Continua a Constituição Francesa a falar da liberdade no seu artigo 1º, estabelecendo: "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem fundar-se em nada mais do que a utilidade comum". O artigo 2º enuncia: "A finalidade de toda associação política é a conversão dos direitos naturais e imprescindíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência a opressão". O artigo 4º prevê:

A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudicar outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites senão os que garantem aos demais membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei. [46]

Examinando a Constituição Portuguesa, verifica-se que é marcante, também a preocupação em garantir os direitos individuais, especialmente o de liberdade em suas diversas modalidades. No artigo 27 está consignado o direito do próprio Estado em assegurar à liberdade dos cidadãos, enunciando que "Todos têm direito à liberdade e à segurança". O art. 37 trata da liberdade de expressão e informação, o art. 38 da liberdade de imprensa e dos meios de comunicação, o art. 41 da liberdade de consciência, de religião e de culto, o art. 42 da liberdade de criação cultural, o art. 43 a liberdade de aprender e ensinar, o art. 46 a liberdade de associação, o art. 47 da liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública. [47]

Por seu turno, a Constituição Espanhola é incisiva ao prever o direito de liberdade ideológica, religiosa e física, disciplinando, inclusive, a prisão preventiva e regulando o habeas corpus. Em seu artigo 17, 1), estabelece:

Toda persona tiene derecho a la libertad y a la seguridad. Nadie puede ser privado de su libertad, sino com la observância de lo establecido en este artículo y en los casos y en la forma previstos en la ley. [48]

Continuando, no item 2 do mesmo artigo a tratar da prisão preventiva, enuncia:

La detención preventiva no podrá durar más del tiempo estrictamente necessario para la realización de las averiguaciones tendentes al esclarecimento de los hechos, y, en todo caso, en el plazo máximo de setenta y dos horas, el detenido deberá ser puesto en libertad a disposición de la autoridad judicial. [49]

A previsão do habeas corpus encontra-se no artigo 17, item 4), da seguinte maneira:

La ley regulará um procedimiento de habeas corpus para producir la inmediata puesta a disposicion judicial de toda persona detenida ilegalmente. Asinismo, por lei se determinará el plazo máximo de duración de la prisión provisional. [50]

Como visto, o direito de liberdade alcançou patamares universais, estando presente no corpo de todas as Constituições dos países civilizados, atrelado a um sistema de garantias que assegura aos membros da coletividade o exercício desse direito. Não obstante tal conquista, o Estado, enquanto guardião e harmonizador da paz social, impõe limites, especificamente à liberdade de locomoção, diante de violação a norma penal, autorizando-se, em caso de comprovado envolvimento com o crime, a aplicação de pena e a conseqüente prisão do indivíduo.

3.Direito do Estado de Punir – Prisão.

Apesar da desejabilidade geral, liberdade não constitui um valor absoluto e irrestrito, sem limitações. Como já visto, esse direito é tutelado e garantido pelo Estado, mas não de forma incondicional. O próprio Estado cuida de imprimir limites, com a finalidade de proteger determinados bens jurídicos, como a vida, propriedade e mesmo a liberdade.

Daí se conclui que o cerne da liberdade jurídica reside na possibilidade de fazer tudo aquilo que não é proibido pelo próprio ordenamento, mesmo assim, a liberdade constitui a regra, devendo a sua limitação ser justificada.

Na análise do conteúdo da liberdade, consoante o que já foi dito no primeiro item desse capítulo, faz-se necessário distinguir, com Rosseau, a liberdade civil da liberdade natural. Esta última encontra a sua razão de ser na própria vontade ilimitada do indivíduo, realizando condutas, sem sofrer restrição alguma. Já a liberdade civil, importa na prática de condutas, desde que não sejam expressamente proibidas por lei. O ordenamento jurídico limita o direito dos cidadãos, com a finalidade de preservar a harmonia social. É dessa espécie de liberdade que trataremos, posto ser a liberdade civil a que se deixa envolver pelo manto estatal, e este por sua vez impõe limitações ao direito de liberdade.

Arnaldo Quirino, ressalta, a propósito, que:

As restrições impostas à liberdade pessoal devem ser somente as necessárias à manutenção do convívio pacífico e harmonioso dos indivíduos, preservando-a sempre que possível, mas apenas a ela como também e sobretudo todos os direitos inerentes à personalidade, pois o homem tem que ter preservada sua vocação natural para decidir sobre seus rumos e sobre si mesmo, afirmando-se na sociedade em que vive. [51]

Outrossim, a liberdade civil agrega várias espécies de liberdades, dentre elas a liberdade pessoal, que por sua vez, consoante Arnaldo Quirino, se divide em liberdade pessoal lato sensu e stricto sensu. A primeira, nas palavras do citado autor,

... abrange várias formas de manifestação do homem em suas relações em sociedade, que são desenvolvidas por conta do livre exercício de direitos imprescindíveis à personalidade humana, entre os quais podemos citar: o direito à liberdade de locomoção, a liberdade de expressão e pensamento, à liberdade de comunicação, à própria imagem, exercício de atividades, etc. [52]

Já a liberdade pessoal stricto sensu consiste propriamente na liberdade física, ou seja, no direito de ir, vir e ficar. Esse direito à liberdade de locomoção é tão sagrado que mereceu destaque não apenas do Código de Processo Penal, como também, previsão Constitucional, senão vejamos, atualmente o art 5º, XV, garante a liberdade de locomoção no território nacional, em tempo de paz, estabelecendo, igualmente a previsão, do remédio constitucional do habeas corpus para quem sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, tal dispositivo encontra-se no inciso LXVIII do citado artigo.

Não obstante o Estado garantir a liberdade de locomoção e a protegê-la mediante a criação de instrumentos específicos, como é o caso do habeas corpus, a ele, incumbe a tarefa de manter a paz social, regulando o proceder dos cidadãos mediante a instituição de normas com o fim de permitir que a vida em sociedade seja possível. A esse complexo de normas de conduta que possibilitam ao Estado a regulamentação das relações sociais chamamos de direito objetivo. Nesse sentido argumenta Julio Fabbrini Mirabete:

... o direito objetivo, ao mesmo tempo em que possibilita as atividades lícitas, é um sistema de limites aos poderes e faculdades do cidadão, que está obrigado pelo dever de respeito aos direitos alheios ou do Estado. Quem se afasta do imperativo das regras jurídicas, fica submetido à coação do Estado pelo descumprimento de seus deveres, eis que seriam inócuas as normas se não estabelecessem sanções para aqueles que as desobedecem, lesando direito alheio, pondo em risco a convivência social e frustrando o fim perseguido pelo Estado. [53]

Ainda com Julio Fabbrini Mirabete: "... a faculdade ou poder que se outorga a um sujeito para a satisfação de seus interesses tutelados por uma norma de direito objetivo é o que constitui o direito subjetivo". [54]

O direito utiliza-se da norma para garantir a subsistência de determinados valores tidos como imprescindíveis no cenário social. Segundo Vicente Greco Filho:

O mecanismo de bens e valores tutelados pelas sanções existe porque ao homem interessa a apropriação desses bens, que não são ilimitados. Decorre, daí, a necessidade de sua regulamentação para a permanência harmônica da convivência social, porque esta em si mesma também é considerada um bem, ou, pelo menos, é humanamente inevitável. [55]

A sujeição dos membros da sociedade às normas estabelecidas pelo Estado só é possível com a aplicação de sanções previstas para as infrações cometidas. Essas sanções, dependendo do bem jurídico tutelado, variam desde o ressarcimento dos danos causados até a segregação do indivíduo que praticou o ilícito. Neste último caso, a violação ao dever jurídico, agride um bem que, por sua transcendência social, afeta sobremodo as condições de vida na comunidade. O direito à vida, à integridade física, podem ser citados como exemplos. Tais bens recebem proteção da norma penal, consistindo sua transgressão no ilícito penal.

Tendo em vista que os interesses lesados comprometem a própria harmonia social, quando os bens tutelados têm caráter público, o Estado não permite que a aplicação do preceito sancionador ao infrator da norma de comportamento, prevista na lei penal, fique ao alvedrio do particular. Para tanto, o próprio Estado se investe do direito de punir, aplicando sanções contra o violador da norma.

Com a proibição da justiça privada ou a justiça com as próprias mãos, o Direito passou a ser prerrogativa exclusiva do ente estatal, não podendo a vítima compor o litígio, exercitando força própria, frente a impossibilitada de auto-executar seu direito, em decorrência de proibição legal e por ter sido instituído o Estado juiz como o detentor do poder de punir e, portanto, único legitimado a aplicar a sanção prevista em lei, constituindo crime a atuação pessoal, mesmo que o indivíduo tenha a seu favor a razão. Tal fato tipifica o delito do art. 345 do Código Penal, que prevê o crime de exercício arbitrário das próprias razões, nos seguintes termos:

Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite. Pena: detenção de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. (art. 345 do Código Penal).

Do exposto, se conclui que o único detentor do poder punitivo é sempre o Estado, não podendo se conceber de maneira diversa. No dizer de Vicente Greco Filho:

É fácil de entender que, se fosse admitida a justiça privada, estaríamos no império da insegurança e do arbítrio. De fato, àquele que tem uma pretensão, quando atua concretamente para satisfazê-la, não importa a declaração da existência ou inexistência de seu direito, mas somente a submissão da vontade do outro à sua vontade. [56]

O emprego da força não mais constitui forma usual para solução de litígios, razão pela qual, a função de administrar a justiça foi avocada pelo Estado como tarefa exclusiva sua, com finalidade de manter a ordem e paz social. Conforme observa Fernando da Costa Tourinho Filho:

Foi, pois, pela necessidade de pacificar o grupo e de "restabelecer, em benefício dele, a ordem jurídica, ameaçada ou violada, que o Estado interveio no campo da administração da justiça". "Essa intervenção, entretanto, ocorreu paulatinamente e gradativamente. A princípio, o Estado disciplinou a "autodefesa". Mais tarde, despontou em algumas civilizações sua proibição quanto a certas relações, a certos conflitos. E, assim, aos poucos, foi-se acentuando a intervenção do Estado, culminando por vedá-la. [57] (grifo do autor).

O Poder Judiciário é o grande encarregado de prestar a tutela jurisdicional, em sua plenitude, exercitando a jurisdição. Por tal motivo, praticado um fato ilícito, cumpre ao ofendido reclamar do Estado-Juiz a solução do litígio. Para isso, a parte interessada faz o uso do direito de ação, provocando a atuação do Judiciário. Este, por sua vez opera mediante a instauração do devido processo legal. Consoante Fernando da Costa Tourinho Filho, o processo pode ser definido como: "... uma sucessão de atos com os quais se procura dirimir o conflito de interesses. Nele se desenvolve uma série de atos coordenados visando à composição da lide". [58]

Dessa forma, como as normas penais têm caráter público, a sua transgressão atinge a própria sociedade, encontrando-se o Estado no pólo passivo da relação criminosa, por tal motivo, o Estado empreende procedimentos visando apurar o fato em toda sua extensão e a partir daí aplicar a pena, em caso de condenação. Dessa maneira, podemos concluir com Fernando da Costa Tourinho Filho que: "o jus puniendi pertence, pois ao Estado, como uma das expressões mais características da sua soberania". [59]

Consoante o citado autor,

... o Jus puniendi pode existir in abstrato e in concreto. Com efeito quando o Estado, por meio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a transgredir o mandamento proibitivo que se contém na norma penal, surge para eles o jus puniendi num plano abstrato e, para o particular, surge o dever de abster-se de realizar a conduta punível. Todavia, no instante em que alguém realiza a conduta proibida pela norma penal, àquele jus puniendi desce do plano abstrato para o concreto, pois, já agora, o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida. Surge, assim, com a prática da infração penal, "a pretensão punitiva". Desse modo, o Estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em conservar a sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringir o jus libertatis com a inflição da pena. A pretensão punitiva surge, pois, no momento em que o "jus puniendi" in abstracto se transforma no "jus puniendi" in concreto. [60] (grifo do autor).

O conflito de interesses que resulta da prática de um delito, originando a lide, não pode ser imediatamente solucionado com a prevalência do interesse estatal, submetendo o autor do crime a aplicação da sanção prevista em lei. A lei penal só pode ser concretizada se no exercício do jus puniendi ficar comprovado o envolvimento do indigitado autor na violação da norma, não podendo, nesse instante, ser mitigado o direito que o Estado garante a cada cidadão, o jus libertatis.

Por tal motivo, o direito que tem o Estado de atuar, aplicando a sanção não é ilimitado, esbarra no princípio da legalidade, que não permite a condenação por crime sem que haja previsão legal. Desse modo, se alguém é acusado da prática de um crime, o Estado só poderá infligir a pena se comprovada a sua responsabilidade através de decisão tomada pelo Poder Judiciário, mediante a instauração do devido processo legal.

Ademais, José Frederico Marques enuncia que:

Nos estados submetidos à lei e ao direito, a pena só se aplica ‘processualmente’. A atividade punitiva dos órgãos estatais encarregados de restaurar a ordem jurídica violada pelo crime submete-se a um controle jurisdicional a priori, em que o Poder Judiciário aplica a norma penal objetiva mediante a resolução de uma lide consubstanciada no conflito entre o direito de punir e o direito de liberdade. [61] (grifo do autor).

A garantia do processo legal foi erigida pela atual Constituição Federal à categoria de direito fundamental, no inciso LIV do artigo 5º, nos seguintes termos: "Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

Diante do exposto, podemos concluir que ao Estado incumbe o direito de punir, aplicando a norma penal sempre que praticado algum fato tipificado como crime, mas ao mesmo tempo em que detém o jus puniendi, garante, igualmente, ao cidadão o jus libertatis, conseguindo-se a efetivação dessas garantias e o seu equilíbrio por intermédio do devido processo legal.

Sobre a autora
Lenilma Cristina Sena de Figueiredo Meirelles

Mestre em Direito Constitucional pela UFC;Professora de Direito Processual Penal da UFPB;Professora da Especialização em Direito Processual da UFCG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEIRELLES, Lenilma Cristina Sena Figueiredo. Responsabilidade civil do Estado por prisão ilegal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 505, 24 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5961. Acesso em: 16 nov. 2024.

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