(i) Contextualização do tema
No dia 10 de agosto de 2017 foi publicada a decisão dos embargos de declaração opostos em face do acórdão proferido no Recurso Extraordinário 638.115/CE, em que se debateu a questão relativa à incorporação dos quintos decorrentes do exercício de funções comissionadas no período compreendido entre 8/4/1998 e 4/9/2001, precisamente entre a edição da Lei nº 9.624/98 e a Medida Provisória nº 2.225-48/2001.
O julgamento ocorreu no dia 30 de junho e aguardava-se pelo veredito expresso, principalmente com relação aos fundamentos acolhidos para a relativização da coisa julgada, eis que a grande maioria dos servidores públicos passou a ter incorporada a referida vantagem por meio de decisão judicial. E o que veio foi triste. Em todos os sentidos.
A sucinta fundamentação demonstra a ausência de dimensão dos efeitos da decisão no orçamento de milhares de servidores que, em sua grande maioria, vêm percebendo o valor da vantagem há mais de 10 anos. Alguns, inclusive, já aposentados. Todos confiantes na segurança advinda de decisões proferidas pelo Poder Judiciário, inclusive pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Não podia, portanto, existir maior segurança. Agora simplesmente desfeita.
Mas é preciso pontuar os alicerces da limitação posta nos Embargos de Declaração do RE 638.115 ED/CE, até mesmo por conta de outras decisões proferidas pelo próprio Excelso Pretório, para vislumbrar que a situação não está fechada ao amadurecimento, inclusive para o fim de retorno ao campo judicial.
(ii) Do fundamento para relativizar a coisa julgada: análise crítica.
Primeiramente, cabe deixar de lado a inusitada tese de que a matéria é passível de apreciação pelo Excelso Pretório sob a ótica de ofensa ao princípio da legalidade, haja vista que nada se vai acrescer além da crítica à credibilidade que perde, mais uma vez, o nosso Tribunal Constitucional diante de tão rasa justificativa.
A pretensão deste ensaio é cuidar, em específico, do fundamento conferido pelo Ministro Gilmar Mendes, acolhido pelo Plenário do STF em 30 de junho passado, acerca das dúvidas suscitadas pela Procuradoria-Geral da República com relação aos efeitos postos na decisão embargada, que assim deliberou:
“obstar a repetição de indébito em relação aos servidores que receberam de boa-fé os quintos pagos até a data do presente julgamento, cessada a ultra atividade das incorporações”.
Não é demais lembrar que, na oportunidade, a deliberação pareceu absurda diante das garantias decorrentes da “boa-fé, da origem da incorporação e do tempo de percepção da vantagem”, de modo que dúvidas foram suscitadas para buscar o escorreito direcionamento, cuja resposta veio a ocorrer por meio do Acórdão publicado em 10 de agosto passado, momento em que restou contextualizada a fundamentação acolhida pelo Supremo Tribunal Federal em 30 de junho, objeto da presente análise.
Pois bem, em artigo sobre o tema, esta articulista registrou a interpretação literal acerca dos efeitos da deliberação assentada no RE 638.115 ED/CE, conforme a seguir:
“Quanto a esse ponto, ficou evidenciado que o STF deixou vazar dois aspectos da modulação ao referir (a) que ela consistiria em não devolver os valores recebidos de boa-fé até a data do julgamento, qual seja, 19 de março de 2015; assim como (b) estaria cessada a ultra-atividade das incorporações concedidas indevidamente.
Ora, ao decidir que não se devolveria valores recebidos de boa-fé, ficou subtendido que embora a inconstitucionalidade albergasse todo o período em que a incorporação foi recebida à luz do critério interpretativo anterior, não haveria devolução. Exemplificando: quem teve 1/5 incorporado por força do referido critério e passou a perceber, desde 2005, o respectivo valor, ficou liberado da devolução até 19.3.2015. O problema está na disposição posterior da decisão, assente da cessação da ultra-atividade das incorporações. É que a ultra-atividade da lei consiste, em regra, no reconhecimento do direito à mantença de situação constituída sob a égide de norma anterior, ainda que esta tenha perdido sua vigência. E, no caso, ao cessá-la, ficou visível a intenção da Corte Constitucional em não mais permitir o usufruto da vantagem considerada indevida posteriormente ao julgamento. Nesse caso, tomando o exemplo anterior, o mesmo servidor que ficou liberado da devolução deixaria de usufruir, de igual sorte, a partir de então, da parcela que lhe foi concedida há mais cinco anos: não devolve, mas também não mais usufrui. Esse o entendimento primeiro que se extrai do texto decisório.[1]”
Não obstante, parecia um tanto quanto paradoxal que essa decisão irradiasse seus efeitos, na forma crua concebida, às situações já consolidadas em sede administrativa e judicial, esta última com a certeza do trânsito em julgado. Era preciso esclarecer. Porém, por mais ininteligível que possa parecer, esse foi o sentido emprestado pelo Excelso Pretório a todas as situações albergadas pela norma declarada inconstitucional. Foi o que disse, agora, o Supremo Tribunal Federal com todas as letras.
No Acórdão do Embargos de Declaração, o Ministro Gilmar Mendes não se deu ao trabalho de esmiuçar os fundamentos para tal desiderato, afirmando, apenas, que o Supremo Tribunal Federal já havia decidido que, “em qualquer hipótese, deve ser cessado o pagamento dos quintos pelo exercício de função comissionada no período entre 8.4.1998 até 4.9.2001, seja decorrente de decisão administrativa ou judicial transitada em julgado”. Sentença de morte a qualquer possibilidade de mantença da percepção da vantagem por aqueles que dela usufruíam por longa data – na grande maioria, por mais de dez anos – ainda que cobertos por aval do próprio Poder Judiciário, neste incluído o Supremo Tribunal Federal[2].
O fundamento desse entendimento foi consubstanciado, em relação às decisões transitadas em julgado, na tese firmada pelo próprio Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE-RG 730.462, de Relatoria do Ministro Teori Zavascki (tema 733), do qual se extraí o seguinte excerto:
“Afirma-se, portanto, como tese de repercussão geral que a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do art. 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495). Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto sobre relações jurídicas de trato continuado.” (Grifo nosso)
[...]
“Conforme asseverado, o efeito executivo da declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade deriva da decisão do STF, não atingindo, consequentemente, atos ou sentenças anteriores, ainda que inconstitucionais. Para desfazer as sentenças anteriores será indispensável ou a interposição de recurso próprio (se cabível), ou, tendo ocorrido o trânsito em julgado, a propositura da ação rescisória, nos termos do art. 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495). Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto, notadamente quando decide sobre relações jurídicas de trato continuado, tema de que aqui não se cogita.” (Grifo nosso)
De acordo com o Relator, Ministro Gilmar Mendes, “tendo em vista que o pagamento dos quintos incorporados no período entre 8.4.1998 até 4.9.2001 foi declarado inconstitucional e refere-se à relação jurídica de trato continuado, há que se reconhecer a necessidade de cessação imediata do pagamento da mencionada verba, sem que isso caracterize afronta à coisa julgada e sem que seja necessário o ajuizamento de ação rescisória[3]. ” E, ainda de acordo com o Relator, igual procedimento deve ser seguido em âmbito administrativo.
Em outras palavras, entendeu o Supremo Tribunal Federal que a partir do trânsito em julgado da decisão proferida no RE 638.115 ED/CE, a força vinculante dela decorrente determinará a cessação do pagamento da vantagem pessoal dos quintos, seja para os que tiveram a parcela reconhecida por decisão judicial transitada em julgado, seja para os que passaram a receber a vantagem em decorrência de decisão administrativa, prescindindo-se, desta feita, de propositura de ação rescisória ou recurso específico. E o motivo é único: trata-se de parcela de trato continuado, cuja ação executiva, decorrente do efeito vinculante da declaração de inconstitucionalidade, autoriza a extinção das verbas futuras.
Todavia, em que pese o entendimento dado, a nossa Corte Suprema deixou de perceber que a relação jurídica da qual se originou a vantagem dos quintos não comporta o tratamento por ela conferido, pois não se trata de uma vantagem de trato continuado, eis que consolidada sob incidência de norma específica sobre suposto de fato que se consumou plenamente de modo instantâneo, sobrevindo deste os desdobramentos pecuniários decorrentes.
Ou melhor, a vantagem dos quintos ou a vantagem pessoal nominalmente identificada (VPNI), como também é conhecida, decorreu de uma relação jurídica integralmente constituída ou formada a partir da incidência da norma sobre um suposto de fato - o tempo de exercício de uma função ou cargo comissionado. Não decorreu da prestação de serviço que se procrastina no tempo mensalmente, mas do implemento de uma condição temporal - tempo de exercício em uma função/cargo de confiança – que, satisfeita, atraiu a incidência da norma de regência, dita legítima no momento da concepção.
Nesse contexto, a vantagem dos quintos consubstancia uma vantagem formada e acabada em razão do implemento do seu correspondente fato gerador, de modo que a relação jurídica dela decorrente não se encontra classificada como advinda de uma relação jurídica permanente ou sucessiva, de trato continuado, mas de uma relação jurídica instantânea, nos moldes da definição trazida pelo saudoso Ministro Teori Zavascki[4], in verbis:
“Considerada a sua relação com as circunstâncias temporais do fato gerador, podem-se classificar as relações jurídicas em três espécies: as instantâneas, as permanentes e as sucessivas. Instantânea é a relação jurídica decorrente de fato gerador que se esgota imediatamente, num momento determinado, sem continuidade no tempo, ou que, embora resulte de fato temporalmente desdobrado, só atrairá a incidência da norma quando estiver inteiramente formado. É instantânea, assim, no campo tributário, a relação obrigacional de pagar o imposto de transmissão em face da venda de determinado imóvel. Define-se como permanente (ou duradoura) a relação jurídica que nasce de um suporte de incidência consistente em fato ou situação que se prolonga no tempo. A obrigação previdenciária que dá ensejo ao benefício de auxílio doença tem como suporte fático a incapacidade temporária do segurado para exercer as suas atividades laborativas normais, estado de fato que, prolongado no tempo, acarreta uma espécie de incidência contínua e ininterrupta da norma, gerando a obrigação, também continuada, de pagar a prestação. Dessa mesma natureza é a obrigação de pagar alimentos, que tem suporte fático desdobrado no tempo, consistente na insuficiência econômica e financeira do alimentando e na capacidade econômica e financeira do alimentante (Código Civil, art. 400). Finalmente, há uma terceira espécie de relação jurídica, a sucessiva, nascida de fatos geradores instantâneos que, todavia, se repetem no tempo de maneira uniforme e continuada. Os exemplos mais comuns vêm do campo tributário: a obrigação do comerciante de pagar imposto sobre a circulação de mercadorias, ou do empresário de recolher a contribuição para a seguridade social sobre a folha de salário ou o sobre o seu faturamento. (Grifo nosso)
A relação instantânea, portanto, decorre “de fato gerador que se esgota imediatamente, num momento determinado, já plenamente consumado no quando da incidência da norma[5]”. Portanto, consiste na satisfação imediata do direito a partir do implemento de determinada condição posta na norma. Vale reforçar o entendimento, mais uma vez, com a exemplificação extraída da obra do Ministro Teori Zavascki[6], a saber:
“Há certas relações jurídicas cujos efeitos são desdobrados no tempo, mas que não se confundem com as relações jurídicas permanentes nem com as sucessivas. A relação decorrente de um contrato de mútuo a prazo é, por natureza, instantânea, já que o fato gerador (o contrato) foi instantâneo, embora sua execução – o pagamento das prestações - seja diferida no tempo, segundo a vontade das partes. Da mesma forma, a relação previdenciária de aposentadoria por tempo de serviço tem diferida no tempo, por imposição da lei, a prestação de pagar proventos, mas o fato gerador, consistente em determinado número de anos de trabalho ou de contribuição, já se encontra inteiramente consumado. Por isso mesmo, nesses casos, tendo ocorrido o fenômeno da incidência sobre suporte fático completo e acabado, a subsistência dos efeitos (a obrigação do mutuário e da instituição previdenciária) independe da continuidade do fato gerador (ao contrário do que ocorre nas relações permanentes) ou da repetição do fato gerador (ao contrário do que se passa com as relações sucessivas). (Grifo nosso)
Sob tal contexto, evidencia-se que a vantagem dos quintos (VPNI) equivale, de maneira inequívoca, ao exemplo da aposentadoria por tempo de serviço/contribuição, na medida em que o fato gerador para o usufruto da vantagem, patente na satisfação dos requisitos temporais, é inteiramente satisfeito no momento do implemento da respectiva condição pelo agente público. Ou seja, a reunião dos requisitos para o usufruto da vantagem é inteiramente consumada em um determinado momento, fixando-se, a partir de então, o direito do servidor em manter o respectivo status para o futuro, a demonstrar, de forma inequívoca, que se trata de uma relação jurídica instantânea, delongada no tempo, sobre a qual não deve incidir os efeitos vinculantes e obrigatórios de uma declaração de inconstitucionalidade, a exemplo do que ocorre nos casos de concessão de aposentadorias e pensões. Essa, aliás, é a orientação pacífica do próprio Supremo Tribunal Federal, conforme se pode vislumbrar nos respectivos julgados que abaixo se reproduz:
“2. No julgamento da ADI 3106, Rel. Min. Eros Grau, DJe de 29/9/10, o Plenário invalidou norma que autorizava Estado-membro a criar sistema previdenciário especial para amparar agentes públicos não efetivos, por entender que, além de atentatória ao conteúdo do art. 40, § 13, da Constituição Federal, tal medida estaria além da competência legislativa garantida ao ente federativo pelo art. 24, XII, do texto constitucional.
3. Presente situação análoga, é irrecusável a conclusão de que, ao criar, no Estado de Goiás, um modelo de previdência extravagante – destinado a beneficiar agentes não remunerados pelos cofres públicos, cujo formato não é compatível com os fundamentos constitucionais do RPPS (art. 40), do RGPS (art. 201) e nem mesmo da previdência complementar (art. 202) – o poder legislativo local desviou-se do desenho institucional que deveria observar e, além disso, incorreu em episódio de usurpação de competência, atuando para além do que lhe cabia nos termos do art. 24, XII, da CF, o que resulta na invalidade de todo o conteúdo da Lei 15.150/05.
4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, com modulação de efeitos, para declarar a inconstitucionalidade integral da Lei 15.150/2005, do Estado de Goiás, ressalvados os direitos dos agentes que, até a data da publicação da ata deste julgamento, já houvessem reunido os requisitos necessários para obter os correspondentes benefícios de aposentadoria ou pensão.” (Grifos meus)
In casu, verifica-se que o benefício previdenciário já havia sido concedido à parte ora recorrida antes mesmo da publicação do acórdão proferido na ADI 4.639.
Ex positis, TORNO SEM EFEITO o SOBRESTAMENTO do feito anteriormente determinado (fl. 256) e DESPROVEJO o recurso extraordinário, com fundamento no artigo 21, § 1º, do RISTF. Publique-se. Brasília, 30 de junho de 2017. (RE 863821 / GO - GOIÁS RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator(a): Min. LUIZ FUX Julgamento: 30/06/2017, DJe-170 DIVULG 02/08/2017 PUBLIC 03/08/2017) (Grifo nosso)
“Não obstante a declaração de inconstitucionalidade da referida norma, ressalta-se que houve modulação de efeitos em relação aos aposentados e pensionistas que estejam percebendo ou tenham reunido condições para receber os benefícios de aposentadoria ou pensão nos termos da Lei 15.150/2005, do Estado de Goiás, até a publicação da ata de julgamento da ADI 4.639, 8.4.2015.
No caso em apreço, a aposentadoria foi concedida em 7.4.1992, na condição de serventuário extrajudicial (eDOC 1, p. 171).
A jurisprudência desta Corte tem entendido ser aplicável o reajuste da pensão conforme índices do RGPS, nos termos do art. 15 da Lei Estadual 15.150/05, aos aposentados e pensionistas que se enquadram na situação excepcionada pela modulação de efeitos do julgamento da ADI 4.639, como no caso dos autos.
Confiram-se, a propósito, os seguintes julgados:
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO. REGIME APLICÁVEL A NOTÁRIOS E REGISTRADORES. LEI ESTADUAL N. 15.150/2005 DECLARADA INCONSTITUCIONAL NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 4.639. MODULAÇÃO DE EFEITOS. PRESERVAÇÃO DOS BENEFÍCIOS CONCEDIDOS OU EM CONDIÇÕES DE SÊ-LO NA VIGÊNCIA DA LEI. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.” (RE 880.083-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, Dje 3.8.2015).
“AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. LEI Nº 15.150/2005 DO ESTADO DE GOIÁS. ADI Nº 4.657. LEI DECLARADA INCONSTITUCIONAL. MODULAÇÃO DE EFEITOS. PROTEÇÃO DOS SEGURADOS QUE JÁ HAVIAM REUNIDO OS REQUISITOS PARA PERCEPÇÃO DOS BENEFÍCIOS DE APOSENTADORIA OU PENSÃO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PARADIGMA APONTADO. INVIABILIDADE DO MANEJO DA RECLAMAÇÃO COMO SUCEDÂNEO RECURSAL. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. Apesar de declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 15.150/2005, do Estado de Goiás, o Plenário do Supremo Tribunal Federal modulou os efeitos de sua decisão na ADI nº 4.657, rel. Min. Teori Zavascki, resguardando os casos dos agentes que, até a data da publicação da ata deste julgamento, já houvessem reunido os requisitos necessários para obter os correspondentes benefícios de aposentadoria ou pensão.
2. In casu, a decisão reclamada adotou essas mesmas razões, assentado a existência de direito líquido e certo invocado pela segurada, que já havia preenchido os requisitos legais paraa obtenção do benefício.
3. A reclamação não pode ser utilizada como um atalho processual destinado à submissão imediata do litígio ao exame direto desta Suprema Corte, não se caracterizando com sucedâneo recursal. Precedentes: Rcl 10.036-AgR, rel. Min.Joaquim Barbosa, Plenário, DJe 1/2/2012; Rcl 4.381-AgR, rel. Min. Celso de Mello, Plenário, DJe 5/8/2011. 4. Agravo regimental a que se nega provimento”. (Rcl 20.834, Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 20.4.2016)
“Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo.
2. Reajuste de pensão previdenciária concedida com base na Lei n. 15.150/2005 do Estado de Goiás. Norma declarada inconstitucional pelo STF na ADI 4.639. Modulação de efeitos.
3. Possibilidade de reajuste da pensão, nos termos do art. 15 da Lei estadual 15.150/05, aos aposentados e pensionistas que se enquadram na situação excepcionada pela modulação de efeitos da ADI 4.639.
4. Agravo regimental a que se nega provimento”. (RE 897.328-AgR/GO, da minha relatoria, Segunda Turma, DJe 27.10.2015)
Ante o exposto, nego seguimento ao recurso (art. 932, VIII, do NCPC c/c art. 21, §1º, do RISTF). Publique-se. Brasília, 26 de junho de 2017. (RE 862745 / GO – GOIÁS RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. GILMAR MENDES.Julgamento: 26/06/2017, DJe-142 DIVULG 28/06/2017 PUBLIC 29/06/2017)(Grifo nosso)
Nesse ponto, faz-se crível esclarecer que a função executiva da declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade proclamada pelo Supremo Tribunal Federal advém do trânsito em julgado da decisão que a proferiu, a partir de quando se impõe a sua aplicabilidade com força vinculante e obrigatória às situações supervenientes, a serem constituídas em sede judicial ou administrativa. Essa declaração, incide, ainda, sobre os efeitos futuros das relações jurídicas de trato continuado, assim consideradas as relações permanentes e as sucessivas, excluídas as decorrentes de relação jurídica instantâneas, como são os quintos, a aposentadoria, a pensão e outros benefícios advindos dessa relação.
Importante ressaltar que a cessação dos efeitos futuros da decisão judicial sobre as relações jurídicas de trato continuado (desdobramentos futuros das relações jurídicas permanentes e sucessivas) em face da declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade de lei que a tenha amparado tem ensejo de forma imediata e automática[7], independentemente da propositura de uma ação rescisória, conforme deixou assente o Ministro Gilmar Mendes no acórdão dos Embargos de Declaração. Entretanto, como foi demonstrado, a relação jurídica sobre a qual se assenta a vantagem dos quintos não possui essa natureza, de modo que a única possibilidade de cessação do seu pagamento, determinado por decisão judicial com transito em julgado, dá-se mediante ação rescisória.
Para melhor entender as relações de trato continuado e contrapô-las às que deram origem aos quintos, vale exemplificar: um servidor obteve êxito, mediante trânsito em julgado de sentença, à percepção de determinado reajuste (URP), parcela cujo fato gerador é o vencimento recebido mensalmente e que, portanto, se renova, enquanto suposto de fato, a cada pagamento. Neste caso, o servidor deve ter cessado o pagamento da referida parcela (consistente nos efeitos temporais da coisa julgada) a partir do trânsito em julgado da decisão que declarou a inconstitucionalidade da norma que serviu de amparo à concessão justamente por se tratar, na hipótese, de relação jurídica de trato continuado – vinculada a uma relação permanente e sucessiva. Ou seja, o servidor que estava recebendo a parcela, a partir da força vinculante da declaração de inconstitucionalidade, deve ter cessado o pagamento, haja vista a natureza da relação jurídica tutelada, que se perfaz mensalmente. Esse o entendimento albergado pelo Supremo Tribunal Federal, a saber:
“ [...]
O apelo extremo merece provimento.
Inicialmente, registre-se que esta Corte fixou o entendimento a respeito da controvérsia no sentido de que, havendo alteração das premissas fáticas e jurídicas que ampararam a decisão judicial, não há ofensa à coisa julgada, haja vista tratar-se de relação jurídica de trato continuado sujeita à superveniência de novo regime jurídico. Nesse sentido:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. APOSENTADORIA. EXAME. DECADÊNCIA. NÃO CONFIGURAÇÃO. DIREITO AO PAGAMENTO DA UNIDADE DE REFERÊNCIA E PADRÃO – URP DE 26,05%, INCLUSIVE PARA O FUTURO, RECONHECIDO POR SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO. PERDA DA EFICÁCIA VINCULANTE DA DECISÃO JUDICIAL, EM RAZÃO DA SUPERVENIENTE ALTERAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS FÁTICOS E JURÍDICOS QUE LHE DERAM SUPORTE. SUBMISSÃO À CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS. INEXISTÊNCIA DE OFENSA À GARANTIA DA COISA JULGADA. PRECEDENTES. 1. No julgamento do RE 596.663-RG, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. para o Acórdão Min. Teori Zavascki, DJe 26.11.2014, o Tribunal reconheceu que o provimento jurisdicional, ao pronunciar juízos de certeza sobre a existência, a inexistência ou o modo de ser das relações jurídicas, a sentença leva em consideração as circunstâncias de fato e de direito que se apresentam no momento da sua prolação.
2. Tratando-se de relação jurídica de trato continuado, a eficácia temporal da sentença permanece enquanto se mantiverem inalterados esses pressupostos fáticos e jurídicos que lhe serviram de suporte (cláusula rebus sic stantibus). 3. Inexiste ofensa à coisa julgada na decisão do Tribunal de Contas da União que determina a glosa de parcela incorporada aos proventos por decisão judicial, se, após o provimento, há alteração dos pressupostos fáticos e jurídicos que lhe deram suporte. 4. Ordem denegada. (MS 25.430, Rel. Min. EROS GRAU, Rel. p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, DJe de 12/5/2016)
Agravo regimental em recurso extraordinário. Administrativo e Processual Civil. 2. Conversão da moeda de URV para Real. Limitação temporal. Possibilidade. Precedente RE 561.836-RG (Tema 5). 3. Processo em fase de execução. Ofensa à coisa julgada. Superveniência de novo regime jurídico. Perda da eficácia vinculante. Alteração dos pressupostos fáticos e jurídicos. Inexistência de ofensa à coisa julgada. 4. Ausência de argumentos suficientes a infirmar a decisão recorrida. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 789.533-AgR, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 2/3/2015)
Nesse sentido, colacionam-se os seguintes julgados monocráticos desta Corte: ARE 897.550/MG, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe de 1º/3/2017; ARE 896.763/MG, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJe de 6/6/2016; e ARE 953.515/RN, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJe de 2/6/2016. (ARE 817536 / MG - MINAS GERAIS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES. Julgamento: 01/08/2017; DJe-174 DIVULG 07/08/2017 PUBLIC 08/08/2017) (Grifo nosso)
Em relação aos quintos, o exemplo já foi acima relacionado. Trata-se do caso da concessão de vantagens/benefícios cujo fato gerador se esgota imediatamente, em momento determinado, por efeito da incidência plena da norma, como ocorre com as aposentadorias voluntárias por tempo de serviço/contribuição, o enquadramento funcional e outras vantagens obtidas sob condição temporal. Para essas situações, a força vinculante da coisa julgada somente de exaure ou modifica por outra sentença, proferida em ação rescisória.
Posta assim a questão em sede judicial, tem-se que a postura em sede administrativa não é outra.
A boa fé e a força do tempo se impõem à continuidade do status jurídico conquistado, mormente em face de uma relação jurídica instantânea. E é a própria Corte Constitucional que assim avaliza.
Um caso emblemático ocorreu no Mandado de Segurança nº 31.300/DF, cuja relação jurídica poderia ser tida, sob olhar açodado, como de cunho permanente ou sucessivo, a contaminar de morte os efeitos futuros da decisão administrativa que lhe deu guarida, mas que restou efetivamente assentada como decorrente de uma relação fechada, instantânea, a garantir os efeitos futuros da decisão administrativa.
Cuidou-se de impetração de mandado de segurança contra decisão do Tribunal de Contas da União que julgou inconstitucional a ascensão funcional (ou reenquadramento) dos Auxiliares Operacionais de Serviços Diversos, realizada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região, originariamente pertencentes ao nível Auxiliar da Carreira dos servidores do Poder Judiciário, para o cargo de Técnico Judiciário, Nível Intermediário. Na oportunidade, a Ministra Cármen Lúcia, Relatora do feito, assim se manifestou:
“3. Sem desconhecer a jurisprudência deste Supremo Tribunal, que, a exemplo dos julgados nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 112, 231, 245, 368, 785, 837 e 1.345, assentou a inconstitucionalidade das formas derivadas de investidura em cargos públicos, por sua contrariedade aos princípios do concurso público e da legalidade, e sem se opor censura à iniciativa do Tribunal de Contas da União de pretender assegurar a máxima efetividade da Constituição da República e a plena eficácia das decisões proferidas em controle abstrato de constitucionalidade por este Supremo Tribunal, tem-se que os efeitos vinculantes e a eficácia erga omnes que notabilizam essas decisões não podem ser indistintamente estendidos a todos os casos que versem matéria relativa a servidores públicos. O cumprimento das decisões proferidas em ações diretas de inconstitucionalidade, de suas partes dispositivas, se impõe a todos em razão daquelas características, mas há de se considerar as peculiaridades de cada caso para os julgamentos. (Grifo nosso)
E quais foram as peculiaridades que ocasionaram a exclusão dos servidores beneficiados com a decisão administrativa do TRT da 16ª Região da força vinculante e imperiosa da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Excelso Pretório em inúmeros julgados? O próprio Supremo Tribunal Federal, no citado acórdão proferido pela Ministra Carmen Lúcia, assim respondeu:
“Precedentes jurisprudenciais que tratem da questão do provimento derivado de cargos públicos não impõem nem justificam a invalidação automática de atos administrativos praticados, pois outras circunstâncias podem evidenciar a necessidade de sua manutenção.
Nesse sentido, Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari destacam:
“O dever processual de anular os atos ilegais de regra preclui quando haja de incidir sobre etapas já percorridas. (…)
Estando, contudo, o processo findo, o dever (…) de anular passa a ser metrificado à luz do princípio da segurança jurídica (...) Aqui, o interesse público e a paz social determinam que, transcorrido certo tempo, ditado em obediência ao princípio da razoabilidade, se tenha por imutável o ato. (...) É dizer, o fluxo do tempo (…) tem efeito saneador, só por si, do ato originariamente ilegal, sem necessidade de declaração expressa nesse sentido” (Processo administrativo. 2 ed. São Paulo: Malheiros, p. 249-250).
Na mesma linha, José dos Santos Carvalho Filho pondera:
“A correção do ato administrativo através da anulação não fica sempre a critério da Administração. Há certas situações fáticas que produzem obstáculos ou barreiras à anulação. Uma delas consiste na consolidação de determinada situação decorrente do ato viciado: se os efeitos desse ato já acarretaram muitas alterações no mundo jurídico, consolidando certa situação de fato, a subsistência do ato, mesmo inquinado de irregularidade, atende mais ao interesse público do que seu desfazimento pela anulação. Trata-se, todavia, de hipóteses de exceção, mas que, na verdade, podem ocorrer e já ocorreram na prática. A outra barreira é o decurso do tempo. Ultrapassados determinados períodos de tempo fixados em lei, fica extinta a pretensão ou o direito potestativo, tanto de terceiros em relação à Administração, quanto da Administração em relação a si própria (…)
De fato, no caso de ter havido efeitos em favor do administrado, o decurso do tempo acaba por criar situação jurídica de tutela que o beneficia, e assim não pode a Administração, após o período de cinco anos, corrigir o ato através da anulação. A consequência é a de que o ato administrativo, conquanto inquinado de vício de legalidade, subsiste no mundo jurídico o prossegue irradiando seus regulares efeitos em favor do titular” (Processo administrativo federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 271-273, grifos nossos).
4. O limite temporal para a anulação dos atos administrativos praticados em desconformidade com o direito foi fixado na Lei n. 9.784/1999, que estabelece:
“Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé” (grifos nossos).
[...]
9. Importa destacar, por fim, que os substituídos do Impetrante vêm recebendo as vantagens decorrentes das ascensões funcionais questionadas desde 1996, ou seja, há mais de doze anos, não havendo razão que justifique seu retorno aos cargos anteriormente ocupados após o decurso de período tão abrangente.
10. Pelo exposto, voto no sentido de conceder a segurança, ficando prejudicado o agravo regimental interposto.[8](Grifo nosso)
O tempo decorrido e a boa-fé devem se erigir como garantias inafastáveis à estabilidade das relações jurídicas. São elementos que consubstanciam o norte da segurança jurídica. E, no caso de a incorporação dos quintos, não levar em conta esses elementos é um verdadeiro acinte para o mundo jurídico.
Confia-se que a Corte Constitucional pátria não se deu conta da natureza da vantagem. É preciso levar ao seu conhecimento esse dado para que se tenha a possibilidade de revisão desse julgamento tão desastroso para milhares de servidores, ainda mais em um momento de crise econômica, onde a exclusão desses ganhos, percebidos por longa data, significa uma verdadeira limitação na linha da vida financeira de cada servidor.
É preciso buscar a razoabilidade.
(iii) Conclusão
O Brasil passa por uma grave crise institucional e, em muitos casos, não é difícil vislumbrar uma equação judicial em favor dos cofres públicos.
A decisão contrária à incorporação dos quintos no período compreendido entre 8.4.98 a 4.9.2001 é uma dessas sentenças cunhadas sob esse signo que traz a morte de um direito posto pelo próprio Poder Judiciário como justo e concreto. Parece que falou mais alto a perspectiva econômica do enxugamento, expressamente visível na decisão dos Embargos de Declaração opostos no RE 638.115 ED/CE, que ora deixou de acolher o sistema garantista em que se assenta o Estado Democrático de Direito.
A coisa julgada foi relativizada sob o escopo da cobertura de uma relação dita de trato continuado, quando se sabe que o fato gerador da vantagem, decorrente de uma incorporação temporal, se esgota no momento da incidência da norma, a demonstrar outro tipo de relação, de trato instantâneo, a requisitar a necessária segurança jurídica.
Impõe-se, portanto, buscar a revisão do julgado com os dados necessários para demonstrar o direito. Direito este que obteve do Poder Judiciário a mais efetiva das materializações, eis que há muito pacificado. Não se pode negar isso de todos os que examinam e estudam a matéria e ainda acreditam no Poder Judiciário.
Não mudar esse estado de coisas é caminhar para o descrédito.
[1] ALVARES, Maria Lucia Miranda. Efeitos jurídicos da decisão do STF que considerou ilegal a incorporação dos quintos entre 1998 a 2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4378, 27 jun. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/40384>. Acesso em: 11 ago. 2017.
[2] v. STF – AgRgRE nº 800.898/DF – Min. Rel. Ricardo Lewandowski – 2ª Turma - j. em: 6.5.2014 – DJe de 27.5.2014, STF – AgRE nº 410.823/PE – Min. Rel. Luís Roberto Barroso – 1ª Turma – j. em: 9.4.2014 – Dje de 5.5.2014; AI 725.112/DF-AgR, Relatora a Ministra Carmen Lúcia, Primeira Turma, Dje de 26/06/2009 e outros.
[3] RE 638.115 ED/CE – trecho extraído do acórdão publicado em 10 de agosto de 2017 (p.6, grifo nosso).
[4] ZAVASCKI, Teori. Estudo em homenagem ao Ministro José Néri da Silveira, extraído da obra Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional, São Paulo, RT, 2001.
[5] Na dicção do Ministro Teori Zavascki, na obra citada (p.22)
[6] Ob. Cit. pp. 4/5.
[7] A partir do trânsito em julgado da decisão que declarou a inconstitucionalidade ou constitucionalidade da lei.
[8] MS 31.300/DF, Relatora Ministra Carmen Lúcia, Acórdão publicado no DJ-e de 4/3/2013, Ata 20/2013.