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Bonapartismo policial no Brasil de 2017

Agenda 02/09/2017 às 16:00

O bonapartismo policial designa um regime político militarizado e que gere as políticas públicas de forma seletiva, racista e elitista, com total desprezo ao princípio democrático, à soberania popular, ao Estado de Direito.

Mas, o que é bonapartismo?

 Mais do que um sistema, o bonapartismo é um regime político – como oposto à democracia e à República.  Trata-se de um regime político autocrático, em que o ditador toma para si a representação da soberania, alinhando-se ao sistema produtivo capitalista (Marx, 1978). A própria Razão de Estado passa a ser equivalente a sua pessoa, por ação da personalização e do culto ao herói do poder .

Hitler é um marco, mas antes dele Luís Bonaparte – na sequência de Napoleão Bonaparte (2010) –, que, na França de 1848, promoveria a total militarização da Política. Com o emprego de forças armadas e policiais, exércitos mercenários e com largo uso do chamado “lumpemproletariado” – os excluídos do sistema produtivo e seguidores de Thomas Hobbes (1983): “homem lobo do homem” –, além da edição de normativas autoritárias e legitimadoras da violência institucional (Terrorismo de Estado), o bonapartismo anula o Princípio Democrático e a soberania popular.


E o que é Bonapartismo Policial? 

Poderia ser designado como “bonapartismo soft” (Losurdo, 2004), pois sem fazer uso (ainda) das forças armadas – a não ser por meio da edição de Garantias de Lei e da Ordem  – o Poder Político não decreta, exatamente, um Golpe de Estado com manejo do regime militar (manu militari) como tivemos em 1964. Não se faz presente o regime militar, propriamente dito, porque as polícias militares são subservientes ao militarismo (art. 144 da CF/88) ao empregar meios de exceção como técnicas de controle social. O uso das forças armadas, diante do caos social instalado, seria o preâmbulo de que as opções de legalidade estão no final; inclusive porque os resultados não foram os esperados, como a apreensão de armamento de guerra utilizado pelo tráfico de drogas .

No caso brasileiro, a decretação oficial do racismo institucional, pelo comando da elite da Polícia Militar paulista, obviamente, eleva a condição seletiva do policiamento bonapartista. Negros e pobres devem ser tratados de modo diverso dos ricos e brancos, declarou o Comandante da Rota em São Paulo. O governo de São Paulo se limitou a dizer que a PM segue um padrão de condutas. Pois bem, o padrão racista e elitista é então declarado como cartilha do policiamento de elite no Estado mais “rico” da União?

É evidente que não há necessidade de se especificar qual o tipo de “linguagem” deve ser empregada nos diversos ambientes societais. Com certeza – e as práticas assim o fundamentam – não seria a linguagem dos “direitos humanos”. De Herzog (jornalista preso, torturado e morto no regime militar) a Amarildo (pedreiro desaparecido depois que foi enclausurado em uma UPP no Rio de Janeiro), há uma linha sequencial de mentalidade na base estrutural do Estado Policial ou Estado de Justiça (Silva, 2016) que se formou no país. O que reafirma a análise de que o problema das PMs não é algo que esteja errado, mas sim o fato de que “deram certo”.

Assim, ao declarar seu voto no pré-candidato Jair Bolsonaro à presidência – com pauta crítica à legislação ambiental, aos direitos humanos e à assistência social  –, o Comandante da Rota reforça sua vocação, ideologia e intenção policial.Outro dado de reforço a esta mentalidade decorre do fato de que as polícias treinam com táticas de Forças Especiais – o mais conhecido é o grupamento BOPE , no Rio De Janeiro – e as técnicas empregadas são as mais letais possíveis. O uso de forças especiais no cenário de guerra é bíblico, mas obteve modernização de treinamentos e de recursos a partir da Segunda Grande Guerra (Denécé, 2009).

Originário do período Jacobino, governo extremista que se seguiu à Revolução Francesa, o Princípio da Exceção Jurídica nasceu como parte do direito. A exceção não está fora do direito, não se cria um tipo de Estado de não-Direito (Martinez, 2014), em que o direito não vigora; pelo contrário, governos do mundo todo se utilizam do instrumento legal para “defender” um suposto Estado de Direito. A diferença do passado mais remoto está em que há exceção em todo o corpo do Poder Político. Sob a cobertura de que se age para conservar a Razão de Estado – a própria justificativa de sua existência –, o Estado cria órgãos e instituições para além da normalidade. Este é o caso de se treinar uma parte do aparato policial ostensivo, em tempos de paz, como se fosse agir no quadro social de uma Guerra Civil. Isto faziam as ditaduras e isso fazem as democracias – no Brasil, o exemplo maior vem de Batalhões especializados da Polícia Militar: BOPE e ROTA. As ações empregadas por essas forças derivam de táticas e técnicas desenvolvidas no curso da Segunda Grande Guerra, conhecidas por Comandos. Eram combatentes destacados, superiores fisicamente e no controle mental, a quem se prestavam treinamentos avançados de sabotagem, dissuasão, dissimulação, extermínio.

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O emprego desses recursos remete a Gideão – "destruidor", "guerreiro poderoso" –, um juiz bastante prático, sobretudo, quando combatia seus inimigos midianitas (Síria). Com apenas 300 combatentes, empregou estratagemas espetaculares e obteve vitórias no campo de batalha:

Dividiu os trezentos homens em três companhias e pôs nas mãos de todos eles trombetas e jarros vazios, com tochas dentro [...] as três companhias tocaram as trombetas e despedaçaram os jarros. Empunhando as tochas com a mão esquerda e as trombetas com a direita, gritaram: "À espada, pelo Senhor e por Gideão!". Cada homem mantinha a sua posição em torno do acampamento, e todos os midianitas fugiam correndo e gritando (Juízes, cap. VII, versículos 16-21).

Gideão “provocou o caos no inimigo”, mas é evidente que no século XXI os meios não são tão sutis. Portanto, o uso de referenciais das Forças Especiais (FE) e de Comandos (Haney, 2003) pela elite da polícia confirma que estamos em guerra. Por que destacamos às polícias especializadas treinamentos e recursos altamente letais se não estamos em contexto de Guerra Civil?

Outra questão decorrente é o fato de que as FE/Comandos são exceção na tropa das próprias Forças Armadas (Young, 1975). Logo, treinamos as polícias, mas especificamente a Polícia Militar (PM) a partir da "exceção". Melhor dizendo, a elite da PM é uma força policial de exceção.

Além do fato de que as Forças Armadas treinam para a eliminação integral de seus inimigos e, ao contrário, a PM tem outro caráter constitucional, devendo-se ater à contenção, prevenção e repressão. Sendo que o emprego de força letal atende pelo “estrito cumprimento do dever”, uma salvaguarda jurídica equiparada à legítima defesa do indivíduo civil.

Ao mesmo tempo, policiais não recebem treinamento adequado para enfrentar uma Guerra Civil, têm munições e coletes vencidos, salários não pagos – ou em valor insuficiente – que levam aos “bicos”. Neste enfrentamento quase individual à violência urbana espiral, acabam vítimas da mesma violência que atinge toda a população civil. Em contrapartida, o caos institucional serve de combustível a nova taxação de terrorismo.

Neste caso, certamente, será um paradoxo insolúvel treinar os subterfúgios da exceção de combate e ensinar direitos humanos. O "inimigo combatente não é feito prisioneiro" (no manual da Força Delta/EUA) e, constitucionalmente, o pior dos sujeitos em "desacordo com a lei" têm a integral proteção do Estado de Direito. O Kidon de Israel (Frattini, 2014) treina exaustivamente para matar com as mãos, em total improviso. Todos treinam técnicas de tortura. Assim, como justificar o ensino/prática dessa exceção na PM, sem romper o Estado de Direito?


Estado de Exceção

Resquícios constitucionais-militares na CF/88

Vivemos tempos de extrema violência urbana (60 mil mortes brutais por ano), formação de cartéis do crime organizado e, evidentemente, de uma Guerra Civil sem precedentes; entretanto, o Estado responde de forma absolutamente inadequada: ao invés do social há mais repressão. Há uma lógica militarizada na origem da violência. Comandantes da Polícia Militar falam reiteradamente aos formandos que eles irão enfrentar uma guerra .

Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 já trazia esse caminho. Vamos nos concentrar em três brechas que alimentam o modelo Bonapartista de Estado: submissão das polícias às Forças Armadas (art. 144, § 6º da CF/88); Estado Penal (art. 5º, XLIII da CF/88); Estado de Sítio (art. 137 CF/88).

 O assim chamado modelo bonapartista ou de Cesarismo Regressivo (Gramsci, 2000) condensa uma forma política de gerir o Estado com o uso/abusivo de forças ideológicas e repressoras, alimenta-se da fragilidade cultural e política de determinadas classes sociais subordinadas. Arvora-se como República ou democracia representativa, mas manobra grupos sociais para desorientar opositores (utiliza-se de mercenários), bem como desconhece na prática a separação republicana dos poderes constitucionais. Em determinados casos, a separação de poderes até existe como definição constitucional; porém, pode ser revogada assim que o super-presidencialismo requisitar forças auxiliares para a contenção ou regulação do sistema, como se destacou na Constituição de Weimar, em seu art. 48  – a manipulação do poder constitucional conferiu poderes de Kaiserpresident ao Füher.

 O modelo Bonapartista de Estado surgiu como resposta de força às mobilizações populares na França de 1848. O pensador alemão Karl Marx (1978) detalhou o modelo de ação política desta forma-Estado no livro intitulado O 18 Brumário de Luís Bonaparte, em 1852. Naquele contexto, via-se o incremento de todas as forças de exceção político-constitucional sendo colocadas a postos, a fim de garantir o poder central e a ordem do capital desumano.

Como poderio militar-constitucional, o bonapartismo se coloca acima das frações de classe dominantes, isto é, acima dos interesses dos grupos políticos que estão ou que lutam pelo poder. Surge, então, como “saída milagrosa” de um poder absolutista, quando os grupos dominantes não conseguem chegar a um acordo e abrem espaço para a penetração das classes subalternas.

Na atualidade, os EUA revogaram a Lei Posse Comitatus, a lei que, desde sua Guerra Civil, proibia o uso de força militar em solo estadunidense. Já em sua origem, os fundadores dos EUA  não previram a divisão dos poderes e o controle do Executivo. De certo modo, o que o criador do liberalismo político John Locke (1994)  assegurou como divisão e, acima disso, controle dos poderes – no livro Segundo Tratado Sobre o Governo Civil –, foi desfeito no curso seguinte da história.

 Em nosso caso, a CF/88 ainda nos assombra com a possibilidade de se arvorar contra a democracia formal e a plena prestação dos direitos fundamentais. É simples o caminho: funciona como ameaças constantes e, portanto, como recursos jurídicos da “última razão dos reis” (o uso da força para conter a política). Tudo isso vem sendo pensado desde 2012, por causa da insatisfação popular. Mas, é possível ser mais didático.

 Primeiro: em condição de latência, sem a emergência de Estado de Justiça (autoritário), a lei de crimes hediondos reforça toda a trajetória imposta pela constante criminalização das relações sociais. Este é o chamamento do Estado Penal (Wacquant, 2003), com o crescimento exponencial dos tipos penais (novos crimes), endurecimento de penas, aprisionamento em massa, segregação racial, cultural e econômica dos apenados, privatização do sistema prisional. Sem desconsiderar a condição de masmorras medievais em que se encontra a grande maioria dos presídios, em que facções criminosas rivais disputam o poder e o controle da funcionalidade do sistema.

Segundo: para o caso de falhar o Estado Penal. Se as Forças Armadas têm nas polícias uma “força de reserva”, e isso implica em dizer que, se e quando a Razão de Estado julgar necessário, como em caso de comoção social, as Forças Armadas terão função política determinante: Garantia de Lei e da Ordem. As polícias poderão atuar, sob a vigência do Estado de Direito, como força reserva de coerção política. Bem como as polícias serão auxiliares, ou seja, atuarão não apenas como controle social, mas, sobretudo, como repressão política.

Apenas a Polícia Militar de São Paulo tem um contingente de homens semelhante ao das Forças Armadas. O que, em si, já bastaria para explicar a proibição do porte de fuzis. É uma das poucas polícias do Brasil que não tem fuzis e o motivo é óbvio, reflete a falta de segurança no controle político do próprio efetivo policial. A Revolução Constitucionalista de 1932 ainda paira nas cabeças pensantes.

Terceiro: a última reserva de força descomunal – definitivamente, institucionalmente, constitucionalmente – antecipa-se ao momento em que política se contorna em caso de polícia. Trata-se da possibilidade trazida/imposta pela previsão do Estado de Sítio. Se todas as outras formas de contenção política falharem, se os políticos profissionais não mais reunirem forças para conter a insatisfação popular (como já anunciada em 2012), nem puderem prender todos os “inimigos combatentes” do establishment, entrará em vigor a plenitude do Estado de Exceção. Ou seja, muito mais do que resquícios constitucionais da ditadura, vigoram no seio da Constituição Federal de 1988 todas as possibilidades requeridas pelo Estado de Exceção.


(In)Conclusão

Capitalismo/Presidencialismo de Colisão

No Brasil, nosso atual Capitalismo/Presidencialismo de Colisão não fornece respostas adequadas aos distúrbios sociais/políticos gerados por sua própria (in)ação. Neste sentido, destacam-se duas perturbações como pontas de lança: 1) o lumpemproletariado, como fração de classe, tem direção intelectualizada, é movido pelo instinto de poder (o codinome partido que se atrela ao PCC não é à toa), estudam o marxismo, com ênfase em Gramsci (2000), na hegemonia, e se afirma como "liderança societal" ; 2) por que a polícia (tipo BOPE/RJ e ROTA/SP) treina com táticas de guerra/guerrilha – copiadas dos Comandos , da Segunda Grande Guerra (Young, 1975) – se não estamos em Guerra Civil (sic)?

A segunda tese aparece como resposta à primeira: o Poder Político só consegue responder com truculência aos mais graves problemas sociais; pois, sem liderança autêntica no processo de transformação/mudança global, o Estado trata a "questão social" como ação de terrorismo. Novamente, o “monopólio do uso legítimo da força física” age como fora realizado durante a Ditadura Militar de 1964, equiparando-se a criminalidade com categorias políticas. No passado, criou-se o Comando Vermelho; no presente, a facção Primeiro Comando da Capital quer seus nacos de poder. Além disso, na era da comunicação aberta e descentralizada, ao menos no Brasil, a mercadoria é o cógito e o sinal está ocupado .


Referências Bibliográficas

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Bonapartismo policial no Brasil de 2017. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5176, 2 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60073. Acesso em: 22 dez. 2024.

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