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Trabalho infantil: notas sobre a realidade de crianças e adolescentes negligenciada pelo Estado à luz das diretrizes dos tratados e convenções internacionais

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4 DAS DISPOSIÇÕES NORMATIVAS CONSTITUCIONAIS 

A Constituição Federal de 88 dedica à criança e ao adolescente um dos mais expressivos textos consagradores de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, cujo conteúdo foi abordado e explicitado pela Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)[12]. Nas palavras de José Afonso da Silva, o art. 227 da Constituição Federal, é, por si só, uma carta de direitos e garantias fundamentais que correspondem aos previstos na Convenção da ONU sobre os Direitos Criança (SILVA, 2007).

O caput do referido artigo declara os direitos, enquanto que seus parágrafos indicam as providências para efetivar os direitos ali previstos, como proteção especial; convivência familiar e comunitária; respeito; liberdade e outros inúmeros direitos e garantias que visam assegurar-lhes uma infância digna (SILVA, 2007). Na parte final do caput do artigo em discussão, importante disposição merece ser destacada.

A Constituição assevera que é dever da família, da sociedade e do Estado, com absoluta prioridade, colocar a criança e o adolescente a salvo de toda forma de “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Essas disposições, interpretadas e aplicadas, de forma sistêmica com os demais mandamentos constitucionais e diretrizes normativas do ordenamento jurídico, visam, de início, e de forma ampla, coibir e promover – dentre outras situações que prejudicam a infância da criança – a erradicação do trabalho infantil.

Todavia, essas disposições são gerais e precisam ser trabalhadas nas mais possíveis especificidades normativas na promoção de políticas públicas. Exemplo disso foi a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990), que regulamenta diversas diretrizes constitucionais acerca do trabalho infantil.

 


5 DA APLICABILIDADE DAS NORMAS INTERNACIONAIS 

A Constituição Federal de 1988, considerada a Constituição Cidadã, assegura, de forma geral, inúmeros direitos e garantias às crianças e adolescentes, que as constituições anteriores não davam a devida atenção. Está consagrado na Carta Magna um dos mandamentos mais importantes da ordem jurídica do Brasil, em seu Art. 5º, §2º, que apresenta a seguinte redação:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em                    que a República Federativa do Brasil seja parte. (Art. 5º, § 2º, CF/88).

Este preceito constitucional abriu as portas do rol de direitos e garantias aos indivíduos. Ao considerar a hermenêutica constitucional interpretar-se-á, de maneira conjunta, o § 2º do Art. 5º, pelos métodos, gramatical, lógico e integrativo[13]. O entendimento é que todos os direitos e garantias constantes de qualquer regime, tratado, convenção ou princípios, na esfera internacional, em que o Brasil seja país signatário, as disposições que constam de tais postulados, equivalerão a qualquer norma constitucional.

Ou seja, possuem a mesma valia e aplicabilidade que qualquer outra norma constitucional. Assim sendo, nem mesmo a legislação doméstica poderá contrariar tal normatização internacional, sob o risco de não passar pelo filtro de constitucionalidade.

O § 2º do art. 5º é muito claro ao dizer que os direitos e as garantias que a Constituição assegurou não excluem outros decorrentes dos pactos internacionais. A respeito da interpretação a ser tomada diante desse preceito magno, o Supremo Tribunal Federal entendeu que os Tratados e Convenções que o Brasil faz parte, desde que ratificados pelo Congresso Nacional, possuem status supraconstitucional. Em outras palavras, as normas desses pactos estão acima da legislação ordinária e complementar. Equiparam-se as normas constitucionais. Seguindo esse entendimento, não haveria necessidade da redação do § 3º do mesmo artigo, uma vez que a interpretação já abarcaria a diretriz.[14]

Portanto, considerando a hermenêutica constitucional e o entendimento do Supremo Tribunal Federal, todos os direitos e garantias que constam de pactos internacionais terão a mesma valia que qualquer outra norma constitucional. Uma vez que o Brasil se torna signatário de um Pacto deve cumprir com as obrigações de tal acordo. O princípio da autonomia que rege o Direito Internacional, garante a cada país possibilidade de escolha das tomadas de decisões.

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O país tomou a decisão de fazer parte de determinada normatização internacional e espera-se que a cumpra, pacta sunt servanda. O Brasil conta hoje com dezenas de pactos internacionais, na sua maioria, tratados e convenções que tratam de direitos e garantias aos indivíduos. Importante observar que todos os pactos em que o Brasil é signatário foram ratificados pelo Congresso Nacional, portanto, têm vigência no ordenamento jurídico, não podendo ser questionada sua valia normativa.

 

5.1 A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Foi o Decreto nº 678 de 06 de novembro de 1992 que instituiu a Convenção Americana de Direitos Humanos, popularmente batizada de Pacto de São José da Costa Rica. Considerada uma das Convenções mais importantes de que Brasil faz parte, conta com inúmeros direitos e garantias aos indivíduos. Assim como a Carta das Nações Unidas, a Convenção Americana de Direitos Humanos foi ratificada pelo Congresso Nacional. Apresenta um importante dispositivo (que possui a mesma valia constitucional, como já salientado nos parágrafos anteriores) acerca dos direitos da criança em seu art. 19º, in verbis:

Artigo 19: Toda criança tem direito ás medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado.

O artigo 19º da mencionada Convenção garante às crianças especial proteção, conjunta, por parte de sua família, da sociedade e do Estado, para que lhes sejam assegurada uma infância digna. Importante garantia prevista nesta Convenção é a proibição de escravidão e da servidão, determinando que ninguém poderá ser submetido à escravidão nem mesmo constrangido a executar trabalhos forçados ou obrigatórios, tornando-se mais culminante a situação, quando tratar-se de crianças e adolescentes.[15]

No que diz respeito ainda as normas constantes da Convenção em análise, os Estados partes não podem alegar que tais mandamentos não estão sendo cumpridos com fundamento nas normas domésticas. Caso os direitos e garantias expressos na Convenção ainda não estejam em aplicação devido colidirem com as normas internas, estas devem ser modificadas a fim de tornarem efetivas as liberdades e os direitos contidos na Convenção, conforme disposição convencional.[16]

 

5.2 A CONVENÇÃO 182 E A RECOMENDAÇÃO 190 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO 

Em 17 de junho de 1999, em assembleia na Organização Internacional do Trabalho, foi criada a Convenção sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para a sua Eliminação, que, a priori, dispõe de normas gerais que deverão ser estabelecidas de maneira específica em cada Estado signatário.

O art. 1º determina que todo país membro ao ratificar a Convenção – no Brasil, foi ratificado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto 3.597 de 12 de setembro de 2000 –, deverá adotar medidas imediatas e eficazes para assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, em caráter de urgência. Importante ressalva fez a Convenção, ao entender que para os efeitos das disposições convencionadas, o termo "criança" designa toda pessoa menor de 18 anos (art. 2º).

Para efeitos da referida Convenção, a expressão "piores formas de trabalho infantil", abrange: a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, tais como a venda e tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; b) a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas; c) a utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a realização para a realização de atividades ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tais com definidos nos tratados internacionais pertinentes; e, d) o trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças.

Estas disposições convencionadas tornaram-se efetivas com a promulgação do Decreto nº 6.481 de 12 de junho de 2006, que regulamentou as piores formas de trabalho infantil. O referido Decreto, em seu art. 4º assim dispõe:

Para fins de aplicação das alíneas “a”, “b” e “c” do artigo 3º da Convenção nº 182, da OIT, integram as piores formas de trabalho infantil:

I - todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais como venda ou tráfico, cativeiro ou sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou obrigatório;

II - a utilização, demanda, oferta, tráfico ou aliciamento para fins de exploração sexual comercial, produção de pornografia ou atuações pornográficas;

III - a utilização, recrutamento e oferta de adolescente para outras atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; e

IV - o recrutamento forçado ou compulsório de adolescente para ser utilizado em conflitos armados. 

 5.3 A CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS CRIANÇAS DE 1989 

Diante da necessidade de maior proteção à criança, em 21 de novembro do ano de 1990, em assembleia geral, os países que compõem as Nações Unidas – inclusive o Brasil –, reuniram e convencionaram diversos direitos das crianças. Assim como nas demais Convenções, nesta foram apenas reafirmadas propostas de políticas asseguradoras de uma vida digna à criança e ao adolescente. Contudo, importantes considerações sobre proteção à criança foram feitas no preâmbulo da Convenção.

Todos os princípios já proclamados na Carta das Nações Unidas, como a liberdade, a justiça e a paz no mundo, fundamentam-se no reconhecimento da dignidade e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família, merecendo a criança, proteção especial, pois ela é o futuro da sociedade. Tendo em vista que os países integrantes das Nações Unidas reafirmaram na Carta sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, decidiram promover o progresso social e a elevação do nível de vida com mais liberdade, proclamando que a infância tem direito, cuidados e assistência especiais.

O preâmbulo da Convenção ainda dispõe que, para o pleno e harmonioso desenvolvimento da personalidade da criança, ela deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão, devendo estar plenamente preparada para uma vida independente na sociedade, sem que para isso deva abrir mão de uma infância digna para trabalhar.

Diante do exposto, há de se chegar a precipitada conclusão de que o Estado, por meio de todas essas garantias e direitos, existentes na Constituição Federal, Leis Complementares, Tratados e Convenções Internacionais, promove uma efetiva erradicação do trabalho infantil. Como dito, é uma conclusão precipitada. De fato, o Estado positivou políticas públicas a fim de promover as garantias e os direitos dispostos daquelas normas. Mas será que essas políticas são efetivas? E eficazes?

A resposta para as duas indagações há de ser negativa. Todos os fatores que condicionam a existência do trabalho de crianças e adolescentes contrapõem qualquer política pública que o Estado promova. Se a própria sociedade, sejam famílias pobres ou ricas, legitimam o trabalho infantil diante das proibições normativas que impedem tal atividade laboral, no intuito de promover uma infância sadia e digna à criança, qual é a saída para mudar essa realidade? Sem dúvida, não basta a criação de leis e de políticas asseguradoras da dignidade da criança, é necessária intensa fiscalização.

Somente se garantirá à criança uma infância mais digna no momento que o Estado fiscalizar todas as políticas de proteção à criança que criou, caso contrário são inócuas. Como dito, as famílias legitimam o trabalho infantil pela necessidade que cada uma enfrenta. Todavia, tirar da criança o direito de viver sua infância em plenitude, impondo-lhe obrigações privativas da sadia infância, é legitimar também um futuro enraizado de consequências, como será discutido no tópico seguinte.

 

Sobre os autores
Adilson Pires Ribeiro

Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Faculdade Batista de Minas Gerais (2020).

Silvio José Franco

Mestre em Ciência Jurídica pela UNIVALI (2003). Doutorando em Ciência Jurídica pela UNIVALI, em dupla titulação com a Universidade de Alicante (ES). Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, Juiz de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Adilson Pires; FRANCO, Silvio José. Trabalho infantil: notas sobre a realidade de crianças e adolescentes negligenciada pelo Estado à luz das diretrizes dos tratados e convenções internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5609, 9 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60827. Acesso em: 22 dez. 2024.

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