RESUMO
A teoria do adimplemento substancial, reconhecida pela doutrina e jurisprudência nacionais, visa a impedir o exercício desproporcional do direito de resolução contratual quando, ocorrendo o inadimplemento mínimo, a continuidade do contrato for viável e compatível com os interesses dos contratantes. O presente trabalho, ao abordar a origem, a definição conceitual e os fundamentos de validade dessa teoria, se propõe a demonstrar que a sua aplicação não fere os princípios da força obrigatória dos contratos e da autonomia da vontade, mas simplesmente os harmoniza com os princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva, da proporcionalidade e da conservação dos negócios jurídicos.
Palavras-chave: Direito Civil. Direito das Obrigações. Adimplemento Substancial. Boa-fé Contratual. Função Social dos Contratos. Constitucionalização do Direito Civil.
ABSTRACT
The Substantial Performance Theory, accepted by Brazilian doctrine and jurisprudence, intends to prevent the disproportion practiced in contractual conclusions, when, in cases of minimum default, the progress of the contract can be viable and compatible with the contractors concernment. The present work, boarding the institute’s source, conceptual definition and validity basis, aims to demonstrate that its application do not embarrass the principles of pacta sunt servanda and autonomy of the will, but simply harmonize them with the principles of contract’s social function, objective good faith, proportionality and preservation of the juridical deal.
Keywords: Civil Law. Law of Obligations. Substantial Performance. Contractual Good Faith. Contract’s Social Function. Constitutionalisation of Private Law.
Sumário: Introdução. 1. O princípio da função social do contrato. 2. O princípio da boa-fé objetiva. 3. A teoria do adimplemento substancial. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, a teoria do adimplemento substancial vem ganhando cada vez mais relevância no âmbito do Direito Civil brasileiro.
De acordo com essa teoria, ocorrendo o cumprimento quase integral de um contrato e sendo irrelevante a mora, estaria o credor impossibilitado de requerer a resolução contratual, podendo, contudo, cobrar a parte da prestação inadimplida, bem como eventual indenização por perdas e danos.
A teoria do adimplemento substancial não possui previsão expressa na legislação brasileira. No entanto, a doutrina e a jurisprudência reconhecem a sua existência e admitem a sua aplicação com base nos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva, da proporcionalidade e da conservação dos negócios jurídicos – compatíveis com o atual estágio de Constitucionalização do Direito Civil.
A análise de decisões judiciais revela que os Tribunais Brasileiros vêm aplicando a teoria do adimplemento substancial para impedir o exercício desproporcional do direito de resolução contratual por parte do credor, prestigiando a manutenção do negócio jurídico em detrimento do seu desnecessário desfazimento, nos casos em que a técnica da ponderação de valores revele que a continuidade do contrato seja viável e compatível com os interesses dos contratantes.
Nesse contexto, o estudo desse tema possui grande importância, possibilitando, a partir da abordagem nos campos da legislação, da doutrina e da jurisprudência, considerando sua origem, definição conceitual e fundamentos de validade, demonstrar que a aplicação da teoria do adimplemento substancial não viola os princípios da força obrigatória dos contratos e da autonomia da vontade e nem tampouco contraria a regra prevista no artigo 475 do Código Civil de 2002, que estabelece o direito subjetivo de resolução contratual.
Como objetivo geral, o presente artigo se propõe a defender a aplicação da teoria do adimplemento substancial para impedir o exercício desproporcional do direito de resolução contratual, nos casos em que a mora do devedor seja insignificante, e quando a manutenção do negócio jurídico seja viável e compatível com os interesses dos contratantes.
Como objetivos específicos, o artigo irá demonstrar que a aplicação da teoria do adimplemento substancial, ao impedir que o credor exerça o seu direito de resolução, diante do inadimplemento insignificante do devedor, não viola os princípios da força obrigatória dos contratos e da autonomia da vontade e o direito à resolução contratual, mas apenas os harmoniza com os princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva, da proporcionalidade, da conservação dos negócios jurídicos, e com a equidade.
Para alcançar os objetivos propostos neste artigo, serão analisadas legislação, doutrina e jurisprudência brasileiras referentes à teoria do adimplemento substancial.
Antes de adentrar no tema central, serão tratados de maneira mais detida, nos capítulos iniciais, os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, através da abordagem dos seus conceitos e das suas implicações no Direito Civil.
1. O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
Os princípios jurídicos, na valiosa lição de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona (2014, p. 65), informam a legislação, conferindo-lhe legitimidade e validade:
Por princípio, entendam-se os ditames superiores, fundantes e simultaneamente informadores do conjunto de regras do Direito Positivo. Pairam, pois por sobre toda a legislação, dando-lhe significado legitimador e validade jurídica.
De acordo com os artigos 421 e 2.035, parágrafo único, do Código Civil de 2002, a “liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”, e nenhuma convenção poderá prevalecer caso contrarie preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
Para Judith Martins-Costa (1998, p.12-13), a regra do artigo 421 do Código reflete, na esfera contratual, a garantia fundamental insculpida no inciso XXIII do artigo 5º da Constituição da República, que anuncia a função social da propriedade. Dessa forma, a função social deve integrar o próprio conceito de contrato:
Integrando o próprio conceito de contrato, a função social tem um peso específico, que é o de entender-se a eventual restrição à liberdade contratual não mais como uma “exceção” a um direito absoluto, mas como expressão da função metaindividual que integra aquele direito.
Ao discorrerem sobre o tema, Pablo Stolze Gabliano e Rodolfo Pamplona (2014, p.80) enfatizam que a função social é mais do que um critério para a interpretação dos contratos, pois representa norma jurídica (princípio) de conteúdo indeterminado e natureza cogente, de observância obrigatória pelas partes contratantes.
Portanto, a função social do contrato corresponde a um princípio de ordem pública pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, interpretado e visualizado de acordo com o contexto da sociedade, correspondendo a um fator de mitigação ou relativização da autonomia privada e da força obrigatória do contrato, com vistas ao alcance do bem comum.
A função social do contrato possui dupla eficácia: 1) externa (extrínseca), sendo observada além das partes que formam o contrato, ou seja, diante da coletividade; 2) interna (intrínseca), vinculando as partes contratantes à boa-fé objetiva e à lealdade contratual para o alcance da equivalência material entre os sujeitos (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 82).
Com relação à eficácia externa, o Enunciado 21 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal no ano de 2002, entende que a função social do contrato produz efeitos para além das partes contratantes, implicando na tutela externa do crédito. Nesse contexto, podem ser citados os seguintes exemplos de aplicações externas da função social do contrato: a) a proteção dos direitos difusos e coletivos; b) a tutela externa do crédito (TARTUCE, 2016, p. 619/620).
A proteção dos direitos difusos e coletivos se dá em razão da função socioambiental dos contratos, que pode ser observada, por exemplo, nos casos em que o contrato, a despeito de preencher os requisitos formais de validade, for invalidado por descumprir leis relativas ao meio ambiente, às relações trabalhistas, consumeristas, ou de mercado.
Nesse sentido, conforme o Enunciado 23 da I Jornada de Direito Civil, o princípio da autonomia contratual deve ser aplicado de maneira harmoniosa com a dignidade da pessoa humana e os interesses metaindividuais.
Tal entendimento se alinha perfeitamente à ideia de defesa das garantias constitucionais, em consonância com o fundamento da dignidade da pessoa humana, previsto no inciso III do artigo 1º da Constituição da República:
Em verdade, garantias constitucionais, tais como as que impõe o respeito à função social da propriedade, ao direito do consumidor, à proteção do meio ambiente, às leis trabalhistas, à proteção da ordem econômica e da liberdade de concorrência, todas elas, conectadas ao princípio de proteção à dignidade da pessoa humana, remetem-nos à ideia de que tais conquistas, sob nenhuma hipótese ou argumento, poderão, posteriormente, virem a ser minimizadas ou neutralizadas por nenhuma lei posterior. (GAGLIANO; PAMLONA FILHO, 2014, p. 85)
A tutela externa do crédito, por sua vez, pode ser exemplificada através do artigo 608 do Código Civil, que, promovendo uma releitura do princípio da força obrigatória dos contratos, estabelece deveres a terceiros estranhos ao negócio jurídico, porquanto proíbe que estes violem contrato alheio de prestação de serviços, sob pena de indenização.
A respeito da eficácia interna da função social do contrato, o Enunciado 360 da IV Jornada de Direito Civil (realizada no ano de 2006), ao tratar do artigo 421 do Código Civil, diz que o “princípio da função social dos contratos também pode ter eficácia interna entre as partes contratantes”.
Como exemplos de aplicações da eficácia interna da função social do contrato podem ser citados: a) a tutela da pessoa humana; b) a nulidade das cláusulas antissociais; c) a vedação da onerosidade excessiva ou desequilíbrio contratual; d) a proteção da parte mais fraca do contrato; e) o princípio da conservação contratual (TARTUCE, 2016, p. 617/619).
A tutela da pessoa humana guarda relação direta com o princípio de proteção da dignidade da pessoa humana, através do qual a clássica concepção individualista foi superada pela ideia da socialização, que defende o tratamento idôneo das partes contratantes, pautado na observação obrigatória da ética e da lealdade.
A nulidade das cláusulas antissociais em decorrência da função social do contrato também é preconizada pela atual perspectiva do direito civil constitucional. Sob tal viés, as cláusulas contratuais abusivas devem ser anuladas em qualquer contrato, sejam as partes iguais do ponto de vista econômico ou não, de modo que a liberdade contratual seja limitada em prol do interesse social e da dignidade da pessoa humana (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 90).
O Código Civil de 2002 evidencia essa sistemática através do inciso VI do artigo 166, ao determinar que é nulo o negócio jurídico quando este “tiver por objetivo fraudar lei imperativa”. Outras manifestações do Código que também corroboram o atual estágio de solidarismo social estão contidas nos artigos 156 e 157, que tratam, respectivamente, da anulabilidade dos negócios jurídicos em razão do “estado de perigo” ou da “lesão”.
A vedação da onerosidade excessiva ou desequilíbrio contratual decorre dos artigos 478 a 480 do Código Civil. Com base em tal vedação, o devedor poderá pedir a resolução de um contrato de execução continuada ou diferida quando, em razão de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, a prestação se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para o outro contratante. Contudo, a resolução poderá ser evitada se o outro contratante se oferecer para modificar equitativamente as condições do contrato, ou se as prestações do devedor forem reduzidas ou alteradas, de maneira a evitar a onerosidade excessiva.
A proteção da parte mais fraca do contrato (hipossuficiente) – outro exemplo de aplicação da eficácia interna do princípio da função social do contrato – é revelada através dos artigos 423 e 424 do Código Civil. Esses dispositivos, ao tratarem de maneira geral sobre os contratos de adesão, estabelecem que as cláusulas ambíguas ou contraditórias devem ser interpretadas de maneira mais favorável ao aderente, e que serão nulas as cláusulas que estipularem a renúncia antecipada deste a direito resultante do contrato.
Outra hipótese de aplicação da eficácia interna do princípio da função social do contrato pode ser visualizada através do princípio da conservação contratual. Nesse sentido, o Enunciado 22 da I Jornada de Direito Civil, ao se referir ao artigo 421 do Código Civil, traz a ideia de que a função social do contrato “reforça o princípio de preservação do contrato”.
Como dispositivos do Código Civil que buscam a conservação do contrato, além dos já citados artigos 478 a 480, que buscam o reequilíbrio contratual afastando a onerosidade excessiva, podem ser citados os artigos 187 (regra de conservação dos atos jurídicos) e 317 (revisão contratual em razão de motivos imprevisíveis).
2. O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
Ao conceituar a boa-fé, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona (2014, p. 100) destacam o caráter ético e principiológico desse mandamento:
[...] a boa-fé é, antes de tudo, uma diretriz principiológica de fundo ético e espectro eficacial jurídico. Vale dizer que, a boa-fé se traduz em um princípio de substrato moral, que ganhou contornos e matiz de natureza jurídica cogente.
Para Silvio de Salvo Venosa (2007, p. 347), a boa-fé objetiva corresponde a um dever de agir (ou a uma regra de conduta) que determina o comportamento dos contratantes de acordo com determinados padrões aceitos na vida em sociedade, isto é: traduz o comportamento do homem médio considerando-se as circunstâncias que permeiam determinada situação. Desse modo, a ideia de boa-fé objetiva constitui uma cláusula aberta, devendo ser definida no caso concreto, com base nos elementos sociais e históricos presentes na situação.
Sobre a impossibilidade em fixar-se um significado geral para a boa-fé objetiva, Judith Martins-Costa (1998, p. 16) afirma que:
[...] Não é possível, efetivamente, tabular ou arrolar, a priori, o significado da valoração a ser procedida mediante a boa-fé objetiva, não podendo o seu conteúdo ser rigidamente fixado, eis que dependente sempre das concretas circunstâncias do caso. [...]
A boa-fé, em sua acepção objetiva, atua na seara contratual com direção tríplice: 1) representa norma de interpretação e integração do contrato; 2) limita o exercício de direitos subjetivos; 3) serve como fonte de direitos e obrigações para os sujeitos da relação contratual (MARTINS-COSTA, 1998, p. 15).
A função interpretativa da boa-fé é prevista expressamente pelo artigo 113 do Código Civil de 2002, segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
A boa-fé objetiva serve de base para a interpretação de todas as fases do contrato (pré-contratual, execução e pós-contratual), sendo de elevada importância “a atividade do juiz na aplicação do Direito ao caso concreto” (VENOSA, 2007, p. 348):
O artigo 422 do Código Civil, ao prescrever que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”, tratou da função integrativa da boa-fé.
Contudo, como bem observado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona (2014, p. 113/114), o legislador falhou ao prever que o princípio da boa-fé, de acordo com a redação do artigo 422 do Código Civil, é aplicável apenas na conclusão e execução do contrato:
Deverá esse princípio – que veio delineado no Código como cláusula geral – incidir mesmo antes e após a execução do contrato, isto é, nas fases pré e pós contratual.
Isso mesmo.
Mesmo na fase das tratativas preliminares, das primeiras negociações, da redação da minuta – a denominada fase de puntuação – a boa-fé deve-se fazer sentir. A quebra, portanto, dos deveres éticos de proteção poderá culminar, mesmo antes da celebração da avença, na responsabilidade civil do infrator.
A propósito, caso o Projeto de Lei nº 699/2011 seja convertido em lei, a incidência do princípio da boa-fé será reconhecida expressamente em todas as fases do contrato, mediante a alteração do artigo 422 do Código Civil, que passará a ter a seguinte redação:
“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato, como em sua execução e fase pós-contratual, os princípios de probidade e boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da equidade”.
Já a função de limitação ou controle do exercício de direitos subjetivos, desempenhada pela boa-fé, pode ser encontrada no artigo 187 do Código Civil, pois segundo o tal dispositivo, também “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Por fim, possui a boa-fé objetiva a função de criar direitos e obrigações para os sujeitos da relação contratual. Isto é: em decorrência da boa-fé e a despeito da ausência de regra legal ou contratual específica, surgem os deveres anexos (ou laterais) de conduta, que devem ser cumpridos em todas as fases contratuais (pré-contratual, contratual e pós-contratual) (MARTINS-COSTA, 1998, p. 15).
Nesse sentido, o Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil reconhece que, em virtude do princípio da boa-fé, o descumprimento dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento contratual que independe da existência de culpa.
Como exemplos de deveres anexos (ou laterais), podem ser citados os deveres de cuidado, de respeito, de informação, de colaboração, de transparência, de aconselhamento, de segredo, dentre outros.
Uma hipótese de dever anexo na fase pós-contratual (post factum finito) tem previsão expressa na Súmula 548 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual: “incumbe ao credor a exclusão do registro da dívida em nome do devedor no cadastro e inadimplentes no prazo de cinco dias úteis, a partir do integral e efetivo pagamento do débito”.