DIREITO À PRIVACIDADE
Na França, entre o final do século XIX e o começo do século XX, ocorreu o apogeu do individualismo jurídico, que segundo TURCHETI (2011, p. 14)[17] foi caracterizado pela garantia aos direitos individuais. De acordo com esse autor, foi nesse período de transição que a proteção à privacidade teve seu marco inicial, com os ideais da Revolução Francesa, em que os cidadãos buscavam maior autonomia em face das interferências do Estado.
Com a Revolução Francesa, a dignidade humana começou a ter os direitos personalíssimos constitucionalizados. Os direitos personalíssimos, como o direito à vida, à integridade física, à honra, à intimidade e à privacidade são inatos ao ser humano e vitalícios, pois acompanham o homem desde seu nascimento até sua morte (PAIANO, 2003, p. 3).
Neste contexto, Vieira (2008, p. 87) ressalta que a Constituição Francesa de 1791 – ao dispor em seu título III, capítulo V, artigo 17 que “As calúnias e injúrias, contra quaisquer pessoas, relativas a ações de sua vida privada, serão punidas” – edificou um marco importante de proteção da vida privada.
Entretanto, estudos sobre a privacidade já estavam presentes bem antes da Revolução Francesa. No Direito Romano, por exemplo, já vislumbrava a necessidade de medidas que protegessem o ser humano. Sobre isso, Guerra[18] (Apud RAMOS, 2008, p.8-9)[19] disserta que:
É no Direito Romano que surgem as primeiras medidas protetivas do direito à honra (sendo os demais direitos a ela inerentes), este encerrava a plena posse dos direitos civis (dignitatis illaesae status, legibus ac moribus comprobatus – o estado de dignidade ilesa comprovado pelas leis e pelos costumes), tutelada inicialmente pela Acto Injuriariarum (Ação Privada), que durante o império passou a ser objeto de proteção criminal, em decorrência do interesse público que assim o exigia. A idéia de honra para os romanos interligava três conceitos, observado como objeto do crime de injúria: a) o sentido da própria dignidade; b) a estima ou boa opinião; c) as vantagens inerentes à boa reputação. (RAMOS apud GUERRA, 2008, p. 8-9).
A tutela dos direitos à privacidade reflete as lutas das pessoas que anseiam ver sua intimidade e vida privada regulamentados e protegidos pela Constituição Federal. E, sem se olvidar do mais importante, que não sejam apenas letra morta contida no corpo de nossa Carta Magna, mas sim que sejam eficazes para defendê-los (PAIANO, 2003, p.3).
Para clarificar o conceito de privacidade, verificou-se que o Dicionário do pensamento social do Século XX[20] a entende como sendo o laboratório de um alquimista alojando os minúsculos processos criativos que marcam o COTIDIANO, os quais contribuem para a “diversão” do eu e para a manutenção de um sentido de IDENTIDADE sem o qual a resilição e a resistência pessoais seriam impossíveis. Esse fenômeno ressalta claramente de uma pesquisa realizada com jovens. Ao analisar a chamada “emigração interna”, a pesquisa pôs em relevo o modo como indivíduos buscam “nichos” no tempo que lhes permitam períodos diários de afastamento do mundo à sua volta (Duvignaud, 1975, p.233).
Continuando o esforço em cristalizar o conceito de privacidade, consta no aludido dicionário[21] que é dentro da trama da vida cotidiana, imune à esfera da política, com todos os seus slogans e jogos de poder, que se localiza a soberania social. Poder-se-ia até afirmar que ela deriva todo o seu vigor do fato de permanecer escondida, de ser uma força oculta que nada tem a ver com a aparência de poder.
DIFERENÇA ENTRE PRIVACIDADE E INTIMIDADE
Porém, antes de prosseguir com este segundo capitulo, convém analisar a etimologia das palavras intimidade e privacidade. Intimidade, derivada do latim, intimus, cuja procedência é do advérbio intus, tem o sentido de interior, íntimo, oculto, do que está nas entranhas. Traz uma ideia de segredo, confiança. Pode-se depreender, desta forma, que intimidade tem um sentido subjetivo, pois traz consigo a ideia de confidencial. Já o conceito de privacidade, segundo Paiano (2003, p. 4) é mais amplo que o de intimidade, englobando tudo que não queremos que seja do conhecimento geral. Do latim privatus, significa privado, particular, próprio.
Prossegue o autor (PAIANO, 2006, p. 5):
Na França, a primeira acepção de vida privada faz referência ao caráter interior e profundo. Um segundo sentido, seria estreito e mais profundo. Por último, uma terceira acepção entende o íntimo como o privado. A língua francesa define íntimo como “o que se situa no nível mais profundo de sua vida psíquica, que permanece geralmente escondido sob as aparências, impenetrável a observação externa, as vezes também a análise do próprio sujeito.
Em sua abalizada pesquisa, o autor supracitado argumenta que o termo privacy, do direito inglês, deu origem ao termo right to privacy. Definido pelo Cambridge Advanced Learner’s Dictionary como “direito de alguém manter seus assuntos e relacionamentos pessoais secretos.”
Ruaro (2013, p. 1) define privacidade como sendo um dos bens da vida mais caros ao ser humano, uma vez que, sem ela, o homem expõe-se de modo a violar sua própria personalidade. A autora lembra o escritor George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair), em sua última obra literária, “1984”, escrita em 1949, que proporcionou ao público a oportunidade de visualizar uma sociedade completamente dominada por um governo totalitário, onde tudo era feito dados pessoais em nosso ordenamento.
É imperativo destacar que a expressão direito à intimidade e à vida privada teve início no final do Século XIX. Anteriormente, de acordo com Paiano (2003, p. 1), conflitos desse cunho eram dirimidos pelos princípios gerais do Direito, que serviam de fonte à formação da tutela a estes direitos.
São vários os conceitos e expressões usadas para definir a intimidade e a privacidade e as formas de dirimir prováveis conflitos dessa ordem. Mas, a expressão que mais se aproximou, a meu ver, daquilo que deve ser a palavra intimidade, veio de São Tomás. Para ele, é como “o pensamento dos corações”, ou seja: a intimidade é tida como sagrada, já que ninguém pode descobri-la, nem o Direito pode julgá-la ou valorá-la, porque isso seria uma presunção temerária.
Nessa mesma linha jusnaturalista de São Tomás, Bobbio[22] (apud RUARO, 2013, p. 1)[23] ensina que os direitos do homem provêm da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes em uma ordem jurídica concreta.
Segundo outros autores, como José Afonso da Silva, o conceito de privacidade é mais abrangente que o de intimidade. Para ele, o direito à intimidade é “a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”.
Para Paiano (2003, p. 9), a intimidade caracteriza-se por aquele espaço, considerado pela pessoa como impenetrável, intransponível, indevassável e que, portanto, diz respeito única e exclusivamente à pessoa. O autor exemplifica citando as recordações pessoais, memórias e diários entre outras coisas. Ele diz que este espaço seria de tamanha importância que a pessoa não desejaria partilhar com ninguém. São os segredos, as particularidades, as expectativas, enfim, seria o que vamos chamar de “lugar sagrado” que cada pessoa possui.
Para Hannah Arendt (Apud Reale Júnior, 2012),[24] há uma zona de exclusividade onde sem cuidados se desenvolve a própria existência, definida por Judith Martins Costa como a especial esfera da vida em relação à qual é garantida a imunidade ao próprio modo de ser da pessoa, defesa à interferência alheia, pois é o locus, material e espiritual, em que cada qual fixa sua singularidade, seus gostos particulares a serem usufruídos reservadamente. A autora explica que há uma diferença no grau de intensidade de exclusividade: a intimidade diz respeito ao modo de ser singular que cada qual tem no campo nuclear de sua existência, aos dados de foro o mais restrito, enquanto a vida privada diz respeito a formas de pensar e de agir a serem sabidas apenas por poucos.
Retomando a contextualização histórica do instituto da privacidade – justamente após a revolução francesa, de onde se engendrou forte luta em favor da dignidade humana e da garantia dos direitos personalíssimos – assinala-se que outro marco importante dessa luta foi o julgamento pela Suprema Corte Americana em 1902 do primeiro caso de violação do direito à intimidade. Apesar de ter sido rejeitada por quatro votos a três, a opinião pública se colocou ao lado dos magistrados vencidos, obrigando a Suprema Corte a reconhecer o questionado direito à privacidade.
Mais à frente, outro marco do avanço dos direitos personalísticos e da consagração do respeito à privacidade como corolário da democracia foi a realização da Conferência dos Juristas Nórdicos em 1968, que segundo Edson Ferreira da Silva (Apud Paiano, 2003, p. 2):
tivemos as primeiras proteções ao right of privacy. Ele foi conceituado como o direito do indivíduo de ter a sua privacidade protegida contra: a) interferência em sua vida privada, familiar e doméstica; b) ingerência em sua integridade física ou mental ou em sua liberdade moral e intelectual; c) ataque à sua honra e reputação; d) colocação em perspectiva falsa; e) a comunicação de fatos irrelevantes e embaraçosos relativos à intimidade; f) o uso de seu nome, identidade ou retrato; g) espionagem e espreita; h) intervenção na correspondência; i) má utilização de suas informações escritas ou orais; j) transmissão de dados recebidos em razão de segredo profissional.
Como se falou acerca do direito à privacidade nos EUA, é importante constar que, de acordo com Carvalho (2015)[25], o regime jurídico norte-americano é substancialmente diverso daquele adotado pelo Brasil, nos Estados Unidos vige a common law, que possui como característica mais notável a importância dada aos precedentes (julgados anteriores) em detrimento da legislação escrita. Carvalho explica ainda que o sistema constitucional também é bastante diferente, tendo em vista que a Constituição norte-americana é bastante concisa, diversamente do que ocorre com a Constituição brasileira de 1988.
Nesse ambiente, a privacy não se desenvolveu através da experiência legislativa, mas sim como uma construção jurisprudencial através de inúmeros precedentes, principalmente da Suprema Corte. Contudo, essa realidade não significa a inexistência de normas regentes sobre o tema (CARVALHO, 2015).
Como exemplo disso, Carvalho cita a Lei da Privacidade (Privacy Act, de 1974), que está contextualizada numa previsão anterior, de 1966, do direito de informação do cidadão em face desses órgãos públicos, conhecido como Freedom of Information Act (FOIA). O Privacy Act participa do Freedom of Information Act na medida em que restringe a circulação de dados pessoais do indivíduo, ao mesmo tempo em que lhe garante o acesso a esses dados.
Para Carvalho, enquanto no direito norte-americano a preservação da privacidade foi tratada em sede infraconstitucional e, principalmente, pela criação de precedentes, no direito brasileiro o tema foi inserido diretamente na Constituição Federal de 1988.
Continuando a diferença entre a privacidade americana e a brasileira, Carvalho ensina que a nossa tradição apresenta o lar como um domínio indevassável, mas não consegue enxergar com o necessário cuidado as necessidades individuais de cada membro da família. A ideia de intimidade é precária, visto que comumente é associada ao conjunto da família, descuidando das necessidades de cada pessoa individualmente considerada.