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De Antígona ao Supremo:

a tragédia grega e o alcance da Lei da Ficha Limpa

Agenda 18/11/2020 às 19:20

Este artigo analisa a votação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do alcance da Lei da Ficha Limpa, de uma perspectiva crítica e filosófica, retomando o debate estabelecido, milenarmente, na tragédia Grega Antígona.

“Há algo de ameaçador num silêncio muito prolongado”

Antígona

Antígona, ou Antígone, foi uma tragédia grega, escrita por Sófocles, por volta de 442 a.C.

A tragédia narra a dualidade pelo trono de Tebas dos dois filhos de Édipo e irmãos de Antígona: Etéocles e Polínices. Ambos, no anseio pelo poder, se matam em batalha, restando o trono tebano, ao tirano Creonte, parente mais próximo de Jocasta.

Creonte, ao ascender ao trono, lança mão de seu primeiro édito: Etéocles, aliado de Tebas, teria direito a todas as honrarias fúnebres, o que salvaria sua alma de perambular por toda a eternidade. Ao revés, Polínices, considerado inimigo e desafeto de Creonte, não seria velado e sepultado, e, consequentemente, não teria sua alma salva do flagelo eterno. As leis divinas gregas propunham que o sepultamento era necessário à salvação da alma. Creonte proíbe, sob pena de morte, quem sepultasse o corpo de Polínices. Este deveria permanecer exposto às aves carniceiras, porquanto se aliou aos Argivos (povo inimigo) para conquistar o poder em sua terra.

Antígona, ao saber do conteúdo do édito de Creonte, não o acata, por considerar que a pena imposta ao seu irmão Polínices era árdua demais e afrontava leis divinas, superiores, inclusive, as leis humanas.

Desobediente ao decreto do tirano, Antígona presta ao irmão as honras fúnebres e os rituais funerários proibidos. Creonte vê a atitude de Antígona como um duplo desrespeito: primeiro, porque a fraterna irmã transgride lei imposta, o que per si, já era motivo de punição; segundo, porque a atitude desobediente partia de uma mulher.

Estabelece-se, assim, rico e moderno diálogo entre Antígona e Creonte, que traduz o milenar embate entre o Direito Positivo e o Direito Natural. Sustenta Antígona:

(...) não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação. (SÓFOCLES, sem data, p. 227 - 228)  

Rebate Creonte:

Quem, por orgulho e arrogância, queira violar a lei, e sobrepor-se aos que governam, nunca merecem meus encômios. O homem que a cidade escolheu para chefe deve ser obedecido em tudo, quer seus atos pareçam justos, quer não. (SÓFOCLES, op. cit., p. 243). 

O diálogo estabelecido é um convite dialético: do cotejo da Lei Divina (Moral) e da Lei Positiva, qual a postura jusfilosófica que deve prevalecer? Do confronto entre o Direito Natural e Positivo, qual a tese mais viável a se adotar?

A resposta é, milenarmente, polêmica e lacunosa.

A discussão sobre as teses edificadas quando do julgamento do alcance da aplicabilidade da “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar nº 135/2010) pelos ministros do Supremo Tribunal Federal adquire contornos hermenêuticos bem semelhantes ao do impasse estabelecido na tragédia grega aludida.

Depreende-se, da leitura dos votos dos ministros, algo milenar e inconclusivo: teses filosóficas contraditórias sobre a própria concepção do conceito de Direito.

A título de exemplo, destaque-se parte do voto da ministra Luiz Edson Fachin: 

Trata-se de fato do passado que se projeta para o presente. Preencher condições para se admitir candidatura não é sanção. Quem se candidata a um cargo, a um emprego, precisa preencher o conjunto dos requisitos. Como a Constituição se refere à vida pregressa, isso significa que fatos anteriores ao momento da inscrição da candidatura podem ser levados em conta. Se o passado não condena, pelo menos não se apaga. (JORNAL NACIONAL - GLOBO. Supremo Tribunal Federal julga alcance da Lei da Ficha Limpa. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/09/supremo-tribunal-federal-julga-alcance-da-lei-da-ficha-limpa.html. Acesso em: 16 de outubro de 2017)

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É nítido o relevo moral do conteúdo do voto, próprio de uma postura jusnaturalista, que concebe o direito além do mero limite normativo, sem, contudo, menosprezar o sistema da legalidade. O imperativo ético é marcante característica do Direito Natural, que não dissocia a ideia de justiça e legalidade. Neste sentido, conceito de justiça está atrelado há uma lei natural, eterna e imutável, inerente ao universo já legislado. (MARQUES NETO, 2001, p. 132)

Não menos distante, foi o voto do ministro Luís Roberto Barroso, que pontuou:

Um tempo que não seja normal cobrar propina para colocar na legislação normas que vão favorecer determinadas empresas. Um tempo em que não seja normal extorquir empresas e pessoas para não convocá-las ou humilhá-las em comissões parlamentares de inquérito. Um tempo em que não seja normal tomar dinheiro de empresários que tenham negócios com o poder público (...) Gente honesta paga as suas contas elevadas com talão de cheque, com cartão de crédito ou com transferência bancária. Não é normal as pessoas circularem com malas de dinheiro. A desonestidade foi naturalizada e muitas pessoas, muitas mesmo, perderam a capacidade de distinguir o certo do errado. O país está doente, portanto nós precisamos interpretar as leis que procuram trazer probidade, imoralidade para o ambiente político dentro desta percepção. (JORNAL NACIONAL – GLOBO, op. cit. ) 

Salta aos olhos que o enxerto citado do voto faça alusão direta a valores éticos e morais, consubstanciados, inclusive, na linguagem usada: “Gente honesta”, “A desonestidade foi naturalizada” e “precisamos interpretar as leis que procuram trazer probidade, imoralidade para o ambiente político dentro desta percepção.”.

Em sentido diametralmente oposto, tem-se a tese do ministro Alexandre de Moraes, que concebe a retroatividade legislativa como afronta ao clássico princípio da irretroatividade normativa e ao próprio instituto da coisa julgada. Relata que:

O que me parece afetar é a segurança jurídica, é a previsibilidade jurídica, a boa-fé e, principalmente, a coisa julgada. A lei nem existia quando ele praticou ilícito, quando foi processado, quando ele foi condenado, quando transitou em julgado, quando terminou o prazo de três anos. Ou seja, tudo ocorreu sob a vigência de um ordenamento jurídico. (JORNAL NACIONAL – GLOBO, op. cit.)

Os argumentos aduzidos por Moraes são legalistas, dentro de uma perspectiva juspositivista. Dir-se-ia, inclusive, que a tese ventilada é desdobramento do normativismo de Hans Kelsen. Este preocupou – se em construir uma ciência do Direito que tenha um objeto puro, livre de qualquer contaminação ideológica, política, econômica, dentre outras. (MARQUES NETO, op. cit., p. 163)

A preocupação do magistrado, neste tocante, preserva institutos derivados da norma (a sua irretroatividade e a coisa julgada), sem avançar ou enfrentar o conteúdo ético da punição aos políticos sujeitos às sanções da Lei da Ficha Limpa.

O voto do ministro Gilmar Mendes, que endossa a concepção positivista do Direito, menciona:

O sujeito é condenado com a fixação de um grau de inelegibilidade. Agora o legislador pode a sua descrição elevar para um prazo maior. Em nome do quê? Da moralidade. A moral de que fala o texto constitucional deve ser compatível com a Constituição. Sob pena de nós estarmos criando um modelo de direito achado na rua. O modelo da lei da malandragem.". (JORNAL NACIONAL – GLOBO, op. cit.)

Gilmar Mendes é claro em frisar: o conceito de moral deve ser perquirido no perímetro da Constituição Federal. Logo, toda conceituação de moral é, de certa forma, buscada no texto legal. Extrapolar tal exegese seria um apelo ao “direito achado na rua”: o modelo, imoral, da malandragem.

Situação análoga foi acenada no voto do ministro Marco Aurélio de Mello: “Não podemos, por melhor que seja a intenção sob o ângulo moral, por maior que seja a busca de correção de rumos, simplesmente colocar em segundo plano o ordenamento jurídico.” (JORNAL NACIONAL – GLOBO, op. cit.)

O fenômeno jurídico não existe, de modo algum, em estado puro. Como leciona Marques Neto: “Ele sofre as mais diversas influências das inúmeras dimensões do espaço – tempo social, onde surge e se modifica. Por isso, a ciência do Direito, para compreende – lo na inteireza relacional de sua existência concreta, não pode prescindir de um enfoque eminentemente interdisciplinar.”. (op. cit, p. 129)

E continua o autor a propor:

A eficácia da norma jurídica se mede muito mais por sua adequação às proposições teóricas da ciência do que do Direito e por sua correspondência às realidades e aspirações do meio social, do que por critérios puramente formais, como, por exemplo, a coerência lógica interna do sistema jurídico, ou a validade formal de cada norma assegurada por outra hierarquicamente superior, embora tais critérios não sejam desprezíveis. (MARQUES NETO, op. cit., p. 130)

Nessa esteira de raciocínio, fácil perceber que a acirrada votação no Supremo Tribunal Federal abandonou ares positivistas e aplicou um conceito moral de Direito. Tal fato foi expresso na sua decisão, que autorizou a retroatividade da Lei Complementar 135/2010, aos casos anteriores a 2010.

Se se considerarmos que Ética e Política nem sempre foram avistadas juntas no cenário político nacional, creio que conceber o direito como instrumento moralizador, pacificador, de natureza interdisciplinar, seja um grande avanço. O divórcio da política e da moral não pode desencadear a segregação da ética e do direito. Tal fato seria o algoz do Estado Democrático de Direito: traria normas legais, porém ilegítimas.

O diálogo de Antígona com Creonte reflete o próprio diálogo do Pretório Excelso com a sociedade: um diálogo moderno e inacabado, mas essencial à manutenção do Estado e da Sociedade.

Cabe aqui dizer: urge encontrar no Supremo ministros com a coragem histórica e lucidez milenar de Antígona! A personagem já profanava: “Há algo de ameaçador num silêncio muito prolongado.”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JORNAL NACIONAL - GLOBO. Supremo Tribunal Federal julga alcance da Lei da Ficha Limpa. Disponível em http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/09/supremo-tribunal-federal-julga-alcance-da-lei-da-ficha-limpa.html. Acesso em: 16 de outubro de 2017.

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A Ciência do Direito: Conceito, objeto e Método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

SÓFOCLES. Antígone. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, sem data.

Sobre o autor
Rodrigo Alves da Silva

mestre e doutor em Direito. É pesquisador e parecerista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Advogado,regularmente inscrito na OAB/SP (204.358), docente da Escola Superior de Advocacia (ESA) e Professor Universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rodrigo Alves. De Antígona ao Supremo:: a tragédia grega e o alcance da Lei da Ficha Limpa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6349, 18 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61252. Acesso em: 21 nov. 2024.

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