Bem de família. Necessidade de prova de residência
O bem de família é o único imóvel do devedor, por ele utilizado como sua moradia, e que está – em regra – a salvo de penhora por qualquer tipo de dívida, conforme dispõe o art. 1º da Lei 8.009/90. Isto quer dizer que por mais dívidas que o indivíduo faça, se não houver outro patrimônio para que seja penhorado pela justiça, a sua casa estará a salvo.
Terá o devedor o direito de permanecer com a propriedade e posse de seu único imóvel para que nele continue a morar, desde que prove no processo em que se pretende penhorá-lo, que esse imóvel é realmente utilizado como residência, com declaração de imposto de renda, correspondências enviadas para o local e até por meio de testemunhas. Provado que o imóvel se presta como residência do devedor, o credor deverá se valer de outros bens, se encontrá-los, para a tentativa de penhora.
Entidade familiar abrange apenas pessoa casada?
Note-se que não é necessário que o devedor seja casado para que seja entendido que pertence a uma “família”. A proteção contra a penhora do único imóvel residencial abrange aquele que é de propriedade do devedor solteiro, divorciado ou viúvo, conforme o Enunciado 364 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Não importa, portanto, o estado civil do devedor.
A entidade familiar abrange filho casado?
E quando o devedor desocupa o imóvel e o cede para uso exclusivo de seu filho, já casado e que constituiu outra família? Seria possível esse imóvel ser penhorado, já que o devedor ali não mais reside, mas sim o seu filho, que faz parte de outra entidade familiar?
O art. 226 da Constituição Federal, em § 4º, dispõe que “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.” Afinal, o filho casado do devedor continuaria a pertencer à mesma entidade familiar de seu pai (o devedor) ou a outra, já que se casou?
Se a resposta for afirmativa para o primeiro caso, o bem de família continua impenhorável, pois utilizado pelo filho que, embora casado, continua a integrar a entidade familiar do devedor. Se negativa, poderia o bem de família ser penhorado devido ao fato de o filho casado não pertencer à mesma entidade familiar do devedor, por ter se casado e constituído outra entidade familiar, distinta da do devedor.
Essa matéria já foi levada ao Superior Tribunal de Justiça e analisada no recurso de Embargos de Divergência no Recurso Especial n. 1.216.187-SC, relatado pelo Ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado em 14/05/2014, no qual a Corte Superior terminou por concluir que não interessa o estado civil do familiar que passou a morar na residência do devedor. A “outra” instituição familiar do filho casado não desfaz a entidade familiar originária, à qual o filho continua a pertencer. Fundamentou o Relator do acórdão que:
“Com efeito, a Lei 8.009/90 que protege, em verdade, o único imóvel residencial de penhora. Se esse imóvel encontra-se cedido a familiares, filhos, enteados ou netos, que nele residem, ainda continua sendo bem de família. A circunstância de o devedor não residir no imóvel não constitui óbice ao reconhecimento do favor legal. (Grifamos)”
Para o STJ, portanto, basta uma pessoa da família do devedor residir no único imóvel residencial para impedir que seja penhorado. É irrelevante o fato de esse outro familiar ser casado ou não; basta que seja ascendente (pais, avós) ou descendente do devedor (filhos, netos), conforme conceito de entidade familiar preservado no art. 226, § 4º, da Constituição Federal.
Bem de família locado a terceiro
Questão que também se indaga é o fato de o imóvel não servir de residência ao devedor e nem a sua família, mas estar locado a terceiro. Nessa situação perderia a proteção contra a penhora?
O STJ já enfrentou essa matéria e entendeu que também não importa o fato de o devedor ou sua família não residir no imóvel. Se for comprovado que o imóvel está alugado e que a respectiva renda da locação é utilizada para a subsistência ou moradia do devedor e de sua família, não poderá ser penhorado, conforme o Enunciado 486 da Súmula do STJ:
É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.
Bem de família de elevado valor
Não são raros apartamentos e casas cujos valores superam a cifra de vários milhões de reais. São imóveis de alto padrão, de extremo luxo. Porém, mesmo de elevado valor são abarcados pelo conceito de bem de família e, portanto, impenhoráveis, nos termos da Lei nº 8.009/90.
Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, já demonstrado em vários julgados, como no Agravo em Recurso Especial n. 542.342-PR, publicado no DJe de 05/11/2014, Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Ressalve-se, entretanto, a possibilidade de o imóvel ser desmembrado entre residencial e comercial, conforme será abordado em tópico posterior; caso em que poderá ser penhorada a parte não residencial.
Todos as exceções da lei 8.009/90 para penhora de bens
1. As exceções do art. 3º da Lei 8.009/90:
a) para pagamento do crédito de financiamento de construção ou aquisição do próprio imóvel. São os casos clássicos (mas não exclusivos) de imóveis financiados pela Caixa Econômica Federal (CEF), cuja dívida, se não paga, permite à CEF executar o contrato de financiamento e penhorar o imóvel adquirido pelo devedor.
b) pelo credor de pensão alimentícia, mas resguardado o direito de coproprietário que, com o devedor, seja casado ou com ele conviva em união estável, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida (redação da Lei 13.144, de 06/07/2015). Veja mais no próximo tópico: “defesa do cônjuge para proteção de sua meação”
c) para pagamento de impostos que incidem sobre o imóvel, como IPTU, ITU e despesas condominiais. O condômino inadimplente que não paga as taxas de condomínio poderá ter o seu único bem de família penhorado para o pagamento dessa dívida, conforme, inclusive, dispõe o art. 1.715 do Código Civil
d) para pagamento de dívida resultante de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia da dívida, como nos casos de empréstimos bancários em que o devedor oferece sua própria casa ou apartamento como garantia à instituição financeira. Não paga a dívida, o banco pode executar o contrato e obter a penhora do bem de família ofertado em garantia hipotecária
e) para pagamento de dano resultante de crime pelo qual o devedor foi condenado criminalmente por sentença transitada em julgado. São casos de lesões corporais, tentativa de homicídio, estupro. Devido aos efeitos dessa sentença (art. 91, I, do Código Penal, e art. 63 do Código de Processo Penal), a vítima do crime poderá propor contra o condenado a respectiva execução para se ressarcir dos danos causados, cujos valores normalmente são apurados em liquidação de sentença. Nessa execução poderá ser penhorado o único bem imóvel residencial do devedor (o condenado pelo crime praticado contra a vítima)
f) para pagamento de dívida do fiador, que nesta condição se vinculou a contrato de locação de imóvel. Note que o único imóvel residencial do fiador poderá ser penhorado para pagamento das dívidas do locatário, mas a recíproca não é verdadeira. O único imóvel residencial do locatário não poderá ser penhorado pelo fiador em execução por este proposta regressivamente contra o locatário. A exceção que permite a penhora do bem de família do fiador é restritiva e não abrange o bem de família do locatário (art. 3º, VII, da Lei 8.009/90).
2. Multiplicidade de imóveis residenciais
Pode ocorrer de o devedor possuir mais de um imóvel como sua residência. Neste caso, se não compareceu em cartório para selecionar qual deles será instituído como bem de família (art. 1.711 do Código Civil), a própria Lei 8.009/90 dispõe que a impenhorabilidade recairá sobre o bem de menor valor (art. 5º, parágrafo único). Assim, se o devedor possuir dois imóveis residenciais, sendo um de dez milhões de reais e outro de 3 milhões de reais, a penhora incide sobre o de dez milhões.
3. Desmembramento do imóvel residencial
Situação peculiar ocorre quando o imóvel é dividido para utilização simultânea como residência e ponto comercial. Por exemplo, quando o imóvel que se pretende penhorar é um sobrado e o devedor reside na parte superior e cede em locação a parte inferior para o comércio ou mesmo para residência de outra pessoa diversa de sua família. A parte não utilizada como residência do devedor (ou de sua família) é passível de penhora.
Veja que a pequena propriedade rural é impenhorável por força dos artigos 649, VIII, CPC/73; 833, VIII, CPC/15, e 5º, XXVI, da CF, mas a área que lhe for superior poderá ser penhorada, devendo ser afastada da penhora apenas a sede de moradia (se houver), conforme art. 4º, § 2º, da Lei 8.009/90.
Assim, em caso de possibilidade de fracionamento do imóvel, é permitida a penhora da parte não utilizada como moradia do devedor (ou de sua família), pois escapa do raio de alcance da Lei 8.009/90.
Fraude na Venda do Bem de Família
Em inúmeras situações, o devedor procura se subtrair das suas dívidas. Após citado em alguma ação na qual o seu imóvel residencial possa ser penhorado (vide casos já mencionados do art. 3º da Lei 8.009/90), promove a imediata transferência a terceira pessoa, junto ao cartório de imóveis, para burlar o credor.
Esse ato fraudulento, denominado como “fraude à execução” (art. 593 do CPC/73 e 792 do CPC/15), é veementemente combatido pelo Judiciário e é tornado ineficaz em relação ao credor. Porém, só se tornará ineficaz para quem adquiriu o imóvel se – anteriormente à alienação do bem – houver sido: i) anotada no cartório próprio a existência da ação, da hipoteca ou a penhora do imóvel; ou ii) provada a má-fé da pessoa que adquiriu o bem do devedor (art. 792 do CPC/15 e Enunciado 375 da Súmula do STJ).