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Uso e abuso da Justiça gratuita ante o princípio constitucional do amplo acesso

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Agenda 05/07/2018 às 11:15

3. Breve distinção entre assistência jurídica, assistência judiciária e justiça gratuita

Embora utilizados com frequência no mesmo sentido, sobretudo por força dos rotineiros erros de natureza técnica cometidos pelo próprio legislador, os termos “assistência jurídica”, “assistência judiciária” e “justiça gratuita” possuem significados diversos.

A “assistência jurídica” possui maior abrangência do que a assistência judiciária, tendo em vista que compreende tanto a representação em juízo ou defesa judicial, quanto a prática de atos jurídicos extrajudiciais, como, por exemplo, a instauração e acompanhamento de processos administrativos perante órgãos públicos e serviços notariais e de registro, atividades de consultoria, encerramento, aconselhamento, informação e orientação em assuntos jurídicos. Já a “assistência judiciária” abrange a defesa do assistido em juízo, através do Estado, via Defensoria Pública, ou por entidades não-estatais, via núcleos e centros de assistência jurídica das faculdades, ou por intermédio de advogados particulares, conveniados ou não com o Poder Público (No mesmo sentido: MORAES, 1999, p. 58).

Por fim, o conceito de “justiça gratuita” é bem delimitado pelo saudoso mestre Pontes de Miranda, in verbis:

“Assistência judiciária e benefício da justiça gratuita não são a mesma coisa. O benefício da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despesas, exercível em relação jurídica processual, perante o juiz que promete a prestação jurisdicional. É instituto de direito pré-processual. A assistência judiciária é a organização estatal, ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória das despesas, a indicação de advogado. É instituto de direito administrativo. Para o deferimento ou indeferimento do benefício da justiça gratuita é competente o juiz da causa”. (MIRANDA, 1987, p. 641/642)

Em geral, a concessão do benefício da justiça gratuita por decisão do juiz dispensa a parte provisoriamente de efetuar o preparo prévio ou o pagamento das custas processuais, compostas pelas custas judiciais e taxa judiciária, no ato da distribuição da ação, e, durante o curso do feito, das demais despesas processuais, que englobam os gastos postais, com publicação de editais, verba de diligência do oficial de justiça, honorários periciais, remuneração do tradutor ou do intérprete, depósitos recursais ou para propositura de ação, legalmente previstos, emolumentos devidos a notários ou registradores em função da prática de ato necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade do processo judicial amparado pela gratuidade, honorários advocatícios decorrentes da sucumbência etc.


4. Natureza jurídica das custas processuais

As custas processuais, constituídas pelas custas judiciais e a taxa judiciária, são espécie do gênero tributo, da modalidade taxa, devidas pela utilização de um serviço público específico e individual posto à disposição dos jurisdicionados.4

Por meio de diversos precedentes, observa-se que não existe espaço, no campo tributário, para interpretações que afastem a concretização dos princípios da isonomia, universalidade, solidariedade, capacidade contributiva e justiça tributária.

No Estado de Minas Gerais, a contagem, a cobrança e o pagamento das custas remuneratórias dos serviços judiciários devidas ao Estado, no âmbito da Justiça Estadual de primeiro e segundo graus, encontra respaldo na Lei nº 14.939, de 29/12/2003, cujo artigo 4º as define como sendo despesas com atos judiciais praticados em razão de ofício, especificados nas tabelas do respectivo anexo, e referem-se ao registro, à expedição, ao preparo e ao arquivamento de feitos.

Portanto, eventual sonegação fiscal, vale registrar, constitui crime contra a ordem tributária, tipificado pelo artigo 2º, inciso I, da Lei nº 8.137/1990, que comina pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, sem prejuízo, obviamente, das demais sanções de ordem processual e administrativa impostas à parte, conforme estabelece o artigo 100, parágrafo único, do NCPC, consistentes no pagamento das despesas processuais que tiver deixado de adiantar e, em caso de má-fé, até o décuplo de seu valor a título de multa, que será revertida em benefício da Fazenda Pública estadual ou federal e poderá ser inscrita em dívida ativa.

Aliás, por essa razão, a lei proíbe o magistrado de despachar a petição inicial ou reconvenção, dar andamento ao processo, proferir sentença ou prolatar acórdão, bem como o servidor de distribuir ação ou reconvenção, expedir mandado, dar andamento ou fazer conclusão dos autos ao julgador, sem a regular comprovação do pagamento das custas judiciais, sob pena de responsabilidade pessoal pelo cumprimento da obrigação, além das sanções administrativas cabíveis, na forma do disposto no artigo 2º da Lei nº 14.939/2003.

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Daí, a isenção não se cuida, a toda evidência, de ato discricionário do magistrado, no exercício do monopólio da jurisdição, devendo ser deferida apenas aos hipossuficientes, na real acepção do termo.

Mas a situação dos hipossuficientes é expressamente resguardada pelo Provimento-Conjunto nº 15/2010 do TJMG, que prevê, nos artigos 22 e 23, inciso II, o custeio das despesas processuais por meio de recursos empenhados no orçamento do Tribunal.


5. Disciplina legal da gratuidade da justiça

A Constituição Federal/1988 assegura a todos expressamente no artigo 5º, inciso LXXIV, a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

Por sua vez, a Lei nº 1.060/1950, embora recepcionada pela CF/88, dispunha no artigo 4º, recentemente revogado pela Lei nº 13.105/2015, tão somente que “a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”.

Agora, desde o dia 18/03/2016, data da entrada em vigor do novo CPC, o assunto vem regulamentado pela Lei nº 13.105/2015, nos seguintes termos:

Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. (destacamos)

A inovação legislativa ficou por conta da expressa possibilidade da pessoa jurídica obter a gratuidade da justiça, se demonstrar a incapacidade financeira de arcar com os encargos processuais, o que já era admitido pela doutrina e jurisprudência, muito antes do advento da Súmula 481 do STJ, de 28/06/2012.


6. Evolução da linha interpretativa do tema nos tribunais pátrios

Na prática, até bem pouco tempo, prevalecia o firme entendimento nos tribunais pátrios, sobretudo nas instâncias superiores, de que bastava a mera declaração do postulante de que não possuía condições de efetuar o recolhimento das custas processuais e de assumir os honorários de advogado, a fim de que obtivesse o benefício de litigar sob o pálio da justiça gratuita, fundado na presunção legal de veracidade do disposto no art. 4º da Lei nº 1.060/1950.5

Mesmo em caso de derrota, o beneficiário da justiça gratuita fica isento, ex vi legis, de qualquer ônus ou risco de ter que arcar com o pagamento da sucumbência – composta pelas custas e despesas processuais – em favor da parte contrária, e de honorários sucumbenciais destinados por lei ao advogado da parte ex adversa, salvo se adquirir substancial elevação da renda nos cinco anos seguintes ao término da ação judicial.

Certamente, um dos fatores que motivou o sopro da mudança de entendimento foi a percepção do assombroso crescimento do número de lides e recursos temerários diariamente ajuizados no país afora. Desde então, vem ganhando força o fundamento de que a gratuidade judiciária deve ser deferida somente aos que comprovarem insuficiência de recursos, nos exatos termos do art. 5º, LXXIV, da CF, em prol dos jurisdicionados verdadeiramente necessitados, que acionam o Judiciário em busca do restabelecimento e satisfação de direitos ameaçados ou violados, sem alterar a verdade dos fatos, nem ocultar a real situação econômico-financeira, em detrimento do imprescindível custeio da atividade jurisdicional.

Nesse contexto, em meados de 2010, o Órgão Especial do TJMG, na linha de entendimento do STJ, pacificou a jurisprudência mineira, in verbis:

Ementa: “INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA - JUSTIÇA GRATUITA - POSSIBILIDADE DE CONDICIONAR A CONCESSÃO DA GRATUIDADE À COMPROVAÇÃO DO ESTADO DE MISERABILIDADE - ART. 4º, DA LEI 1.060/1950 - DISCRICIONARIEDADE DO MAGISTRADO - LIVRE APRECIAÇÃO DAS PROVAS - ARTS. 130 E 131, DO CPC.” (TJMG. Corte Superior. Incidente de Uniformização de Jurisprudência nº 1.0024.08.093413-6/002. Numeração única: 0934136-11.2008.8.13.0024. Rel. Des. RONEY OLIVEIRA. Data do Julgamento: 25/08/2010. Data da Publicação: 19/11/2010) destaque nosso

Aprofundando o debate, há uma corrente que defende a adoção de critérios objetivos para a concessão do benefício baseados na faixa de isenção do imposto de renda, eis que o contribuinte não isento se sujeita ao pagamento de todas as espécies de tributos, logo, se aufere rendimentos tributáveis, decerto que pode arcar com as custas processuais sem comprometer o sustento próprio e de sua família.6

Bastante razoável também o método utilizado em expressiva parcela dos julgados que adotam como parâmetro, para o enquadramento da parte como hipossuficiente, o sistema de triagem da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.7

Em 2015, de acordo com apontamentos do III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, realizado pelo Ministério da Justiça, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais restringiu o atendimento, através da Deliberação nº 025/2015, apenas à pessoa natural, nacional ou estrangeira, cuja renda individual ou familiar não ultrapasse, respectivamente, 3 (três) ou 4 (quatro) salários-mínimos – ampliando-se para 5 (cinco) salários-mínimos quando a entidade familiar for composta por 6 (seis) ou mais membros –, bem como, em qualquer hipótese, não possua recursos financeiros em aplicações ou investimentos em valor superior a 12 (doze) salários-mínimos, nos termos do artigo 1º.

Quanto à pessoa jurídica de direito privado economicamente necessitada, a Defensoria Pública presta atendimento desde que, cumulativamente, não possua empregado, prestador de serviços autônomo, sócio ou administrador remunerado com valor bruto mensal superior a 3 (três) salários-mínimos; não seja proprietária, titular de direito à aquisição, herdeira, legatária ou usufrutuária de bens móveis, imóveis ou direitos, cujos valores ultrapassem quantia equivalente a 40.000 (quarenta mil) Unidades Fiscais do Estado de Minas Gerais – UFEMGs; nem possua recursos financeiros tais como capital de giro próprio, depósito bancário, aplicação ou investimento, que totalizem valor superior a 20 (vinte) salários-mínimos, na forma do artigo 2º do mesmo ato normativo.

Convém observar outrossim que, com o advento do novo CPC, caiu completamente por terra o equivocado argumento de que o magistrado não poderia agir de ofício para determinar a comprovação da alegada hipossuficiência financeira pela parte, por meio de prova documental da efetiva renda própria ou familiar percebida mensalmente e do respectivo patrimônio.

Ora, diante de indícios acerca da inexistência da hipossuficiência financeira declarada, a presunção relativa contida no artigo 99 do CPC pode ser desconstituída, inclusive de ofício pelo magistrado, por força do parágrafo segundo do mesmo dispositivo c/c artigos 370 e 371, ambos do citado diploma legal.

Ademais, soaria desprovido de qualquer nexo lógico ou jurídico a possibilidade de a parte contrária impugnar o pedido de gratuidade, com base no NCPC, art. 100, e até mesmo notários ou registradores, em busca da satisfação do pagamento de emolumentos decorrentes da prática de ato necessário à efetivação de decisão judicial, a teor do disposto no art. 98, §8º, embora sequer integrem a relação processual, e o juiz, que preside o feito, não tivesse o poder de prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça, determinar o suprimento dos pressupostos processuais, sanear outros vícios processuais e determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, conforme prescreve expressamente o art. 139, incisos III, IV e IX, da referida lei federal.

A propósito, já na vigência do CPC/2015, o STJ manteve o entendimento de que o magistrado tem o poder-dever de agir, de ofício, para ordenar a comprovação da alegada hipossuficiência financeira pela parte, a fim de apreciar o pedido de justiça gratuita:

Ementa: “RECURSO ESPECIAL. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. […] DEVER DA MAGISTRATURA NACIONAL. INDÍCIO DE CAPACIDADE ECONÔMICO-FINANCEIRA DO REQUERENTE. INDEFERIMENTO, DE OFÍCIO, COM PRÉVIA OPORTUNIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DO DIREITO À BENESSE. POSSIBILIDADE. REEXAME DO INDEFERIMENTO DO PEDIDO. ÓBICE IMPOSTO PELA SÚMULA 7/STJ. […]” (STJ. REsp 1584130/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 07/06/2016, DJe 17/08/2016)

Sobre o autor
Lupercio Paulo Fernandes de Oliveira

Juiz de Direito em Minas Gerais Ex-Professor de TGP e Direito Processual Civil I Pós-graduado em Gestão Judiciária pela Universidade de Brasília – UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Lupercio Paulo Fernandes. Uso e abuso da Justiça gratuita ante o princípio constitucional do amplo acesso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5482, 5 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63305. Acesso em: 22 dez. 2024.

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