RESUMO: Esse trabalho teve como meta esclarecer a real importância do inquérito policial, no sistema persecutório adotado no Brasil. Baseando o estudo no histórico do inquérito e em suas características, procurou-se estabelecer uma relação entre a realidade do sistema persecutório brasileiro, seus desafios. Como o sistema persecutório brasileiro é baseado em duas fases distintas, uma administrativa e inquisitorial e outra acusatória e judicial, tivemos o cuidado de sempre estar delimitando nossa análise, mas sem nunca descuidar de estabelecer a real interdependência lógica entre ambas. Como o estudo foi direcionado apenas à lógica intrínseca do mecanismo inquisitorial e de sua realidade e importância, ampliou-se ao máximo a consulta bibliográfica, com a seleção de obras elaboradas por magistrados, promotores e delegados de polícia. Por fim, cumpre salientar que, tomando por análise apenas as características do inquérito, não se teve como objetivo direcionar o estudo a uma conclusão preestabelecida, mas enfatizar a importância de se contextualizar o inquérito como um meio, e que nessa direção, seu resultado prático é consequência tanto da realidade em que é utilizado, como da maneira em que é tratado pelo legislador.
Palavras-chave: inquérito, persecução, sistema persecutório.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objeto discutir a importância do inquérito policial no processo de elucidação do crime e na aplicação da lei. Nos últimos anos, têm sido recorrentes as discussões em torno do tema, mas demonstraremos a sua importância abordando seus aspectos gerais e peculiaridades. Muito do que se discute acerca de sua relevância advêm do fato de o Código de Processo Penal determinar a dispensabilidade do Inquérito para o oferecimento da denúncia. Todavia, tal regra funciona como garantia última, sendo a regra, sua utilização, mesmo porque é o instrumento mais eficaz para captar os carácteres do fato, tornando mais fácil e seguro o exercício da defesa e acusação.
A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, onde se procurou selecionar os ensinamentos de alguns doutrinadores acerca do surgimento e da realidade do inquérito, procurou-se também demonstrar o distanciamento que existe entre a alegada ineficiência do instrumento e sua real importância. Abordamos também a problemática em torno da substituição do inquérito por outro instrumento e os riscos decorrentes desse processo frente ao nosso modelo de ordenamento jurídico e a administração da justiça.
1 O INQUÉRITO POLICIAL
1.1 Breve Histórico
O crime pode ser estudado de várias maneiras, mas a sua elucidação e a responsabilização dos culpados, constitui tarefa árdua, que envolve conhecimento multidisciplinar além de experiência de campo. O processo de descoberta de provas, sua documentação e seleção sempre foi um desafio àqueles que se propuseram a levar à justiça os autores de crimes. Nesse compasso, o Estado, enquanto titular do direito de punir, necessitou desenvolver um mecanismo que pudesse padronizar esse processo e ainda garantir o respeito as garantias do cidadão. Nesse sentido, Souza e Cabral:
O legislador brasileiro diferenciou o inquérito policial (IP ou IPL) de qualquer outro procedimento administrativo, prevendo-o normativamente no Código de Processo Penal (CPP), delimitando o campo de atuação da polícia judiciária e do Ministério Público, tendo em vista assegurar ao cidadão a quem se imputa, em tese, a prática de uma infração penal, a garantia de que será investigado apenas pelo órgão estatal incumbido de tal mister, qual seja, a polícia. (SOUZA; CABRAL, 2013)
Ainda em relação ao tema, observa Machado, com ênfase na investigação criminal, que segundo seus ensinamentos possui duas características essenciais:
A persecução prévia apresenta duas notas características que merecem destaque: instrumentalidade e autonomia. Em primeiro lugar, é um procedimento instrumental à ação penal, pois se destina a esclarecer os fatos constantes na notícia de crime, fornecendo subsídios para o prosseguimento ou arquivamento da persecução penal. (MACHADO, 2010)
E continua, complementando o que foi dito:
Do caráter instrumental da investigação criminal infere-se a sua dupla função assinalada pela doutrina pátria, a saber: (I) preservador e (II) preparatória. Preservadora, porque inibe a instauração de ação penal infundada e, com isso, resguarda a liberdade do inocente, e evita custos desnecessários para o Estado. Preparatória, porque acautela meios de prova que poderiam desaparecer com o decurso de tempo. (MACHADO, 2010)
Em relação a autonomia, esclarece:
Em segundo lugar, a investigação criminal é marcada pela autonomia, pois, apesar de servir ao processo, sua existência não depende deste. Há casos em que a imputação é descabida e a investigação arquivada sem se iniciar a relação jurídica processual. Por outro lado, pode haver processo sem prévia instrução preliminar, se o órgão acusatório possuir dados suficientes da autoria e materialidade delitiva para apresentar, desde logo, acusação formal. (MACHADO, 2010)
O tema se mostra de crucial importância, uma vez que é no inquérito policial que se materializa a investigação criminal, sendo outros procedimentos investigatórios, exceção, e não a regra.
Nos tempos mais antigos, já se observava uma distinção entre o oficio de julgar e a tarefa de trazer à luz, aquilo que fora praticado na clandestinidade, com o objetivo de tornar impune o crime. Nesse sentido:
Na Grécia Antiga, entre os atenienses, existia uma prática investigatória para apurar a probidade individual e familiar daqueles que eram eleitos magistrados.
Já entre os romanos, conhecidos como inquisitio, era uma delegação de poderes dada pelo magistrado à vítima ou familiares para que investigassem o crime e localizassem o criminoso, acabando se transformando em acusadores. Anos após, a inquisitio atinge melhoras no seu procedimento e também ao acusado, concedendo-lhe poderes para investigar elementos que pudessem inocentá-lo.” (PICOLIN, 2007)
Foi justamente durante o Império Romano que se iniciou o processo de estatização da fase investigativa. Corroborando isso, assevera Marcello Mazella de Almeida, “teve início em Roma a investigação promovida pelos agentes do Estado, onde não se encontravam quaisquer obstáculos.” (ALMEIDA, 2012)
Por óbvio, naqueles tempos as garantias eram mínimas e aplicáveis apenas aos cidadãos, ficando desprotegidos escravos e estrangeiros. Todavia, foi um primeiro passo rumo ao surgimento das garantias, vez que antes, nos tempos da vingança privada, a aplicação da justiça se dava alheia a qualquer tipo de gerência por parte do estado, que quando muito apenas editava leis, sem se preocupar com quem a aplicava ou com o processo de elucidação do crime.
Foi ainda durante o Império Romano que se separou o procedimento de aplicação da lei em duas etapas, sendo justamente a de investigação, denominada de inquisitio que foi a semente do futuro do inquérito.
No Brasil adotou-se sistemática semelhante, nos ensinamentos de Souza e Cabral:
Assim, em resumo, no processo penal brasileiro, tem-se:
a) Uma fase policial investigativa e preparatória a ação penal, materializada por excelência no inquérito policial, procedimento que é conduzido inquisitorialmente;
b) Uma fase judicial de instrução e julgamento, materializada na ação penal, conduzida primordialmente sob as diretrizes do sistema acusatório, mas ainda com reminiscências do sistema inquisitório. (SOUZA; CABRAL, 2013)
Foi durante a primeira metade do século XIX, ainda durante o Brasil Império, com a elaboração do Código de Processo Penal, que se traçou as primeiras linhas do que se conhece do hoje por Inquérito Policial, mas de forma bastante incipiente ainda, apenas criando um instrumento informativo para utilização pelos Inspetores de Quarteirão, responsáveis por levar ao conhecimento da justiça o cometimento de crimes, sem nenhuma conotação de polícia judiciaria.
Sobre o tema, leciona Machado:
Desde o seu primórdio, o direito brasileiro sempre previu alguma forma de investigação preliminar de infrações penais, isto é, um procedimento prévio a fase judicial, destinado a reunir elementos atinentes à possível conduta criminosa e verificar a viabilidade de eventual juízo acusatório.
Na época do Brasil colonial, durante a vigência das Ordenações, existiam duas formas de investigação criminal: a devassa e a querela. A primeira era uma inquirição ordinária, sem preliminar indicação de autoria ou de indícios; e a segunda era uma inquirição sumária, com indicação prévia de autoria ou de indícios. (MACHADO, 2010)
Na esteira do exposto Picolin, acerca da criação do inquérito policial:
No entanto, com a Lei nº 2.033, de 20/09/1871, regulamentada pelo Decreto nº 14.824, de 28/11/1871 (art. 4º, § 9º), surgiu, entre nós o Inquérito Policial com essa denominação, sendo que o artigo 42 da referida lei chegava inclusive a defini-lo: "O Inquérito Policial consiste em todas as diligências necessárias para o desenvolvimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito". (PICOLIN, 2007)
A realidade é que desde a sua criação, ainda no século XIX, o inquérito foi o principal instrumento a disposição do Estado para conduzir a investigação criminal, tendo obviamente sofrido alterações para adaptar-se às mudanças sociais e políticas ocorridas ao longo tantos anos, mas continuando o mesmo em termos de finalidade e utilidade.
Aspectos Gerais
O inquérito policial como hoje se delineou, é resultado do próprio modelo persecutório adotado no Brasil. É importante perceber que o inquérito esteve presente em várias fases de nossa história e sempre teve que se adaptar, agregando características que o compatibilizassem com a realidade vigente. Sobre o tema discorre o professor Machado:
No transcorrer de nossa história, a investigação criminal assumiu várias formas, com diferentes cargas de poderes e deveres para o imputado, mas sempre com o propósito comum de obter dados sobre a materialidade e a autoria de eventual prática delitiva. Essa fase preliminar apresentou características próprias de acordo com o sistema processual existente (inquisitório, acusatório ou misto), que, por sua vez, se estruturou conforme o modelo estatal vigente à época. (MACHADO, 2010)
O inquérito é instrumento de coleta de provas, e precipuamente se dirige a desvendar os acontecimentos e suas circunstâncias, possibilitando ao Ministério Público o oferecimento da ação penal com segurança.
Machado o define como:
A nosso ver o inquérito policial pode ser considerado procedimento, pois, apesar de inexistir ordem legal rígida para realização dos atos, o legislador estabeleceu uma sequência lógica para instauração, desenvolvimento e conclusão deste procedimento investigatório. (MACHADO, 2010)
Outro aspecto interessante do Inquérito Policial é sua função garantidora, por que serve também a defesa, uma vez que os fatos são como são, mas o exercício da defesa pode tomar vários postos de vista.
Possui peculiaridades que o tornam instrumento de extrema utilidade e que serve de elemento essencial a proteção de provas, leciona Guilherme de Souza Nucci,
[...] é, por sua própria natureza, inquisitivo, ou seja, não permite ao indiciado ou suspeito a ampla oportunidade de defesa, produzindo e indicando provas, oferecendo recursos, apresentado alegações, entre outras atividades que, como regra, possui durante a instrução judicial. (NUCCI, 2014)
Nesse mesmo sentido, Capez:
A finalidade do inquérito policial é a apuração de fato que configure infração penal e a respectiva autoria para servir de base à ação penal ou às providências cautelares. (CAPEZ, 2012)
E por fim a visão de Bonfim:
O inquérito policial tem caráter essencialmente instrumental. Sua finalidade é possibilitar a reunião de elementos de prova que reforcem e fundamentem as suspeitas acerca da pratica de delito de natureza penal. Nesse sentido o inquérito policial é um procedimento preparatório para eventual ajuizamento de ação penal.
Além disso, o inquérito policial serve também como elemento de “filtragem” do sistema penal, ao prevenir a movimentação do Poder Judiciário para o processamento de fatos não esclarecidos ou de autoria desconhecida. (BONFIM, 2012)
O inquérito policial possui características singulares, que o transformam em instrumento ímpar, haja vista, servir tanto a fase inquisitiva, quanto a acusatória, e também poder balizar os trabalhos de defesa e acusação.
Outro aspecto interessante do inquérito policial diz respeito a sua fase inicial. Quando ainda incipientes as provas, caberá a autoridade policial averiguar a verdade dos fatos, por isso diz-se que o inquérito tem também características de cautelaridade. Assim elucida Machado:
[...] o inquérito policial é procedimento cautelar pré-processual, pois serve para a captação e preservação dos meios de prova da materialidade e da autoria delitiva, a serviço de eventual ação penal, e é preliminar a processo, embasando a sua instauração ou impedindo acusações descabidas. (MACHADO, 2010)
A utilidade do inquérito, entretanto, é fundamentalmente atrelada à qualidade de seu conteúdo, pois as investigações policiais são feitas por diversos agentes, utilizando-se de inúmeros mecanismos, além de perícia técnica, o que exige grande habilidade do delegado de polícia no mister de selecionar, interpretar e utilizar essas provas e informações técnicas, colocando-as ao alcance do ministério público e judiciário. No mesmo sentido Sousa e Cabral:
[...] a autoridade policial deve sempre buscar, com isenção e equilíbrio, a verdade real. Tal tarefa nem sempre é simples, posto que, em seu dia-dia, a praxe policial revela difíceis e complexas situações fáticas que exigem soluções imediatas do delegado de polícia, que deve adequar o fato ao ordenamento jurídico. Em outras palavras: o delegado de polícia deve saber “o que fazer”, “como fazer”, e “quando fazer”, para alcançar o êxito da investigação. (SOUZA; CABRAL, 2013)
Nesse mesmo diapasão, é importante lembrar que muitos crimes são julgados muitos anos depois de seu cometimento, tempo em que as testemunhas já não são capazes de trazer ao processo depoimentos com tanta riqueza de detalhes; então o inquérito serve de amparo essencial a interpretação dos fatos por parte do magistrado.
Outro relevante aspecto a se considerar preliminarmente diz respeito à ausência de contraditório durante o inquérito, e isso tem relação com o fato de o inquérito ser um procedimento administrativo, no qual não vigoram determinadas garantias constitucionais. Todavia, isso não quer dizer que não possa o investigado valer-se de meios para defender-se, podendo trazer fatos, indicar testemunhas e colaborar com a busca pela verdade. Na lição de Sousa e Cabral:
No inquérito, tenha sido ele instaurado por portaria ou auto de prisão em flagrante, o investigado tem a primeira oportunidade de defesa ao ser interrogado pela autoridade policial. Nessa fase investigatória, o inquérito policial é, como entende largamente a doutrina, um procedimento administrativo e, como tal, não se coaduna com o consagrado princípio constitucional do contraditório.
Contudo, admite-se por parte do investigado o requerimento de diligências (art. 14 do CPP), a apresentação de documentos e o relato de fatos que possam levar à convicção de sua inocência no conjunto probatório dos autos. (SOUZA; CABRAL, 2013)
As garantias constitucionais incitam ao procedimento investigatório visam proteger o cidadão da arbitrariedade do Estado. Todavia, em relação ao inquérito policial, algumas dessas garantias são mitigadas a um segundo momento, não com o intuito de desguarnecer direitos, mas sim de tornar célere a coleta de provas, e evitar a movimentação do judiciário desnecessariamente. Nesse sentido,
“o inquérito policial serve também como elemento de “filtragem” do sistema penal, ao prevenir a movimentação do Poder Judiciário para o processamento de fatos não esclarecidos ou de autoria desconhecida.” (BONFIM, 2012)
Apenas considerando esses dados iniciais, é possível perceber que o inquérito policial, apesar de não receber o status de peça essencial por parte da doutrina, constitui, na prática, uma referência para persecução penal, constituindo não só um ponto de partida, mas uma garantia para a aplicação da justiça.