7. Transporte Aéreo
7.1 Aspectos Históricos
A melhor, dentre os autores consultados, introdução em relação a importância do transporte aéreo na civilização contemporânea foi do Professor Newton de Lucca ao citar Gusdorf pregando sobre o homo circulator, que assim o faz:
"O espaço-tempo da modernidade não possui centro absoluto, nem horizonte determinado uma vez por todas: seus horizontes se transferem para mais longe, à medida que o homem se desloca. A idéia que o destino de cada um é uma peregrinação, uma busca do centro, uma longa caminhada em direção ao lugar santo, o foco de verdade que dá valor à vida perde seu sentido num espaço-tempo dessacralizado. Nunca o homem foi tão móvel como agora; jamais caminhou tanto nas estradas do mundo; mas ele caminha para caminhar. O homo circulator. Que substitui o homo viator, não tem um fim determinado no seu nomadismo através do espaço. O automobilista, o turista do planeta, absorvem-se na procura de uma circulação sem razão e sem fim. Incansavelmente ele empreende vencer a distância que o desafia; sua vida é uma corrida através da distância, sem esperar jamais alcança-la. " (18)
O Direito Aeronáutico nasce da preocupação dos países europeus com vossas fronteiras, ou seja, o maior enfoque era a questão da internacionalidade e a preocupante ‘liberdade’ dos transportes aéreos entre Estados soberanos.
Em 1910 o governo francês com objetivo de regular os espaços aéreos dos países que desenvolviam esta atividade, convocou a primeira reunião na cidade de Paris em 1919. Sendo então realizada a Primeira Convenção Internacional de Navegação Aérea. Interessante frisar, que após esta Convenção, diferentemente do que ocorria só em tempo de guerra, foi permitido o tráfego em espaços aéreos dos países signatários.
7.2 Globalização
Indubitável é a composição do transporte aéreo no conceito de globalização. O transporte aéreo hoje possibilita um maior integração e interação entre países e continentes cada vez de modo mais célere. Nos dizeres do Prof. Antônio Herman Benjamin: "... a própria noção de ‘sociedade global’ deve muito aos extraordinários avanços tecnológicos ocorridos nos meios de transporte, principalmente o aéreo. Curioso, então, que um setor que é peça fundamental no mosaico da globalização – o fenômeno político, econômico, social e jurídico que marca este fim de século – ainda seja regido por um regime legal instituído no início do século XX, quando a indústria aeronáutica estava na sua infância" (19).
8. Seqüência Cronológica Normativa (20)
- 1925- criação do Comité International Technique D’ Experts Juridiques Aériens – C. I. T. E. J. A., o qual tinha finalidade estabelecer as responsabilidades dos transportadores aéreos e os limites da internacionalização;
- 1927- vôo de Charles Lindemberg, 1º vôo internacional de longa distância;
- 1929- Convenção de Varsóvia;
- 1931- Convenção introduzida no Brasil, através do Dec. 20.604/31;
- 1944- Convenção de Chicago, criação da OACI- Organização da Aviação Civil Internacional, Brasil foi signatário através do Dec-Lei 7952/45;
- 1955- tentativa de aperfeiçoamento da Convenção de Varsóvia através do Protocolo de Haia;
- 1965- através das modificação estabelecidas na Convenção de Haia, inicia-se a vigorar no Brasil por força do Decreto 56.463/65;
- 1986- foi instituído no Brasil o Código Brasileiro de Aeronáutica Lei 7565/86, transporte doméstico;
- 1988- Constituição Federal Brasileira;
- 1990- Lei 8.078/90 Código de Proteção e Defesa do Consumidor;
- 1995 e 1996- Discussão dos limites indenizatórios em Kuala Lumpur o famoso ‘acordo guarda-chuva’, denominado IIA (IATA Intercarrier Agreement,) seguido do MIA (Agreement on Measuares do Implement the IATA Agreement) (21);
- 1997 – Regulamento nº 2.027/97do Conselho da União Européia, aboliu inteiramente a limitação de indenizações por acidente aéreo no âmbito daquela comunidade;
- 1999- Convenção de Montreal, realizado pela OACI a Conferência Internacional de Direito Aeronáutico.
9. Legislações inerentes ao Transportes Aéreos.
Inicia-se então discutir a principal questão sobre o transporte aéreo que é justamente saber qual a norma que irá regulá-lo. Inúmeros são os critérios e entendimentos a respeito desta matéria. Dentre estes fatores, devemos identificar as partes contratantes, se o transporte é de natureza doméstica ou internacional, se a contratação foi gratuita, se há um consumidor na relação, se há um fornecedor, se há uma remuneração, dentre outros inúmeros fatores.
Dentre estes questionamentos citados, podem-se identificar algumas normas de diferentes hierarquias e graus de especialidades tratando de um mesmo assunto, que é o transporte aéreo de pessoas e cargas.
Assim identificamos os principais: a Convenção de Varsóvia (com suas eternas modificações), o Código Brasileiro Aeronáutico e o Código de Proteção de Defesa do Consumidor.
A doutrina e a jurisprudência discutem ainda se há uma antinomia, se uma norma é especial em relação à outra, se uma derrogou em alguns aspectos a outra dentre outras várias discussões.
Motivo destas discussões somente encontrará sentido na questão da Responsabilidade Civil do Transportador, em específico a questão do limite da indenização causado por algum fato do serviço do transporte aéreo. Toda as alterações ao longo da evolução normativa, como visto no item anterior reflete justamente na intenção de se querer limitar e/ou tarifar um possível dano que ninguém sabe qual será sua extensão.
9.1 A Convenção de Varsóvia
Como já afirmado anteriormente, a Convenção de Varsóvia de 1929 tem intenção de regular o transporte aéreo internacional, como visto esta é sempre alvo de modificações até os dias atuais. Sendo a última conhecida como o ‘Acordo de Kuala Lumpur’.
Este acordo teve como objetivo, não muito diferente dos anteriores, tratar do quantum indenizatório decorrentes dos acidentes de consumo, assim alterações foram as seguintes (22):
- Extirpação integral do teto (art. 22, parágrafo 1º);
- Responsabilidade civil objetiva até aproximadamente US$146.000;
- Juízo competente é aquele que aplica o domicílio do passageiro.
Entendemos que estas mudanças ocorreram devido a manifestações de países como os Estados Unidos, Itália e Alemanha, os quais não aceitavam o estipulado não só na Convenção de Varsóvia, mas também no Protocolo de Haia de 1955, que tentava mais uma vez estipular limites na indenização e determinação de uma responsabilidade subjetiva para o transportador. Esta limitação em Haia determinava um teto máximo de 250 000 Francos-poincaré, os quais equivaliam a US$16.600, e ainda o transportador só responderia por culpa grave ou dolo.
Em face desses fatores, os EUA chegaram anunciar a denunciação da Convenção de Varsóvia. A Itália iniciou questionar a constitucionalidade da Convenção de Varsóvia, haja vista a limitação no caso de morte da responsabilidade do transportador. Não diferente, a Alemanha também reagiu fazendo um rigoroso controle judicial dos contratos das transportadoras aéreas visando sempre a tradicional busca do cumprimento do princípio da boa-fé.
No Brasil a questão começa dar motivos de questionamentos recentemente, haja vista uma não tradição de o país questionar as constitucionalidades das leis. Pode-se afirmar que só agora com a Constituição de 1988 e os recentes meios de controle de constitucionalidade é que este perfil venha ser modificado. Porém os tribunais alteram seus entendimentos até os dias de hoje.
9.2 Código Brasileiro de Aeronáutica.
Através da Lei 7565/86 foi instituído o CBA, este veio regular o transporte doméstico, o qual defini-se , de acordo com o art. 215 deste, os transportes que tenham os pontos de partida, intermediários e destinos dentro do território nacional. O qual entendemos está plenamente em vigor desde que não invada a área da relação de consumo.
9.3 Código de Proteção e Defesa do Consumidor no Contrato de Transporte Aéreo.
A Lei 8.078/90 vem a tratar em especial das relações de consumo, ou seja, de acordo com as definições proposta pelo CDC ter-se-á de um lado um fornecedor de produtos ou serviços, de outro o consumidor e suas equiparações e o elo entre estes dois atores que é uma configurada relação de consumo.
Nos dizeres da Profa. Claudia Lima Marques: "O CDC é uma Lei de função social complementar ao mandamento constitucional" (23), além de que de acordo com o artigo 1º desta Lei esta é de ordem pública e interesse social nos termos do arts. 5º XXXII, 170, V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.
O que nos faz deduzir que o CDC não é para ser visto como uma simples Lei Ordinária, nos dizeres do Professor Nelson Nery uma Lei Principiológica, que protege uma particularidade de pessoas, vulneráveis (o que justifica a existência desta norma protecionista) e que apenas é manifestação expressa o preceito constitucional do art.5º XXXII e demais.
No entendimento do ilustre Professor Antônio Herman, este define o CDC como:
"O Código de Defesa do Consumidor pertence àquela categoria de leis denominadas ‘horizontais’, cujo campo de aplicação invade, por assim dizer, todas as disciplinas jurídicas, do Dir. Bancário ao Dir. de Seguros, do Dir.Imobiliário ao Dir. Aeronáutico, do Dir. Penal ao Dir. Processual Civil. São normas que tem função, não regrar uma determinada matéria, mas proteger sujeitos particulares, mesmo que estejam eles igualmente abrigados sob outros regimes jurídicos. Daí o caráter "especialíssimo" do Direito do Consumidor (...) o Dir. do Consumidor é disciplina especial em razão do sujeito tutelado. E como é curial, prepondera o sistema protetório do indivíduo em detretimento do regime protetório do serviço ou produto. É a fisionomia humanista que informa todo o Direito do Welfare State." (24)
No caso de Contratos de Transporte Aéreos, é fácil enxergar a relação de consumo, pois se tem de um lado um consumidor, a prestação de um serviço (concessão) mediante remuneração e no outro extremo o fornecedor empresa aérea.
Apesar disso, o próprio CDC, através de seu artigo 7º, não exclui outros direitos decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário. Logicamente entende-se que este não contrarie os princípios constitucionais e do próprio CDC e ainda trazendo maior benefício ao consumidor.
10. Possível Antinomia entra as Normas
Inicialmente faz-se necessário, antes de uma possível discussão de um conflito de normas, discordar da Profa. Cláudia Lima Marques e da Profa. Christiane de Godoy Iglesias ao entenderem que o CDC, frente ao CBA e a Convenção de Varsóvia, ser uma Lei Geral, e estas Leis Especiais.
Entende-se que se tratando da contratação por um consumidor (mediante remuneração) do serviço de transporte aéreo, apesar de tentativas de desvirtuar a idéia, vislumbra-se de uma clássica relação de consumo, não dando margens a aplicação de um outro ordenamento senão o CDC.
Não há de se falar que o CDC é uma Lei Geral, como já dito pelo Prof. Benjamin o Direito do Consumidor é disciplina especial em razão do sujeito tutelado, ou seja, o consumidor vulnerável. Há ainda o argumento do Professor Fernando Noronha ao defender que:
"Só se pode dizer que dois ramos do direito estão, um em relação ao outro, numa situação de direito comum para direito especial quando o âmbito do segundo se insere totalmente no âmbito maior do primeiro, só tendo como nota distintiva o acréscimo de alguns elementos específicos daquele. Só se pode falar num direito especial quando, se ele não existisse, todos os casos por ele abrangidos caíssem no âmbito do direito geral, para serem por ele regulados. Ora isto não acontece com o direito das relações de consumo e com o direito da responsabilidade civil do transportador aéreo. A posição em que estes se encontram, um em relação ao outro, é a de dois direitos especiais..." (25).
Requisito essencial para que haja uma antinomia é a existência de duas normas ao mesmo tempo válidas sobre determinada matéria. Em específico quanto à "Antinomias Jurídicas" não há de se preocupar com as vigências das normas novas e anteriores, mas com a lógica do sistema. Os conflitos de leis se resolvem com a simples revogação de uma das leis ou normas contraditórias. (26)
As antinomias se diferenciam entre aparentes e reais. Nas aparentes há critérios solucionadores. Já quanto às antinomias reais, deverá o aplicador do direto recorrer aos princípios gerais do direito e aos valores predominantes da sociedade (27).
As antinomias aparentes possuem os seguintes critérios solucionadores:
- Critério Hierárquico
- Critério Cronológico
- Critério da Especialidade
Pode ainda ocorrer uma Antinomia de Segundo Grau, isto ocorre quando há conflito nos critérios solucionadores, podendo ser solucionado da seguinte maneira (28):
- Quando existe conflito entre o critério hierárquico e cronológico - uma norma anterior-superior e uma norma posterior-inferior, o critério aplicado é o hierárquico;
- Quando existe conflito entre o critério da especialidade e o cronológico – uma norma anterior-especial e uma posterior geral, prevalece o critério da especialidade;
- Quando existe conflito entre o critério hierárquico e o da especialidade – ambos são critérios fortes, atuando em forma de igualdade – encontramos a Antinomia Real em que a norma superior geral conflita com a inferior-especial.
A possível antinomia só ocorrerá, conforme já dito, quanto a regra de responsabilidade do transportador, ou seja, o tipo da responsabilidade e a limitação do quantum a ser indenizado. Ou seja, o CDC estipula que o tipo de responsabilidade do transportador será objetiva e ilimitada.
Apesar de não pactuar com este entendimento, é interessante expor que opiniões diferentes sobre a discussão, como é o caso da Profa. Christiane que insiste e defende que o CBA é uma Lei Especial em relação ao CDC, que seria uma Lei Geral. Ocorreria assim no entendimento da professora uma antinomia de segundo grau onde há o conflito do critério da especialidade(CBA) com o critério cronológico, ou seja o CDC como Lei Geral mais nova. Se assim fosse a resolução seria fácil, pois Lex posterrior generalis non derogat priori especiali.
Entendemos que há um conflito quanto à responsabilidade do transportador. Este conflito se dá entre duas leis especiais o CDC e o CBA, os quais tratam de maneira diferente a mesma matéria.
Deve se ficar claro que o CDC só irá conflitar com o CBA quando estivermos tratando estritamente de uma sólida e indubitável relação de consumo, aquela que de um lado temos o consumidor vulnerável, o qual mediante remuneração (29) contrata o serviço de transporte aéreo. Nas demais situações, que não relação de consumo, o predomínio de aplicação é do CBA que continua em vigor.
Ainda fazendo justiça ao Professor Antônio Herman Benjamin, haja vista alguns doutrinadores afirmar que ele não defenderia a aplicação do CDC numa passagem cortesia. O Professor apenas faz uma análise geral, não excluindo as passagens adquiridas por milhagens que tem remuneração indireta, este tenta explicar uma passagem totalmente cortesia, a qual por ocasião de algum vício não poderia usufruir do CDC. O Professor no nosso entendimento deixa claro que não excetua as equiparações.
O ilustre consumerista quis apenas afirmar que o CDC no caso de prestação de serviços exige o requisito da remuneração, o que não ocorre numa passagem totalmente cortesia. Logicamente que na causa de acidentes, sendo o passageiro vitimado este poderá utilizar as equiparações do CDC pelo fato do serviço ter ocasionado algum dano.
Antes de conflitar o CDC com o CBA é importante que não seja esquecido que o serviço de transporte aéreo é uma concessão dada pelo o Estado, ou seja, um serviço essencial nos termos do art. 22 do CDC e do art. 175 da Constituição de 1988, aliado ao disposto na Lei 8987/95, a qual trata especificamente do assunto. Isto nos faz relembrar a responsabilidade civil objetiva do Estado, expressa no art. 37, parágrafo 6ºda CF/88. Disso surge a idéia da socialização/canalização dos riscos. Pois se é uma concessão o Estado na falta do fornecedor responderá subsidiariamente por um possível dano, haja vista sua culpa in eligendo.
Ocorrendo este conflito entre o CBA e o CDC, torna-se a repetir para não gerar dúvidas numa relação tipicamente de consumo, entende-se que a norma do CDC é a que será aplicada. Isto implica dizer uma responsabilidade objetiva ilimitada, de reparação limitada (30) , utilizando-se da terminologia do artigo 944 do Código Civil a indenização mede-se pela extensão do dano.
Em relação Convenção de Varsóvia e o CDC a discussão continua no mesmo sentido que é a responsabilidade civil do transportador. É argumentado por muitos que o Brasil é signatário de da C. de Varsóvia, mas não a cumpre como o deveria.
Sem querer entrar na discussão dos Monistas e Dualistas, de acordo com entendimento da Profa. Cláudia Lima Marques e pelo Prof. Almícar de Castro o Brasil por tradição é Dualista (31). A Convenção ou Tratado a ser incorporado, como Lei Ordinária, não pode contrariar os preceitos constitucionais, ficando ainda subordinado a Lei Maior que é a Constituição.
Concluímos que uma suposta antinomia entre o CDC e a Convenção de Varsóvia, ou o CDC e o CBA prevalecerá o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, pelo fato simplesmente como já defendido em vários momentos que diferente das outras normas, o CDC é um expresso mandamento constitucional (art. 5º XXXII e art. 170 da CF/88), é um lei especial subjetiva, é uma lei posterior hierarquicamente superior e ainda é uma lei de função social e de ordem pública. Deixando de obedecer estes preceitos estaríamos contrariando diretamente a Constituição Federal Brasileira Welfarista, a qual tem com um dos principais preceitos ‘ dignidade da pessoa humana’.
Logo, tratando-se de relação de consumo tipificada, a responsabilidade do transportador aéreo será objetiva e não tarifada ou limitada, ficando a cargo do judiciário de acordo com vossas convicções e entendimentos determinar o quantum indenizatório de acordo com a extensão do dano.