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Poder político e corrupção: Da herança patrimonialista às possibilidades do Estado Democrático de Direito

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Agenda 08/12/2019 às 11:00

3 UM NOVO PACTO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE: A CONSTITUIÇÃO DE 1988 

A exemplo das Constituições do segundo pós-guerra, a Constituição brasileira de 1988 remodelou as relações sociais e as relações entre a sociedade e o Estado. Trata-se, a nosso ver, de uma mudança paradigmática. Segundo Barroso (2010, p. 17), a Constituição de 1988

é o símbolo de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito. Sob sua vigência, vêm-se realizando eleições presidenciais, por voto direto, secreto e universal, com debate público amplo, participação popular e alternância de partidos políticos no poder. Mais que tudo, a Constituição assegurou ao país a estabilidade institucional que tanto faltou ao longo da república[15].                  

A instituição de um Estado Democrático de Direito impõe a observância, em todas as esferas, do princípio democrático e da garantia e efetivação dos direitos fundamentais. Ainda conforme Barroso (2009), a Constituição de 1988 estabeleceu esferas bem nítidas quanto ao espaço público e privado. A inviolabilidade da casa, o sigilo de correspondência e das comunicações, a livre iniciativa, a garantia do direito de propriedade e a proteção da família são exemplos de espaços privados merecedores de proteção. Já no que concerne à garantia de um espaço público, na visão do referido constitucionalista, é apontado como um dos principais traços a tentativa de resguardá-lo da apropriação privada, mediante a exigência de concurso público para ingresso em cargo ou emprego público, licitação para contratar com a Administração Pública, prestação de conta dos gestores públicos.

Além disso, a Constituição de 1988 operou um avanço na normatividade e eficácia dos direitos fundamentais, sobretudo os de segunda dimensão (sociais, culturais e econômicos). Não adentraremos em específico neste ponto, mas convém ressaltar que para parte autorizada do pensamento político-constitucional atual, a Constituição atual marca, em muitas de suas passagens (notadamente preâmbulo, art. 3º, art. 6º  e diversos outros), o resgate das promessas do Estado de bem-estar (BONAVIDES, 2012).

Tal fato gera mudanças, também, quanto ao exercício da democracia. Não estamos a falar somente da democracia de cunho representativo, pois há muito esta já deixou de ser o tipo ideal de democracia. Ademais, conforme sustentam Theodoro Júnior, Nunes e Bahia (2010), a democracia representativa enfrenta uma crise em um Parlamento sem agenda. Do mesmo modo o Executivo carece de legitimidade na medida em que suas políticas públicas passam ao largo dos postulados jusfundamentais positivados na Constituição, a qual, em nosso país, na realidade “se amolda ao detentor do ‘governo’”. Segundo os autores:  “Temos acompanhado que cada novo governo a CRFB passa por uma série de emendas para permitir a ‘governabilidade’, quando ela que deveria ditar os fundamentos das políticas públicas” (THEODORO JÚNIOR, NUNES E BAHIA, 2010, p. 15).

Verdadeiramente, a democracia proposta pela Constituição Federal de 1988 é, em muitos aspectos, a participativa. Bonavides já afirmou que inexiste democracia sem participação, acrescentando que

a participação aponta para as forças sociais que vitalizam a democracia e lhe assinam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses (BONAVIDES, 2001, 51).                  

O fundamento para esta afirmação se assenta no art. 1º, parágrafo único, da Constituição, além de diversas outras normas extraídas do texto magno. O fundamento é, portanto, a própria soberania popular. Para que esta soberania possa galgar a passos largos se faz necessária a superação da crise da democracia representativa, o que nas palavras de Bercovici (2005, p. 303), far-se-á pela “abertura do sistema representativo e da estrutura político-administrativa à efetiva participação popular”.

Tomados estes apontamentos, de maior relevância para os objetivos do presente trabalho, tem-se que a Constituição de 1988 possibilitou as condições para uma transformação da esfera pública. O princípio democrático, tomando por fundamento a ideia de democracia substantiva (participativa), não deve ser visto isoladamente, contudo. A democracia deve prestigiar, sob a égide do Estado Democrático de Direito, a plena satisfação dos direitos fundamentais. O Estado Democrático de Direito, nas palavras de Barroso (2007, p. 10), é a “síntese histórica de dois conceitos que são próximos, mas não se confundem: os de constitucionalismo e de democracia”. Segundo o autor, a observância dos direitos fundamentais pelas maiorias democraticamente eleitas marca a conjugação saudável entre constitucionalismo e democracia.

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3.1 A Constituição como condição de possibilidade para uma gestão pública democratizada

A participação dos cidadãos nos atos da Administração Pública tem sido uma das metas de muitos gestores. Os obstáculos a tal intento são diversos, vislumbrados tanto por parte dos administrados quanto por parte dos gestores públicos. Lyra (1999) aponta como algumas dificuldades para a efetivação da gestão participativa o corporativismo, o autoritarismo e o conservadorismo. Já Leal (2009) desconstrói argumentos referentes à incapacidade dos cidadãos participarem frente à complexidade administrativa[16], bem como ligados ao desgaste da representação política pela participação. Certamente, poderíamos elencar aqui uma diversidade de óbices, no entanto, por ora, ocupar-nos-emos de apontar a mudança paradigmática operada pela Constituição de 1988 com relação à democratização da gestão pública brasileira, bem como cotejar alguns pensamentos atuais que buscam implementar tal modelo.

Perez (2006) cita diversos dispositivos constitucionais que buscam adotar institutos participativos ao âmbito da administração[17]. E acrescenta que “a Administração Pública, na atualidade, passa a adotar novos métodos de atuação, baseado na cultura do diálogo e na oitiva das divergências sociais seguindo a tendência de não mais se afirmar contrapondo-se à atuação da sociedade civil (...)” (PEREZ, 2006, p. 166). O que ocorre é uma horizontalização entre o Estado e a sociedade, propiciando uma inter-relação que, muitas vezes, é positiva e contribui para a legitimidade das decisões tomadas.

O que é preciso, no entanto, é a implementação de uma democracia substantiva, isto é, um ambiente em que todos os participantes dialoguem e se comuniquem, não privilegiando a decisão unânime ou da maioria, mas possibilitando que a decisão tomada beneficie a todos, em certa medida.

Pesquisadores brasileiros têm lançado algumas bases para a democratização da gestão pública. Baseado no conceito de cidadania deliberativa, com matriz em Habermas, Tenório (1998) formula o que seria o que ele denomina de gestão social. Para ele, tal modelo contrapõe-se ao de gestão estratégica, substituindo as noções de tecnoburocracia pelo diálogo e a participação. A gestão social, portanto, orientação pela razão comunicativa, em que os sujeitos não intentam impor suas razões aos demais, mas, sim, chegar a um consenso racional, alcançado argumentativamente (TENÓRIO, 1998).

Tais níveis de diálogo só serão atingidos a partir do conceito de esfera pública, que pressupõe igualdade de direitos (sociais políticos e civis), de modo que a discussão possa se dar sem qualquer tipo de coação, física ou não (TENÓRIO, 2005). Com fulcro em Habermas, Tenório (2005, p. 106) afirma, ainda, que a sociedade civil é “um setor relevante para na construção da esfera pública democrática, na medida em que está apoiada no mundo da vida e, portanto, apresenta maior proximidade com os problemas e demandas do cidadão, bem como um menor grau de influência pela lógica instrumental.”

Após analisar o processo de reforma administrativa brasileiro dos anos 1990[18], Paes de Paula (2005) vai chegar à conclusão que houve avanços observáveis nos aspectos econômico-financeiro e institucional-administrativo, mas pouco se viu no âmbito sociopolítico. Ao analisar a abertura das instituições políticas à participação social, ela vai dizer que a reforma gerencial pretendeu trazer a participação somente no discurso, sendo centralizadora no que se refere ao processo decisório, à organização das instituições políticas e à construção de canais de participação. Em suas palavras:

verificamos que o controle social é idealizado, pois na prática não há a transparência esperada e nem mecanismos para que o controle ocorra (...). inexiste um canal de mediação entre as entidades e a cúpula governamental, evidenciando que está colocado o desafio de se elaborar arranjos institucionais para viabilizar uma maior participação dos cidadãos na gestão pública (PAULA, 2005, p. 175-176 passim).                  

Como alternativa, a autora vislumbra o que se denomina por gestão societal, cujas bases ela encontra nos conselhos gestores de políticas públicas, nos fóruns temáticos, orçamentos participativos etc. No entanto, aponta como limites dessa manifestação a sua fragmentariedade e desarticulação na formulação de um projeto global para a reforma do Estado.

Pode-se observar que as bases para uma maior democratização da gestão pública brasileira foram lançadas, sobretudo, pela Constituição de 1988, impondo a participação da sociedade em vários setores da administração e trazendo ao debate o ideal de democracia participativa. No entanto, entre o ideal e o real há um longo caminho a ser trilhado. Talvez, o obstáculo que mais chama a atenção seja a própria cultura participativa, que pouco temos, como brasileiros. Isto se deve não ao acaso, mas pelo longo processo histórico-político que tivemos até recentemente. Além disso, a própria herança patrimonial que parece ser ínsita a determinados setores protela a realização das promessas da modernidade, dentre elas a democracia.                  


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho pretendeu abordar as relações entre Estado e Sociedade em determinados períodos históricos. Procurou-se tratar inicialmente das noções de esfera pública e privada nas sociedades antigas e nas modernas. Após, fez-se a conceituação da esfera pública burguesa analisada por Habermas, a qual sofreu fortes abalos com o advento das denominadas democracias de massa, já na passagem do século XIX para o XX.

À luz destas premissas, buscou-se adentrar à realidade brasileira. Trazendo uma contextualização histórica desde a colonização, pode-se notar a prevalência do denominado patrimonialismo nas relações entre o público e o privado. Este predador, como foi denominado, permeou (e permeia) grande parte das relações do Poder Público com os administrados, seja pela concessão de meros favores, de caráter clientelista, ou como favorecedor de corrupção e cooptação.

As diversas reformas administrativas pelas quais passou o Estado brasileiro tentaram lidar com esta característica ínsita. Ao longo do século XX buscou-se implantar, e com certo êxito, o modelo de administração burocrática, em cujos processos, devidamente controlados, estariam clarificadas e vigiadas as relações entre os setores público e privado. No entanto, o que o tempo incumbiu-se de demonstrar é que o patrimonialismo resistiu a tais reformas, mostrando-se deveras atual.

A reforma do Estado dos anos 1990 também buscou combater o patrimonialismo. Embora não considerasse a atualidade do mesmo, dispensando maior atenção ao denominado rent-seeking, sua proposta era clara com relação ao nepotismo e à corrupção, que são, evidentemente, espécies de apropriação privada da res publica.

A prosperidade das relações Estado-Sociedade leva, conforme se demonstrou, à própria consolidação da democracia. Neste aspecto, busca-se interpretar a Constituição de 1988 como um novo pacto selado entre aquelas duas esferas. Os ideais de democracia propostos pelo texto constitucional buscam ir além da mera representação. Exige-se, substantivamente, a participação dos cidadãos nos atos da Administração Pública, conferindo-lhes não somente legitimidade, mas, sobretudo, maior efetividade.

Atualmente, pesquisas têm identificado no âmbito da gestão pública práticas participativas viáveis, sendo elas os conselhos gestores de políticas públicas, os comitês, as comissões, os fóruns temáticos, as audiências e consultas públicas, os orçamentos participativos, dentre outras.     

No entanto, é preciso atentar para a regulação e transparência das práticas participativas, para que estas não se configurem locus de cooptação e de corrupção, facilitadoras de clientelismos e personalismos.

Apesar de toda a riqueza encontrada nos ambientes participativos-deliberativos e das disposições constitucionais, a efetividade da democracia nestes parâmetros passa pelo aspecto cultural brasileiro. Em razão disso, a identificação de falhas e problemas não deve ser concebida como um fim em si mesmo, Ao contrário, percepção dos limites da cidadania deliberativa possibilita o fortalecimento da democracia, na medida em que buscará seu aprimoramento e, sobretudo, a instituição de meios que fomentem a sua prática e a torne transparente aos olhos dos cidadãos.

Sobre o autor
Nairo José Borges Lopes

Professor do Curso de Direito da Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS). Mestre em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL/MG). Bacharel em Direito pela UNIFENAS. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Nairo José Borges. Poder político e corrupção: Da herança patrimonialista às possibilidades do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 6003, 8 dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63883. Acesso em: 21 nov. 2024.

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