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Direito líquido.

Como explicar o que você não sabe que se abateu sobre sua realidade de existência? Como explicar que perdeu seus direitos, se nem mesmo consegue detalhar o andamento do crime?

Aqueles que dizem que a arte não deve propalar doutrinas costumam referir-se a doutrinas contrárias às suas (Borges – Outras Inquisições)

Se houvesse Ética nas relações humanas, desinteressadas, homens e mulheres, casados(as) e solteiros(as), precisariam colocar senhas em seus celulares? Como não temos lastro na moeda e nas relações pessoais, vivemos em bolhas de insegurança.

DO DIREITO LIQUÍDO

Sobre a condição imperiosa das tecnologias digitais – sejam já derivadas da Inteligência Artificial (ou não) –, a realidade societal se vê refém do inusitado e incompreensível muitas vezes para os sentidos de especialistas. No tocante às tradições do Estado de Direito basta-nos pensar que a realidade virtual – dos crimes cibernéticos e das criptomoedas – desconhece qualquer pretensão de limites.

Então, começando pelo Princípio da Soberania, todos os demais princípios gerais do direito passariam por profunda modificação. Experiências judiciais próprias da descentralização, como a mediação, negociação e arbitragem são frutos do século XX e podem seguir em tela no futuro-presente. Porém, pode ser que o lado estranhado (não assimilável à vida social) das tecnologias venha a se sobrepor. E no tocante à evolução destas últimas, caracterizada por um fluxo contínuo que inutiliza versões anteriores em uma velocidade quase descontrolada, como saber sua definição no futuro, e que direitos exigirá para uma existência pacífica e ética com a sociedade humana?

Juridicamente, sob a hipótese (real) de a Inteligência Artificial emitir sentenças – a exemplo do que as consultorias advocatícias que já conferem – o que seria do Princípio do Juiz Natural? A quem culpabilizar se uma dessas decisões incidir contra os direitos humanos – impactando fortemente a sociedade internacional? Pode soar meio absurdo, neste exato momento, mas se já é fato que a técnica se movimenta em razão distinta da Ética, que patamar de eticidade – vale dizer, de processo civilizatório – será razoável (racional) ao futuro do Estado de Direito?

A Inteligência Artificial, como todo suporte de gestão de informações, será eleita (por quem?) para superar o Princípio da Representação Popular? Se esta modalidade de inteligência, criada artificialmente por nós humanos, já se notabiliza por ser mais inteligente do que a espécie criadora, o que será feito do Princípio da Iniciativa?

É óbvio que a Ágora, a Polis, a cidadania ativa que recobre a democracia direta sofrerão com isto – e esse curso será bom ou mal? Terá algum significado a liberdade de expressão, para falarmos mal e reclamarmos da total ingerência da IA na vida política? Como distinguir o Totalitarismo Econômico atual – com base no capital financeiro – de um Totalitarismo Cibernético? E, em o fazendo com alguma clareza de distinção, a quem reclamar, contra quem ou o que lutar?

Institutos como recall, impeachment, accountability, referendos e plebiscitos (além de iniciativa popular), desobediência civil não parecem muito adequados. Então, o próprio Direito de Petição – apregoado na Carta Magna, de 1215 –, como direito de se insurgir contra a execução das políticas administrativas também estará descartado.

Não parece evidente?

Da mineração de valores (nos vários sentidos)

Para que servem as criptomoedas?

As moedas tradicionais, a começar do ouro e das letras de câmbio, foram inventadas para facilitar trocas. Juridicamente, o Princípio da Cartularidade é depositário fiel desse tempo. Mercadorias, depois serviços, eram trocados por uma unidade padrão. O minério raro dificultaria a fraude, a banalização. É a ideia de que as moedas deveriam ter lastro em ouro. Uma liquidez garantida e um equivalente em depósito seguro. Além de ser muito mais fácil de transportar e sem perenidade.

Pois bem, a criptomoeda é gerada quando um software decifra, antes de outros operadores, códigos matemáticos altamente complexos de um algoritmo específico. Ótimo. Mas é só o prêmio de uma competição de programas de computadores? De certo modo, ganha quem consegue arregimentar mais escravos (sistemas) para sua mineração. Daí os ataques hackers globais.

Assim, é válido confrontar as realidades e indagar: para que servem as tais competições informáticas que geram bitcoins? Qual o valor produzido? Qual o valor agregado? O algoritmo decifrado servirá para algum conhecimento útil ou relevante ao desenvolvimento da própria matemática ou da ciência? Enfim, todos gostariam de saber pra que servem as tais competições. Ou é, com o uso do preconceito derivado das tradições, apenas um jogo fútil?

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Se as criptomoedas são o destino mais ou menos inevitável – no que se apelidou de Quarta Revolução Tecnológica – como assegurar a legalidade (e legitimidade) da moeda verdadeira, em face dos recursos gerados por Hackers? Se uma parte das criptomoedas é obtida ilegalmente, como podem ser comercializadas em bolsas de valores?

O equivalente disso, juridicamente, seria o mesmo que um paraíso fiscal qualquer produzir dólares, libras ou euros – em porões muito profundos – e vender as notas para outros centros, sem que a posse e a propriedade das moedas viesse a configurar qualquer irregularidade, sem que as próprias moedas pudessem ser consideradas irregulares e alvo de apreensão. Aliás, como distinguir a moeda falsa da verdadeira, se são a mesma face do real?

Além disso, se a geração das criptomoedas é altamente poluidora, hoje, como impor limites que foram delineados no passado do Estado Ambiental?

Reféns sem realidade

Por outro lado, a modernidade tem tantos benefícios que é inimaginável, por exemplo, viver sem tecnologia. Se retroagirmos um pouco no tempo, pode-se pensar o mesmo acerca do direito. Assim, torna-se impossível supor que haveria vida social sem o direito, a democracia e regras que disciplinem o próprio uso da tecnologia. É o velho dilema entre liberdadade e segurança . Porém, há problemas trazidos pelas tecnologias mais modernas – ou pós-modernas, no sentido não só da fragmentação, mas também da desintegração de sentidos – que, aparentemente, nem os críticos mais severos estariam preparados para alcançar os significados na atuação comercial, política ou individual de cada um de nós.

É o caso de ataques de vírus altamente destrutivos. E de outros tipos de crimes virtuais que, ao invés de destruir os equipamentos inoculados, aprisionam os sistemas ali operacionais, sejam em grandes ou em pequenas empresas. Ao invés de sequestrarem os donos para pedir resgate, como ainda ocorre nos crimes convencionais, os criminosos da rede virtual sequestram os sistemas operacionais: nada mais funciona, até que se pague o resgate.
O preço, normalmente, é fixado em bitcoins (hoje equivalente a 29 mil reais cada um). Opera-se pelo bitcoin porque a moeda digital não pode ser rastreada, quando mergulhada na Internet escura, aquele campo da telemática que não se abre ao cidadão comum que consulta o Google ou suas redes sociais. Por isso, esse tipo de crime – com impacto severo para milhares de pessoas e de empresas, com seus trabalhadores – exige um conhecimento especializado, aprofundado não apenas na informática em si, mas sim, um conhecimento refinado no próprio submundo dessa informática: a Internet escura que abriga hackers extremamente violentos.

A violência do sequestro de pessoas, no modelo convencional, é de natureza física, emocional. Com os hackers desse mundo futuro, que mal ouvimos falar – quanto mais compreendermos – a violência, além de material, é de ordem moral. Imagine-se um jornal de cidade do interior, muitas vezes a única fonte de informação segura, ser aprisionado em todos os sistemas operacionais e receber e-mail (mensagem eletrônica) exigindo resgate na casa dos 12 bitcoins (cerca de 348 mil reais)?

Neste caso, o que fazer? Pagar e não ter certeza de que não será alvo novamente? Não pagar e perder a lista de anunciantes, os registros dos assinantes, os bancos de dados de informes já prestados?

Há uma sensação não só de impotência, porque o sequestro físico, da pessoa, também gera o mesmo sentimento. Há aí, talvez, a pior das impotências. Aquela de ser vítima do desconhecido. Não da pessoa desconhecida que nos sequestra, mas de uma ação que demoramos a entender como sendo do próprio sequestro. Ou seja, o indivíduo é vítima de algo sério, isso ele sabe, mas do que se trata exatamente não é de sua condição conseguir descrever.

É como se fôssemos reféns da ausência de sentido, submersos numa realidade sem conexão com o exterior, desprovidos da mínima noção do que é direito. Como explicar o que você não sabe que se abateu sobre sua realidade de existência? Como explicar que perdeu seus direitos, se nem mesmo consegue detalhar o andamento do crime? Se somos alvo de desvios no caixa eletrônico, com chupa-cabras e outros, conseguimos apontar o culpado, visualizar seu equipamento – tanto quanto o cativeiro, as pessoas envolvidas e as armas usadas. Mas, na captura dos sentidos não se pode apostar na mesma exatidão. Aliás, não há exatidão alguma, a não ser o fato de que se é refém até que se pague 12 Bitcoins.

Quem são seus perpetradores, meninos de garagem, gangues da China, mafiosos do Leste Europeu, membros do Cartel mexicano especializado em drogas sintéticas e crimes virtuais – ou alvos dos vírus mais nefastos que foram subtraídos (vazados) da NSA (maior agência de segurança estatal) dos EUA? Tratamos de criminosos individuais ou de Terrorismo de Estado ?

Inconclusão – posto que é chama que ainda arde

Parece, pelo andar profundo dos abalos que nos acometem em termos de senso de regularidade, previsibilidade e de segurança diante das experiências do real, que nem mesmo os mais importantes teóricos e críticos estariam capacitados a responder pelo nosso dilema: o que fazer quando perdemos o sentido de realidade?

Vale frisar que não se trata do sentido de realidade que uma doença mental ou o casulo do cárcere privado pode provocar (é dia ou noite?), mas sim da realidade virtual que invade a realidade prosaica do homem médio em sua vida comum, sem espaço de conexão entre o certo e o errado.

Infelizmente, como não há muita explicação para a profundidade dessa experiência, também não há direito que nos ampare. Reféns de uma realidade que não é real – até que se passe por isso.

Sobre os autores
Vivian Guilherme Marques

Jornalista Mestranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR

Caroline Janjácomo

Publicitária. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade. Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR. Email:

Rodrigo Coxe

Mestrando em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Professor de Direito do Instituto Matonense de Ensino Superior

Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Vivian Guilherme; JANJÁCOMO, Caroline et al. Direito líquido.: Em tempos rarefeitos, o direito é líquido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5350, 23 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64108. Acesso em: 22 dez. 2024.

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