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Aborto em casos de anencefalia:

crime ou inexigibilidade de conduta diversa?

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Agenda 17/03/2005 às 00:00

DA HIPOCRISIA DA PUNIÇÃO DO CRIME DE ABORTO

Sob diversos aspectos já abordamos o tema, restando agora uma análise da hipótese da tomada de decisão clandestina, ou do pedido não haver sido feito à justiça, aliás, fato ocorrente na maioria das vezes, sobretudo, quando os envolvidos detém alguma condição financeira e já pré-sentem os entraves da justiça.

Aborto é crime de pobres, posto que, todos sabemos onde, quando e como são feitos os abortos (denominados pelos médicos aborteiros como : retorno antecipado do fluxo menstrual), sendo um problema apenas inerente às pessoas de baixa renda.

Desafio: Quantos ricos estão cumprindo pena por aborto? Quantos foram processados por infração as normas proibitivas subjacentes aros arts. 124 a 127 do Código Penal? Existem processos criminais intentados contra eles? Foram submetidos ao crivo do Tribunal Júri? As respostas a estes questionamentos são quase sempre negativas ou em percentuais inexpressivos, porquanto, não existe vontade política para responsabilizar tais indivíduos. Não pensem que estou me contradizendo, uma vez que já manifestei minha opinião sobre o tema, mas, sobretudo, sustento a existência do princípio da igualdade do Direito Penal. Ou se pune a todos ou não se pune ninguém.

Nesses casos, não há dúvida, de que a previsão legal deveria ser favorável ao abortamento, pois que não seria justo submeter a gestante ao intenso sofrimento de carregar consigo o feto sem a menor perspectiva de vida futura. Assim, uma vez constatada a hipótese de que a vida seria inviável por grave anomalia acometida ao feto, poderia a lei autorizar o abortamento, ou seja, a interrupção daquele processo de gravidez, já que a nada conduziria prosseguir com ela.

Como verbera Luiz Flávio Gomes "Os que sustentam (ainda que com muita boa-fé) o respeito à vida do feto devem atentar para o seguinte: em jogo está a vida ou a qualidade de vida de todas as pessoas envolvidas com o feto mal formado. E até em caso de estupro, em que o feto está bem formado, nosso Direito autoriza o aborto, nada justifica que idêntica regra não seja estendida para o aborto anencefálico. Lógico que a gestante, por suas convicções religiosas, pode não querer o aborto. Mas isso constitui uma decisão eminentemente pessoal (que deve ser respeitada). De qualquer maneira, não se pode impedir o exercício do direito ao abortamento para aquelas que não querem padecer tanto sofrimento". (Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal. Ano V. N.º 28- Out-Nov 2004. Págs 35 e 36.)

A justiça não pode se distanciar dos avanços científicos, devendo sempre acompanhar as mudanças éticas e culturais da sociedade. Afinal a gravidez não modifica apenas o corpo da mulher, mas também seu estado psíquico, não sendo, portanto apenas biológica.


DA SOLUÇÃO PENAL

Após todas estas reflexões sobre o tema parece-me que a melhor solução a ser apontada para defender o posicionamento, qual seja, a adoção da tese da Inexigibilidade de Conduta Diversa como causa de exclusão da culpabilidade nas hipóteses de aborto anencefálico.

Anote-se que a doutrina da inexigibilidade surge no direito estrangeiro, inicialmente no Tribunal do Império Alemão -Reichsgerich, e mais modernamente se observa os seus reflexos seguros na legislação de países como Paraguai, Argentina, Espanha e Itália.

Tome-se como referencia a nação Paraguia que tem suas normas penais estabelecidas pela Lei Nº 1.160/97, (Codigo Penal de La Nacion Paraguaya ) e estipula como princípios básicos a reprovabilidade e a proporcionalidade, segundo os quais não haverá pena sem reprovabilidade e que os limites da pena serão proporcionais ao injusto cometido pelo agente. Desta premissa considerando a reprovabilidade como elemento da culpabilidade, tem-se a noção que a punição do crime só poderá se perfectibilizar se efetivamente atingir o sentimento de reprovabilidade acolhido pelo povo daquela nação. Um capítulo interressante do CP–Paraguaio é o referente às definições, entre estas o conceito de reprovabilidade, que adiante transcrevo: "in verbis … 5º. reprochabilidad: reprobación basada en la capacidad del autor de conocer la antijuridicidad del hecho realizado y de determinarse conforme a ese conocimiento;"

Ainda da análise da referida legislação colhemos que a inexigibilidade é considerada causa legal de exclusão de culpabilidade, existindo expressamente no art 25, o conceito para inexigibilidade de conduta diversa:"in verbis… Artículo 25.- Inexigibilidad de otra conducta…El que realizara un hecho antijurídico para rechazar o desviar de sí mismo, de un pariente o de otra persona allegada a él, un peligro presente para su vida, su integridad física o su libertad, será eximido de pena cuando, atendidas todas las circunstancias, no le haya sido exigible otra conducta. En caso de haber sido exigible otra conducta, la pena podrá ser atenuada con arreglo al artículo 67."

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Vê-se pois, que o país de fronteira, avançou na Ciência Penal ao codificar o conceito com o escopo de dirimir situações onde as demais excludentes de criminalidade não se prestem a absolver o agente, que em tais circunstâncias não poderia agir de uma outra maneira, como na hipótese do aborto eugênico.

A culpabilidade é a reprovação da ordem jurídica, na conduta humana. Afirmava Heleno Cláudio Fragoso "é a responsabilidade de conduta ilícita (típica e antijurídica) de quem tem capacidade genérica de entender e querer (imputabilidade) e podia nas circunstâncias em que o fato ocorreu conhecer a sua ilicitude, sendo-lhe exigível comportamento que se ajuste ao Direito". (A nova parte geral, ll.ª ed., São Paulo: Ed. Forense, 1987)

Um comportamento humano, ainda que seja típico e antijurídico, somente será considerado crime se o autor desse comportamento for culpável ou seja, se ele tiver capacidade penal. Este é o conjunto de condições que permitem a alguém torna-se sujeito de direitos e obrigações em matéria penal.

Segundo opinião de Francisco Muñoz Conde, tendo por centro de cogitação a culpabilidade de alguém, é mister analisar o que ele denomina de elementos específicos da culpabilidade: imputabilidade, conhecimento da antijuricidade do fato praticado e exigibilidade de um comportamento distinto. (Francisco Muñoz Conde, Teoria Geral do Delito, Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 132) Assim, só haverá culpabilidade "quando, devendo e podendo o sujeito agir de maneira conforme o ordenamento jurídico, realiza conduta diferente, que constitui o delito" (Damásio E. de Jesus, Direito Penal, Ed. Saraiva, 16.ª edição, 1.º volume, p. 420).

Conforme ensina o penalista pernambucano Aníbal Bruno, consiste a exigibilidade de obediência ao direito na "possibilidade da motivação moral da vontade do agente em consequência da normalidade das circunstâncias concomitantes do fato". Este terceiro elemento está relacionado com o juízo de reprovabilidade da conduta, posto que, ao valorar a consciência aprecia-se sobre de que forma se poderia comportar o agente, sendo exigida na sua atitude que não esteja acima dos parâmetros normais de exigibilidade comportamental. (Direito Penal, Forense, 1ª Edição, 1956 pág. 24)

Ainda sobre o assunto Muñoz Conde, no respeitante à exigibilidade de um comportamento distinto, afirma: " Normalmente, o direito exige comportamentos mais ou menos incômodos ou difíceis, mas não impossíveis. O direito não pode, contudo, exigir comportamentos heróicos: toda norma jurídica tem um âmbito de exigência, fora do qual não se pode exigir responsabilidade alguma. Essa exigibilidade, ainda que seja dirigida por padrões objetivos, é, em última instância, um problema individual: é o autor concreto, no caso concreto, quem tem que se comportar de um modo ou de outro. Quando a obediência da norma coloca o sujeito fora dos limites da exigibilidade, faltará esse elemento e, com ele, a culpabilidade". (Francisco Muñoz Conde, Teoria Geral do Delito, Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 132)

A idéia da inexigibilidade de outra conduta não é privativa da culpabilidade, mas um princípio regular e informador de todo o ordenamento jurídico. Na culpabilidade, exige ela comprovação, antes de se formular o juízo completo de culpabilidade, se um autor, com capacidade de culpabilidade e conhecimento da ilicitude de sua ação, realizou um fato típico e antijurídico, mas encontrava-se numa situação tão extrema que não seria aconselhável, do ponto de vista dos fins de pena, impor-lhe uma sanção penal, nesta hipótese inegavelmente encontra-se a mãe que carrega no seu ventre o feto anencéfalo.

Tome-se como reflexão um caso paradigmático na doutrina da inexigibilidade, julgado em 23/05/1897, pelo Tribunal do Império Alemão -Reichsgerich. Trata-se do Leinenfager, (caso del caballo ressabiado y desobidiente), que é narrado da seguinte forma: "Um proprietário de um cavalo ressabiado e indolente ordenou ao cavalariço que selasse o animal e saísse à rua com a finalidade de realizar certo serviço. O cavalariço, prevendo a possibilidade de um acidente caso o animal se descontrolasse, quis opor-se à ordem, porém seu patrão o ameaçou de demissão caso não cumprisse a determinação. O cavalariço, então obedeceu. Na rua, o animal rebelou-se, causando lesões a um pedestre". O Tribunal de Reich negou, contudo, a culpabilidade do cavalariço, porque, levando em consideração as circunstâncias do fato, não podia ser-lhe exigida outra conduta.

Considere-se, por oportuno, neste conjunto de reflexões que o homem vive em sociedade e que esta sociedade fixa normas comportamentais para o grupo social e que este mesmo grupo fixa quais as condutas aceitáveis para os seus integrantes. Assim, observado no fato concreto, que o agente agiu em conformidade com o estipulado nos limites dos parâmetros do juízo de reprovação do grupo social, impõe-se o reconhecimento por parte deste mesmo grupo que a atitude do agente guarda amparo nos mecanismos de controle social, excluindo desta forma a culpabilidade. Neste mesmo sentido, se a conduta do agente ofende aos critérios de convivência do grupo, sujeitar-se-á aos rigores legais por ausência de elementos que possa excluir a culpabilidade.

Dito isto, pode-se afirmar que um dos elementos, mais importantes da reprovabilidade é a possibilidade que possui o sujeito de determinar-se "intra legem". Do sujeito imputável, é exigido, geralmente, a atuação conforme o ordenamento jurídico. Entretanto existem situações em que não é exigida uma conduta adequada ao Direito, mesmo que se trate de sujeito imputável e que o mesmo realize essa conduta com a consciência da antijuridicidade. Daí, decorre a inexigibilidade de outra conduta, o que fará afastar o terceiro elemento da culpabilidade, ferindo-a de morte.

A referência utilizada como não exigibilidade de um outro comportamento é medida tomando-se como referência o homo medius (homem médio) significando que o juízo da culpabilidade implica numa reprovação pessoal do autor do fato punível. Há causas de motivação que são julgadas de forma individualizadora, considerando-se o conjunto factual de circunstâncias vividas pelo autor na execução do injusto, que será objeto da avaliação do juiz penal, consoante a lição de Álvaro Maynink da Costa (Álvaro Mayrink da Costa, Criminologia, vol. I, t. II, Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1980, p. 186).

Não é outra, a posição do Professor Muñoz Conde, citado pelo não menos ilustre Cezar Roberto Bittencurt:"El Derecho no puede exigir comportamientos heroicos; toda norma jurídica tiene un ámbito de exigencia, fuera del cual no puede exigirse responsabilidad alguna. Esta exigibilidad, aunque se rija por patrones objetivos, es, en última instancia, un problema individual: es el autor concreto, en el caso concreto, quien tiene que comportarse de un modo u outro. Cuando la obediencia de la norma pone al sujeito fuera de los limites de la exigibilidad faltará esse elemento y, com él, la culpabilidad."( Cezar Roberto Bitencurt, et all.. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2000.)

Consoante a lição de João Mendes Campos, "a pessoa pode ver-se compelida a praticar determinada conduta, embora ciente de que seja ela contrária à lei, não ficando, não obstante, sujeita à punição, porque qualquer ser humano normal, nas mesmas condições, teria igual comportamento, não sendo este, assim, censurável". (João Mendes Campos. A Inexigibilidade de Outra Conduta no Júri: Doutrina e Jurisprudência Belo Horizonte: Del Rey, 1998,p.21)

Parte da Doutrina entende que todas as causas de exclusão da culpabilidade se assentam num princípio maior, qual seja a Inexigibilidade de Outra Conduta. Von Wachter, em 1857, referiu-se a "circunstâncias nas quais uma extraordinária força física ou psíquica coloca o agente, que vê atacado ou em perigo seus bens ou os de um estranhos, em tal situação que se lhe não pode exigir, como regra, que se resigne ao sacrifício, e, se atua, se o dever estimar impune, o que não supõe que o ato seja lícito".Por esta razão pode-se colocar a exigibilidade de outra conduta como núcleo de reprovação pessoal irrogável ao autor de uma ação típica e antijurídica. (Von Wachter, apud André Eduardo de Carvalho Zacarias, Exclusão da ilicitude: doutrina, jurisprudência, legislação- Leme; Edijur, 2002,p. 35)

A doutrina das justificativas supra-legais funda-se na afirmação de que o direito do Estado, por ser estático, não esgota a totalidade das possibilidades de previsão legal,sendo impossível esgotar todas as causas de justificação da conduta humana no plano da vida social. Partindo-se desta premissa pode-se afirmar antijuricidade nada mais é do que a lesão de determinado interesse vital aferido perante as normas de cultura reconhecidas pela sociedade, sendo assim, afirma-se que não se deve apreciar o antijurídico apenas diante do direito legislado, mas também das normas de cultura. Além do que o legislador não é o oniciente, não lhe sendo dado o dom de prever todas as hipóteses e casos que a vida social possa apresentar nos domínios do Direito Penal.


CONCLUSÃO

Sendo assim podemos afirmar que a razão se encontra com a parte da doutrina que admite a exclusão da culpabilidade nesta hipótese, pois nesses casos, não há dúvida, de que a previsão legal deveria ser favorável ao abortamento, pois que não seria justo submeter a gestante ao intenso sofrimento de carregar consigo o feto sem a menor perspectiva de vida futura.

Assim, uma vez constatada a hipótese de que a vida seria inviável por grave anomalia acometida ao feto, poderia a lei autorizar o abortamento, ou seja, a interrupção daquele processo de gravidez, já que a nada conduziria prosseguir com ela, porém se o legislador assim não se posicionou, e portanto tal situação não está ainda arrolada na lei, mas nem por isso pode deixar de ser admitida.

Estamos convencidos de que, não apenas a apresentação do tema, mas também a continuidade de sua discussão são de fundamentais importância para o estudo da exclusão da culpabilidade na ação da gestante e do médico que interrompem a gravidez quando diagnosticada a anencefalia, esperando despontar nos leitores interesse em razão da importância do tema, para que, através de sucessivos debates tenhamos, sobretudo, contribuído com prolongamento do diálogo frutuoso que temos mantido com a comunidade jurídica penal Brasileira.

Tratando-se de questões humanas na sua complexidade e vistas à luz de tantas interpretações teóricas, é prudente que os profissionais do direito ao tomarem o concreto empírico (caso em si), munam-se de todo um referencial para chegarem ao concreto pensado (fato- julgamento) e correr menos risco de errar.

Sobre o autor
Luiz Augusto Coutinho

advogado criminalista em Salvador (BA), especialista em Direito Público pela UFPE, mestre em direito público pela UEFS/UFPE, vice-presidente da Associação Baiana dos Advogados Criminais, coordenador do Núcleo de Direito Penal da FABAC, professor de Direito Penal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTINHO, Luiz Augusto. Aborto em casos de anencefalia:: crime ou inexigibilidade de conduta diversa?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6423. Acesso em: 5 nov. 2024.

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