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Liberalismo de Rawls x comunitarismo:

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Agenda 25/06/2018 às 15:40

3. Alguns tipos de comunidades

Discorrendo acerca dos diversos tipos de “comunidades” que existem dentro de cada sociedade, Robert Fowler enumera três grandes grupos, ressaltando não serem eles exaustivos: a) as comunidades de idéias, que abrangem os modelos “participativo” e “republicano”; b) as comunidades de crise, como por exemplo o movimento de proporções globais (ou quase) nascido da degradação ambiental no planeta; c) comunidades de memória, que são formadas em torno de ideais religiosos ou de tradições comunitárias.[45]

Quando se refere a “comunidades de idéias”, Fowler fala primeiramente da concepção de “comunidade participativa”, isto é, aquela onde as pessoas decidem juntas, face a face, em um debate público, respeitando-se mutuamente em um contexto tão igualitário quanto possível. O debate público movimenta um processo interativo de autolegislação e de criação da comunidade política. A “comunidade participativa” estimula a autoconfiança das pessoas e o espírito público por meio de uma unidade e de uma satisfação comunais crescentes. Essa concepção parte do pressuposto de que as pessoas, em um meio participativo, podem desenvolver as suas capacidades de pensar, de se informar, de debater e de aprender com a discussão. Elas querem ser mais do que indivíduos egoístas e se unir a uma comunidade pública, o que lhes falta é uma oportunidade.[46]

No conceito de “comunidade de idéias”, Fowler fala ainda da “comunidade republicana”, ressaltando a influência de J.G.A. Pocock no desenvolvimento desse conceito, que pressupõe apoio às virtudes cívicas entre cidadãos com inúmeras diferenças em suas posições políticas e sócio-econômicas, o que possibilita a expansão da participação comunitária a níveis nacionais, indo muito além do universo pequeno das “comunidades participativas”.[47] Assim, podemos concluir que, enquanto estas se referem geralmente às reuniões, associações e/ou agrupamentos em esferas locais, a “comunidade republicana” abrangeria esferas de discussão mais abrangentes, dentro de um Estado federado ou no âmbito de toda uma Federação.  

Por sua vez, as “comunidades de crise pública” referem-se àqueles agrupamentos ou redes associativas que são moldados mais pelos problemas dos tempos atuais do que necessariamente por idéias intelectuais. A atenção da sociedade a tais comunidades não significa necessariamente a aprovação delas. Nesse caso, Fowler refere-se às “comunidades tribais”, baseadas em etnia, nacionalidade, religião, raça e outros conceitos “tribais”, os quais são utilizados muitas vezes em verdadeiras “batalhas” por poder e por identidade própria. Nenhuma forma de comunidade é tão fechada, tão apegada às suas verdades e tão rígida com os dissidentes ou não participantes da tribo, quanto aquelas baseadas em etnia ou raça, por exemplo. Deve-se, portanto, ficar atento para que tais comunidades não sejam um espaço de proliferação da tirania.[48]

No conceito de “comunidades de crise pública” estaria abrangida também a comunidade ambientalista, cuja abrangência aumenta progressivamente no sentido de se tornar um movimento global. Muitas vezes, todavia, esse movimento é obscurecido pela prática de se evitarem discussões sobre meio-ambiente em certas “ilhas acadêmicas”, ou em certas teorias políticas e filosóficas. De qualquer forma, os assuntos da pauta ambientalista já fazem parte de nossa rotina, e o movimento está comprometido em tornar o ambientalismo a metáfora dominante da vida pública. As formas de organização sugeridas são muitas: “governo mundial”, “federações”, comunidades participativas e cooperativas, e até mesmo um sistema de Estados-nação profundamente revisado.[49]

Segundo Fowler, as “comunidades de memória” seriam aquelas que derivam de sistemas de crença estabelecidos ao longo do tempo e que unem presente e passado, sendo sobretudo criadas com base na tradição e na religião. Seriam exemplos de tais tipos a comunidade político-intelectual (influenciada pela cultura ocidental e por valores gregos aristotélicos e platônicos), a comunidade familiar e a religiosa. Dessas, a que estaria em maior perigo seria a segunda, que é justamente a comunidade de memória essencial. O professor, juntamente com Allan Bloom, associa a desintegração familiar com a desvinculação dos valores comunitários e da vida pública. No caso das comunidades religiosas, reconhece que algumas também podem ser consideradas como “comunidades de idéias”, por frequentemente demonstrarem flexibilidade organizacional e doutrinária.[50]

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Fowler questiona como a liberdade e a diversidade podem conviver com a comunidade, sem que haja uma certa tirania de alguns grupos sobre outros, ou sobre as pessoas. Ressalta a noção de Walzer de que a comunidade deve ser baseada no pluralismo, no autocontrole, e contrária a qualquer leve tirania. Defende que as comunidades devem sempre possuir um “estado de alerta existencial” (existential watchfulness), como característica e como limite.  Esse “estado de alerta” leva em conta as alegrias potenciais de uma comunidade, sendo também dirigido para impedir as possibilidades de que a comunidade termine em opressão. O mais importante é que a cooperação social se desenvolva, sem que para isso haja o desperdício da criatividade e o abandono das liberdades de dos direitos individuais. Trata-se de uma busca pela comunidade acompanhada de vigilância, sem, todavia, a pretensão de se alcançar um espirito público total ou abrangente, como no casos da antiga cidadania grega. Essa “busca comunitária”, por sua vez, não teria prazo para acabar, sendo um processo de construção interminável, e nunca poderia importar na nulificação das pessoas. [51]

 


4. A revisão da crítica comunitarista ao liberalismo

Michael Walzer defende que duas críticas comunitaristas ao liberalismo devem ser revistas: a) a de que a teoria política liberal representa perfeitamente a prática social liberal; b) a de que a teoria liberal não representa, em seu fundamento, a vida real. Com relação à primeira, ressalta que em certas teorias liberais a história de luta contra a opressão de tradições, comunidades e autoridades anteriores é esquecida, pois mesmo sendo celebrada, essa história é substituída por outra, a de que a sociedade se origina de uma criação ex nihilo (isto é, do nada), a qual se dá no estado de natureza ou na “posição original”. Nesse ponto, afirma Walzer que se uma sociedade é vista somente como um conjunto de práticas de fragmentação, onde se vêem apenas conflitos individuais e reivindicações de direitos individuais, poder-se-ia concluir que a política liberal é a melhor forma de tratar os problemas gerados pela decomposição social. [52]

Mas isso não seria totalmente verdadeiro, pois a segunda crítica comunitarista ao liberalismo também teria algum fundamento: a teoria liberal não representa, em seu fundamento, a vida real. A referência a John Rawls fica mais clara quando fala da figura mítica da “posição original”[53]: cada indivíduo imagina a si mesmo absolutamente livre, desimpedido, relegado à sua própria sorte, e entra na sociedade, aceitando suas obrigações, somente para poder minimizar os seus “riscos” e maximizar os seus ganhos. Seria da própria natureza da sociedade humana o fato de as pessoas nascerem já fazendo parte de determinadas comunidades, que por sua vez possuem determinados valores, padrões de relacionamento, redes de poder. Esses laços comunitários forjarão a “identidade” da pessoa, e é a partir dessa “base” que a pessoa poderá se distinguir de suas comunidades e dos valores que foram herdados.

 Em outras palavras, a ideologia liberal teria o efeito de limitar nosso entendimento sobre nossos hábitos de afeto e não nos forneceria meios para elaborarmos as convicções que nos unem enquanto pessoas e que unem as pessoas em comunidades. Ela tiraria de nós o senso de personalidade e de vinculação, e explicaria a nossa incapacidade para formarmos redes solidárias coesas, movimentos e partidos estáveis, os quais poderiam fazer as convicções profundas da sociedade visíveis e efetivas no mundo; explicaria também o fato de sermos (enquanto cidadãos) radicalmente dependentes do “Estado Central”. Conclui o autor que nem a primeira crítica e nem a segunda estão totalmente corretas ou erradas, pois realmente existe um separatismo liberal, ao tempo em existem também inúmeros laços comunitários, mas não tão fortes e estáveis. [54]

Walzer analisa o que chama de “as quatro mobilidades” da sociedade norte-americana: a) a geográfica, caracterizada pela mudança constante de residência para outras cidades e Estados, entre os cidadãos; b) a social, traduzida pela mudança da “posição social” da pessoa, que pode ser medida em função de diferentes critérios, como o nível de renda, de educação, o tipo de trabalho ou outra posição que tenha “valorização” social; c) a marital, relacionada com divórcios, separações e novos casamentos, além de mudanças geográficas e sociais; essa mobilidade é contrabalanceada pela maior probabilidade de homens e mulheres se unirem mesmo com diferenças de classe, etnia e religião; d) a política, que se vê na perda da lealdade aos partidos, aos movimentos de liderança e clubes afins, a qual por sua vez se daria à medida que o local de moradia, a posição social e a família passam a ocupar lugares menos centrais na formação da identidade pessoal. Os “cidadãos liberais” seriam votantes independentes, que nem sempre votam como seus pais votavam ou como votaram da vez anterior. O aumento desse número poderia gerar instabilidade institucional, especialmente nos níveis locais de governo, onde, em tempos passados, a organização política teria servido para reforçar os laços comunitários. [55]

As “quatro mobilidades”, por sua vez, seriam justificadas pelo próprio Liberalismo, justamente por representarem a atuação da liberdade e a busca pela felicidade pessoal, mas nem sempre tais mobilidades estão relacionadas com momentos felizes, sendo por vezes traumáticas. O resultado é que muitos indivíduos são separados de seus grupos, podendo tornar-se menos afeitos a compromissos e à moral. Isso, todavia, não parece indicar que a sociedade tenha perdido sua capacidade para o diálogo, mas que, onde houver relações entre as pessoas ou entre elas e suas comunidades, poderá haver discordâncias e até separações. A linguagem dos direitos individuais – associação voluntária, pluralismo, tolerância, separação, privacidade, liberdade de expressão, carreiras abertas a talentos – é simplesmente inevitável. O liberalismo seria uma doutrina “auto subversiva” (self-subverting), necessitando por isso de uma correção periódica de tempos em tempos.  Nessa linha, seria necessário ensinar às “pessoas livres” a reconhecerem-se como seres sociais, por meio de um reforço seletivo dos valores comunitários que existem no íntimo de cada um. [56]

Walzer fala então da necessidade de o Estado patrocinar ou apoiar atividades associativas[57], tendo em mente que a sociedade liberal, em sua melhor forma, seria algo parecido com o a União social de união sociais, de John Ralws.[58] Sustenta que o argumento liberal de que o Estado deve permanecer neutro com relação às concepções da vida boa é induzido da fragmentação social: os indivíduos devem poder viver como acham melhor, desde que não prejudiquem os projetos de vida de outras pessoas. O problema se encontra no fato de que, quanto mais dissociados ou isolados os indivíduos se encontrarem, mais forte o Estado tenderá a se tornar, uma vez que será a única ou a mais importante União social. Assim, é necessário, para a própria sobrevivência do Estado liberal, que este apoie ou patrocine alguns grupos ou comunidades, nomeadamente aqueles que apresentem formas e propósitos que sejam compatíveis com os valores compartilhados de uma sociedade liberal.[59]

Como exemplos de tais políticas públicas, são citadas: a) o apoio a formação de sindicatos de trabalhadores a partir de 1930, requerendo negociação coletiva com a empresa sempre que a maioria dos trabalhadores apoiasse o Sindicato de sua respectiva área de atuação, assim como permitindo a abertura de lojas dos sindicatos; b) a isenção de impostos ou a utilização de impostos a pagar como formas de viabilizar que diferentes grupos religiosos estruturem sistemas extensivos saúde, com clínicas e hospitais, de forma a que se criem sociedades de bem-estar dentro do Estado de bem-estar. Não que elas sejam a solução para as deficiências deste, mesmo porque ele continua a ser essencial para possibilitar uma cobertura adequada e equitativa, mas serão uma forma de fornecer serviços públicos e promover a solidariedade comunitária; c) aprovação de leis conferindo proteção – por tempo determinado - a algumas comunidades locais de trabalho e residência, em face das pressões do mercado para que elas se mudem de suas vizinhanças e procurem trabalho em outros lugares. Defende ainda o professor o fortalecimento de governos locais, de forma que pudesse ser encorajado o desenvolvimento das virtudes cívicas em uma diversidade de estruturas sociais/comunitárias.[60]

Assim, percebemos que, para Walzer, os ideais liberais também são compatíveis com os comunitaristas, devendo apenas o Estado promover iniciativas que estimulem a formação de associações, mormente as que desenvolvam esferas públicas de discussão, e sejam compatíveis com uma sociedade pluralista. [61]

 

Sobre o autor
Eduardo Pereira Nogueira da Gama

Delegado de Polícia Civil do DF, Professor de Direito Administrativo, Direito Penal e Direito Processual Penal, Mestre em Direito Público (UERJ-2003), Especialista em Gestão de Polícia Civil (UCB-2010), Bacharel em Direito (UFES-1997)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAMA, Eduardo Pereira Nogueira. Liberalismo de Rawls x comunitarismo:: Diferenças, compatibilidades e condições para implantação dos ideais comunitaristas-liberais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5472, 25 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64770. Acesso em: 22 dez. 2024.

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