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Considerações críticas acerca da execução penal antecipada

Quanto mais refletimos a respeito da execução da pena após condenação por órgão colegiado, mais se encontram falhas jurídicas nos fundamentos que a sustentam.

1. INTRODUÇÃO

A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no habeas corpus nº 126.292/SP, que possibilitou o início do cumprimento da pena após a condenação em 2ª instância, foi objeto de debate por parte da equipe da 8ª Promotoria de Justiça de Ponta Grossa no mês de março de 2018. A iniciativa de discutir o tema surgiu em razão da grande polêmica que o cerca e também da possibilidade de modificação do atual entendimento majoritário da Suprema Corte. Apesar de o referido pronunciamento já ter sido objeto de diversas críticas e também de manifestações favoráveis, a atividade do referido grupo de estudos possibilitou a realização de alguns apontamentos interessantes, os quais passam a ser brevemente expostos a seguir.


2. ANÁLISE JURÍDICA

A descoberta da reiterada prática de crimes por pessoas de grande poder político e econômico no cenário nacional, a aparente ineficiência do Poder Judiciário e a sensação de impunidade sentida por considerável parcela da população certamente foram fatores relevantes para que o Supremo Tribunal Federal permitisse o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da condenação. Entretanto, o meio encontrado pelo STF para “responder” ao povo em um contexto de inquietação social parece não se harmonizar com a ordem jurídica vigente.

Os eminentes Ministros favoráveis defenderam suas posições sob variados aspectos. A impossibilidade da análise de fatos na instância extraordinária foi um dos argumentos empregados para sustentar a mudança. Com o mesmo objetivo foi mencionada a necessidade de minimizar a seletividade do sistema penal e a interposição de recursos meramente protelatórios, de forma a tornar o processo penal mais célere e eficaz. Todavia, esses fundamentos são passíveis de críticas.

Quanto à alegação de que o exame de provas e de fatos se exaure na 2ª instância, de modo que apenas questões de Direito poderiam ser objeto de análise na instância extraordinária, tal premissa não é de todo incorreta, mas deve ser acolhida com ressalvas. É verdade que a apreciação exauriente de provas e fatos não é cabível em sede de recurso especial ou recurso extraordinário. Contudo, isso não significa que o exame de fatos é absolutamente inviável. Nem sempre se mostra possível realizar separação total entre questões exclusivamente fáticas e questões exclusivamente jurídicas. Em alguns casos, notadamente nos que envolvem dúvida sobre a tipicidade ou atipicidade de uma conduta, a interligação entre o fato e o Direito discutido é tamanha que a distinção revela-se praticamente impossível. Nessas situações, a busca da subsunção do fato à norma inevitavelmente exige a análise conjunta da situação concreta ocorrida e das regras jurídicas vigentes. Logo, não se pode afirmar que a apreciação de provas e de fatos se encerra na 2ª instância para todos os processos penais.

Sob a perspectiva da seletividade do sistema penal, deve-se destacar que essa posição do STF não atinge exclusivamente acusados com capacidade econômica favorável. Não há dúvida de que na grande maioria dos casos a defesa de interesses em Juízo acarreta uma série de despesas econômicas. Em regra, quanto mais se pretende explorar as possibilidades de defesa, maior é o gasto econômico exigido ao longo do processo. No entanto, defender-se em Juízo com qualidade não exige obrigatoriamente o dispêndio de valores pecuniários expressivos ou até mesmo proibitivos para parcela considerável da população. Prova disso é a Defensoria Pública, que apesar de não estar organizada de maneira ideal em vários estados da federação, gradativamente melhora sua estrutura e expande seu âmbito de atuação. Isso tem permitido que até mesmo os economicamente hipossuficientes possam ter em seu favor defesa adequada e capaz inclusive de fazer o pleito recursal chegar ao STJ e ao STF. Ademais, a maior parte das pessoas sobre as quais ocorre a incidência concreta da lei penal pertence às classes sociais menos favorecidas, as quais são muito mais propensas à assistência pela Defensoria Pública do que custear honorários advocatícios e despesas processuais.

A busca da duração razoável do processo e a tentativa de minimizar a morosidade da justiça criminal também são motivos duvidosos para embasar a manutenção do posicionamento da Corte Excelsa. Assiste razão a quem pensa que a celeridade processual é necessária para que a atividade jurisdicional do Estado seja eficiente. Entretanto, não se pode esquecer qual é o principal interesse em jogo no processo penal: a liberdade individual. Deve-se avaliar quais são os benefícios trazidos pela agilização processual e, em seguida, verificar se superam os prejuízos decorrentes da limitação precoce do direito fundamental de ir e vir. Realizado o balanço, conclui-se que a restrição de liberdade é um preço demasiadamente alto a se pagar para que a coletividade possa “ver a justiça funcionar”.

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Mesmo que a persecução penal brasileira possa muitas vezes ser considerada lenta devido às diversas possibilidades recursais, o adiantamento do resultado final do processo através do início da execução da pena antes do trânsito em julgado da condenação não aparenta ser uma forma válida de solucionar a questão. Talvez fosse caminho mais adequado para agilizar o processo, e consequentemente atender ao fim de pacificação social, a reestruturação do sistema recursal, também com a instituição de novos filtros de admissibilidade. Assim, em um lapso temporal menor seria possível estabelecer de forma definitiva a condenação e iniciar o cumprimento da pena.

Além disso, a atribuição do STF de guarda da Constituição, que abrange o poder-dever de interpretar a ordem jurídica, deve respeitar limites hermenêuticos mínimos. Certamente a interpretação é tarefa de grande relevância para compreender o significado da norma, porém não se pode obter resultado contrário à semântica: autorizando algo que a lei (CPP) e a CF expressamente proíbem.

Lamentavelmente, em claro ativismo judicial, que moveu o resultado do julgamento do habeas corpus em análise, a posição hoje majoritária do STF afrontou o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, e o artigo 283, caput, do Código de Processo Penal, segundo os quais a ordem jurídica não permite a execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Em outras palavras, se disposição normativa contida no CPP não foi declarada inconstitucional, como justificar juridicamente a posição majoritária externada no referido HC em sentido oposto? Parece difícil fundamentar o juridicamente impossível.

Outrossim, sempre que a Corte Suprema desconsidera norma vigente, ainda tida como constitucional, está a negar vigência à própria Constituição Federal, pois viola o princípio da legalidade, que cada vez mais perde força diante dessa avalanche antinormativa.


3. CONCLUSÃO

Encerrada a breve discussão, percebeu-se que quanto mais refletimos a respeito da execução da pena após condenação por órgão colegiado, mais se encontram falhas jurídicas nos fundamentos que a “sustentam”.

Portanto, a retomada por parte do Supremo Tribunal do entendimento de que o cumprimento da pena somente pode ter início após o trânsito em julgado da condenação é medida necessária e de rigor. Vale dizer: para o bem da Constituição e da população destinatária, exorta-se os doutos Ministros que revejam o entendimento atual quando do julgamento do mérito de outros habeas corpus e principalmente das ADCs 43 e 44, o que trará definitividade para essa grave pendência. 

Sobre os autores
Bruna Mayara de Oliveira

Assessora de Promotor no Ministério Público do Estado do Paraná. Pós-graduanda em Direito Processual Civil (UNINTER) e em Direito Aplicado (ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO PARANÁ).

Rubia Souza Santos

Estagiária de pós-graduação;

Nayla Izabelle Chemim Bianchessi Blum

voluntária e Bacharela em Direito.

João Conrado Blum Júnior

Promotor de Justiça no Paraná. Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa.

Gabriel Andreata Dall'agnol

Acadêmico de Direito na UEPG. Estagiário de graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruna Mayara; SANTOS, Rubia Souza et al. Considerações críticas acerca da execução penal antecipada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5390, 4 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65170. Acesso em: 22 dez. 2024.

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